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A 7 de setembro de 1989 viria a conquistar, pelos originais desta obra, a “Maçã de Ouro” da Bienal Internacional de Bratislava, com a qual granjeara um prestígio

4. No âmago do álbum: sucessões e cruzamentos

4.2. Estrutura e organização narrativas

4.2.1. Ação e narração: enredo e suas modalidades

Les grands récits se reconnaissent à ce signe que la fiction qu'ils proposent n'est rien d'autre que la dramatisation de leur propre fonctionnement.

(Ricardou, 1967: 178)

Componente fundamental da arquitetura narrativa, «entendida como totalidade que estrutura e confere consistência ao relato» (Reis & Lopes, 2011: 16), a ação manifesta-se de forma peculiar no conjunto de obras em epígrafe, propiciando leituras plurais. Na verdade, se em alguns – raros − casos (e.g., O meu Avô, Bernardino, Era

uma vez a Bublina), a trama narrativa se pauta pela linearidade, desenvolvendo-se

mediante o esquema tradicional − situação inicial, peripécias, ponto culminante e desfecho −, e alguns dos modelos narrativos e linguísticos próprios da infância (e.g., simplicidade e número reduzido de personagens, indefinição cronotópica, brevidade discursiva, estruturação reiterativa e polissindética), os álbuns de MB afastam-se, no mais das vezes, dos padrões típicos do conto, complexificando a estrutura narrativa e justapondo planos espácio-temporais distintos.

Com maior assiduidade, porém, o incipit, enquanto via de acesso aos elementos nucleares do universo diegético/mimético recriado, corresponde a uma apresentação das personagens principais, ora, por exemplo, por via da fórmula hipercodificada “Era uma vez”, como em Bernardino, ora pelo recurso ao determinante demonstrativo “este” (O

meu Avô), reforçando, desde logo, a relação verbo-icónica, apontando para a mensagem

pictórica e facilitando a sua identificação por parte da criança-leitora.

Em outros lugares, a história inicia-se com a exposição de um problema, como em O dinossauro ou Este é o Tobias, ou, ainda, se atendermos ao facto de a narrativa poder iniciar nos próprios peritextos, com a formulação de um desejo, como atesta o álbum Tobias «O que eu passei para chegar aqui!». Neste último título, a abertura poderá, pois, efetuar-se no anterrosto, com a intervenção da ilustradora-narradora que, através de um balão de fala, se dirige ao leitor para lhe explicar o propósito do livro ou

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o seu desejo de o informar acerca dos passos que conduziram à elaboração da publicação em causa.

Em geral, o relato segue-se com uma graduação de peripécias ou um acoplamento de factos, cuja linearidade narrativa – necessariamente entendida numa leitura verbo-icónica – pode ser quebrada/interrompida a distintos níveis, tanto do ponto de vista formal/estrutural, como gráfico/compositivo, como veremos mais adiante. Entre outros procedimentos e efeitos a serem analisados ao longo das próximas páginas, recorde-se, a título de exemplo, a rutura na mise en page dissociativa d’O livro do

Pedro, que faz surgir o clímax da intriga ou o momento de maior intensidade dramática

da narrativa encaixada, através de uma dupla página, única e profusamente, ilustrada. Com efeito, se em alguns dos álbuns em análise as sequências se articulam de forma encadeada ou «se concatenam linearmente, sendo o final de cada uma o ponto de partida da outra» (Reis & Lopes, 2011: 121), no mais das vezes, alicerçam-se em arquiteturas de maior complexidade, claramente voltadas à experimentação pós- moderna e ao exercício metaficcional. Em qualquer caso, contudo, a construção actancial é sempre cimentada numa relação entre o “factual” e o “maravilhoso”, entre as aprendizagens humanas e sociais dos seus heróis e os seus sucessivos encontros com o imaginário e/ou o sonho. Um aspeto para o qual contribuem, igualmente, os seus desfechos “abertos-fechados”, i.e. não totalmente solucionados ou capazes de sugerir outros finais, ampliando as possibilidades interpretativas e promovendo diferentes níveis de leitura.

