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A ilustração: um carimbo autoral em transformação

I. PROLEGÓMENOS PARA O ESTUDO DO ÁLBUM ILUSTRADO

2. Para uma poética do álbum

2.3. A ilustração: um carimbo autoral em transformação

Considerada uma das áreas de mais fértil evolução no quadro da literatura para a infância, o crescimento da ilustração no álbum deve-se a um maior investimento gráfico, notável a vários níveis. Nestas publicações, as imagens ocupam a quase totalidade das páginas, de tal modo que entre elas se constrói uma relação de continuidade. Por outro lado, à medida que foi conhecendo uma evolução, a ilustração foi aparecendo cada vez mais cuidada, cruzando uma multiplicidade de técnicas − desde o recorte, a colagem, o uso de materiais originais e diversificados, com recurso à textura e ao relevo, até à pintura ou à fotografia −, e permitindo uma amplitude quase infinita ao nível do jogo cromático, com efeitos relevantes no universo semântico da publicação.

«Contrapunto de imagen y palabra, donde la imagen narra lo no dicho por la palabra, o la palabra dice lo dejado a un lado por la imagen» (Bajour e Carranza, 2003:

s.p.), o álbum moderno é entendido como um objeto artístico, cuidadosamente

elaborado, que conjuga ilustração, texto e design numa unidade estética e de sentido. Ao lado do escritor, o ilustrador desempenha um papel não menos relevante, enquanto criador de obras ilustradas para crianças. É esta razão que nos leva a refletir sobre a sua função que ultrapassa a mera repetição do texto. Em contraste com o livro ilustrado, em que «el texto pictórico es una pieza casi siempre ancilar respecto al texto» (Díaz Armas, 2008: 44), nascendo, mais frequentemente, de uma criação aposteriorística, o álbum contemporâneo resulta de um trabalho de colaboração entre os seus respetivos criadores, na busca de «una unidad en cuanto a los valores y la visión que defienden» (idem, ibidem: 44-45). Se, em alguns casos, também pode caber ao ilustrador do álbum

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a recriação icónica de um texto verbal72, ou mesmo, em situações menos comuns, assistir-se a uma criação simultânea, o autor das imagens é ainda, no mais das vezes, quem assume o papel do escritor, concebendo e entrelaçando ambos os discursos na criação de uma mensagem global.

Mas pensar no álbum como um “sistema coerente” (Van der Linden, 2003) implica considerar a sua natureza tridimensional (Nières-Chevrel, 2009): «Les albums iconotextuels sont des albums dont les liens entre le texte, l’image et le support sont insécables. Rompre ces liens […], c’est détruire tout ou partie de l’œuvre» (idem,

ibidem: 119). Digna de nota é ainda, por tal, a participação do designer73 – terceiro autor do livro, que pode, igualmente, coincidir com o ilustrador – enquanto criativo responsável pela mise en page das manchas verbal e pictórica, e pela conceção gráfica do livro, num objeto artístico, específico e único. Conquanto ainda não tenha sido alvo de merecido estudo aprofundado74, o desenho gráfico do álbum desempenha relevantes funcionalidades ao nível da construção da significação e da narratividade, resultando de opções importantíssimas e