Mas o álbum narrativo, à semelhança de muitos dos contos iniciáticos, também obedece a uma certa circularidade diegética, fecha-se sobre si mesmo, permitindo, com frequência, que a primeira e a última (dupla-)página, que os acontecimentos iniciais e finais se revelem próximos, complementares ou, até, simétricos (Dardaillon, 2009). Circularidades essas que se vão constituindo como o horizonte de expectativa do leitor e das quais a obra de MB, aliás, não se mantém arredada, logrando efeitos de sentido, tanto no plano narrativo como formal. A comprová-lo, atente-se nos paralelismos ao nível da mise en page (e.g., Tobias, os 7 anões e etc.) ou dos próprios registos plásticos (e.g., O livro do Pedro) nas páginas iniciais e finais destes volumes, cujo contraste com o miolo contribui, não raras vezes, para a impressão da circularidade diegética.

Mas mais notável ainda, o funcionamento do álbum como um universo circular também é o que permite a MB jogar com os mecanismos da ficção ou, mais

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propriamente, da metaficção. Especialmente devedora da tendência pós-modernista (Hutcheon, 1988)164, este tipo de ficção «que llama la atención sobre su propia construcción y por tanto sobre su condición de artefacto» (Silva-Díaz Ortega, 2005: 59) é, pois, o que suporta a maioria dos álbuns que nos propusemos analisar e que, complexificando a sua arquitetura, implica diferentes níveis de leitura.

Rompendo com as normas da narração canónica,

en la que, con mayor o menor grado de complejidad, se construye un mundo ficcional incuestionable (pretende ofrecer la ilusión de la realidad), de acuerdo con modelos literarios existentes muy codificados, en los que no se violentan las fronteras entre la historia y el discurso, ni tampoco las barreras entre el texto y la comunicación fuera de éste (Silva-Díaz Ortega, 2005: 140),

estes livros propõem uma transgressão de fronteiras entre os diversos espaços e tempos ficcionados, destruindo a ilusão da realidade e enfatizando a ficcionalidade.

Na verdade, tais estratégias, que suportam as narrativas canónicas com vista à construção de uma obra capaz de propor um tipo de relação com o leitor (idem, ibidem), podem exercer influências variadas165, não só ao nível da componente peritextual (como já vimos), mas também sobre o enredo e a lógica causal, a construção das personagens, o marco espácio-temporal, a focalização e o ponto de vista, e, ainda, sobre as relações entre narrador/narratário e autor implícito/leitor implícito.

Alojado na linguagem e/ou integrado na própria estrutura narrativa (Hutcheon, 1980)166, o exercício metaficcional é o que nos parece regular, na obra em estudo, as sequências de maior complexidade. Refletindo-se, pois, a distintos níveis – diegético, linguístico e icónico −, com óbvias consequências ao nível do cronótopo, é pelo recurso ao encaixe e/ou à alternância das ações que se arquitetam, no mais das vezes, os álbuns de MB. Sem preocupações de exaustividade, e entre outros exemplos assinalados ao longo dos próximos pontos, destaquem-se, por ora, alguns casos mais relevantes.

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Confrontar, ainda, com «la metaficción es una manifestación ahistórica que se registrado a lo largo de toda la historia literaria, aun cuando su presencia se ha intensificado en la literatura postmoderna, hasta el punto de que la presencia de recursos metaficcionales se considera una característica que identifica al posmodernismo literario» (Silva-Díaz Ortega, 2005: 58).

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Sobre esta questão, vide, ainda, Dresang (2008). 166

Linda Hutcheon (1980) reconhece nesta prática as modalidades diegética e linguística, cada uma, por sua vez, caracterizável de dois modos: “aberta” (overt) ou “encoberta” (covert). O primeiro tematiza o leitor, i.e., dirige-se a ele para informá-lo acerca da reformulação do pacto narrativo; no modo encoberto, o leitor toma conhecimento da vulneração das regras durante o processo de leitura. Vide, ainda, Silva-Díaz Ortega (2005).

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O desnível diegético ou a mise en abyme de duas sequências narrativas é, desde logo, o que está na base da construção ficcional d’ O livro do Pedro, onde Maria, a protagonista deste e do livro dentro deste, narra à filha a história da sua infância. Celebrando um paralelismo notável entre o tempo do discurso (na ação de primeiro nível) e o tempo da história (referente ao passado e à infância da personagem), esta obra rompe com a ordem causal ou a continuidade que caracteriza a narrativa tradicional, ao mesmo tempo que torna evidente a cisão “entre o texto e o mundo”, numa estratégia próxima do “curto-circuito” de que nos fala Geoff Moss (1990). É, pois, o livro epónimo que Maria tem nas mãos que origina o confronto entre ambos os níveis narrativos: partindo de uma mise en abyme visual, designadamente no reforço da situação narrativa com a presença icónica d’O Livro do Pedro, na hora em que Maria se prepara para contar a sua história, a apropriação enunciativa (ou o enunciado

metaléptico) por parte da protagonista e a própria rutura na composição das páginas,

que subitamente se abrem sobre “o livro do Pedro”, situam o leitor/narratário no mesmo nível da filha de Maria e convidam-no a participar no seu processo de leitura. Note-se que o próprio protagonismo de Maria na narrativa de segundo nível vem, igualmente, assinalar o salto entre os diferentes níveis diegéticos, num fenómeno próximo da

metalepse, na medida em que a personagem passa de uma narrativa para a outra,

embora, reconheça-se, figurada em espaços e tempos divergentes.

Essas mesmas alterações são, ainda, evidenciadas pelo registo gráfico de MB, também ao nível de algumas componentes ilustrativas de índole paratextual. Atente-se, por exemplo, na variação das imagens − «de contorno a carvão nas cenas a três cores que se reportam ao ‘presente’, e contorno a pena e a tinta preta (ou a esferográfica ‘Bic’?) nas cenas policromáticas do passado de Maria» (Gomes, 2009: 54) −, mas também do próprio fundo das páginas do livro, uma vez que para a narrativa de primeiro nível, a autora opta por um tipo de papel reciclado, ao invés do papel branco usado na narrativa encaixada, delimitando, assim, visualmente, os dois níveis diegéticos. O mesmo acontece com a tipografia utilizada, com recurso ao itálico na narrativa de primeiro nível, enquanto o tipo de letra normal é usado na encaixada.

Se, de entre as estruturas complexas que o corpus evidencia, e isto no amplo espetro ficcional que cobre a metaficção, a obra assinalada poderá não dificultar a hierarquização entre ambas as narrativas que a enformam; outras, já, situar-se-ão num extremo desse mesmo espetro, jogando com diferentes tipos de sequências e propondo-

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se como um desafio redobrado à atenção e às expectativas do leitor.

Construídos a partir de mecanismos metatextuais e metaficcionais que transportam a ilustradora para o universo ficcional, os livros da coleção “Tobias” assentam na diluição de fronteiras entre dois mundos paralelos e, aparentemente, antitéticos: por um lado, o mundo ficcional/artístico arquitetado pela autora e, por outro, o universo maravilhoso e onírico que dá vida ao pequeno herói epónimo. Sugerindo uma leitura de cariz autobiográfico (ou autorrecriativo), suportada por elementos estruturais/narrativos como a transmigração da própria artista plástica para a recriação ficcional, os álbuns da série “Tobias” potenciam o cruzamento de uma variedade de graus metaficcionais 167 , rompendo o realismo e frustrando as expectativas convencionais do leitor acerca do significado e da aparente coerência da história.

É, pois, num registo em primeira pessoa, em Este é o Tobias, que a ilustradora se dirige ao leitor e lhe conta o seu primeiro encontro com Tobias, abrindo caminho às mais divertidas aventuras da pequena personagem fantástica, saída do seu caderno de desenhos, no seu próprio atelier. Na verdade, e tomando de empréstimo as palavras de Carlos Nogueira, este conjunto de álbuns parece-nos configurar uma poiética do

ilustrador «que se constrói através do cruzamento do autor textual, afirmado numa

abundante deixis pronominal e verbal de primeira pessoa do singular, com uma iconografia que diz um modo de ser através da escrita» (Nogueira, 2012: 106).

Porém, se, no primeiro volume da série, o leitor depara com um narrador visível e uma personagem autoconsciente (Castells Molina, 1998), a partir dos números seguintes assiste-se a uma debreagem enunciva – um ele que significa um eu −, associada, a nosso ver, a uma reduplicação aporística (Dällenbach, 1977)168 da

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Na esteira de Linda Hutcheon (1980), Patricia Waugh (1984) propõe três graus para a obra metaficcional: o primeiro respeitaria à ficcionalização da ficção e onde uma personagem-artista (ou pseudoartista) tem consciência da sua representação dentro da realidade ficcionada; no segundo grau, ou no centro do espectro da metaficção, alteram-se os elementos canónicos das narrações, ora jogando com as estruturas, ora recorrendo à paródia, mas mantendo, em qualquer caso, a referência ao texto narrativo canónico; e no último grau, correspondente às formas mais radicais da metaficção, a experimentação ficcional tem lugar ao nível do signo, acabando com a noção do quotidiano. Nessa medida, quanto mais insistem na sua condição linguística, mais se afastam da ideia da ficção realista, mediante a qual a ficção pode representar o mundo (Waugh,1984, apud Silva-Díaz Ortega, 2005).

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Lucien Dällenbach propõe três tipos de mise en abyme, designadamente: simples, quando o «fragment entretient avec l’œuvre qui l’inclut un rapport de similitude» ; infinita, nos casos em que o «fragment entretient avec l’œuvre qui l’inclut un rapport de similitude et […] enchâsse lui-même un fragment qui…, et ainsi de suite» ; e aporística, para o «fragment censé inclure l’œuvre qui l’inclut» (Dällenbach, 1977: 51).

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ficcionalização da ilustradora, e responsável pela complexificação da arquitetura narrativa nos restantes volumes da coleção. Por outras palavras, se o álbum inaugural da série se constrói em torno de uma metalepse da autora (Genette, 2004)169, autorizando a representação ficcionada da protagonista, as narrativas que se seguem situar-se-ão num nível hipodiegético da própria recriação ficcional ou da autoficção da ilustradora.

O álbum Tobias e o leão é talvez o livro da série que melhor elucida esse fenómeno. Centrada numa aventura das personagens pelo espaço circense, a história inicia com uma descrição alternada das suas ações, relatando o encontro imprevisto de Tobias com um leão, enquanto a ilustradora tentara entrar no circo «para fazer uns desenhos». Percorridas algumas páginas, o leitor é informado de que «a ilustradora teve, nesses muitos dias, um trabalho fora do ‘atelier’», interrompendo-se, abruptamente, e a ambos os níveis verbal e visual, o curso das ações. E é quando «se sent[a] de novo à sua mesa, com os papéis, os lápis e as aguarelas», retomando o nível diegético suspenso, que percebemos a existência de uma reduplicação da personagem, corroborada pelo encontro do pequeno Tobias com a ilustradora que tinha permanecido «sentada na bancada a fazer desenhos».

Numa espécie de ilusionismo (Lewis, 2005), centrado na capacidade do autor para consciencializar o leitor desses “submundos/níveis” ficcionais, dessa “ilusão virtual”, sem uma análise mecânica da obra, o álbum em menção (tal como os restantes volumes da série, aliás) alicerça-se em dois níveis diegéticos, sobrepondo as suas ações e confundindo os espaços-tempos da narração e da criação. Independentemente de tudo, vale ressalvar que cabe ao leitor deixar-se levar nesta viagem ilusória (ou nesta experiência de leitura), sem preocupação com o processo de combinação dos episódios narrados, se não quiser interromper o fluxo da narração e quebrar a conexão com o mundo secundário do conto.

Por esta rápida leitura da configuração actancial e estrutural da obra, percebemos, desde logo, o tipo de desafios que o álbum de MB coloca ao leitor e que, traindo o sistema convencional da representação textual e visual, desperta a sua atenção para a construção do universo ficcional. Numa experimentação desconcertante e,

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Como informa Gérard Genette, a metalepse do autor consiste em «transformer les poètes en héros des faits qu’ils célèbrent [ou à] les représenter comme opérant eux-mêmes les effets qu’ils peignent ou chantent’» (Fontanier, 1968, apud Genette, 2004: 10).

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diríamos quase, surrealista, evidenciando as qualidades subversivas e lúdicas do género, MB também faz do jogo metaficcional − ou deste tipo de «fictional writing self- consciously and systematically draws attention to its status as an artifact in order to pose questions about the relationships between fiction and reality» (Waugh, 1984: 2) − a sua marca registrada.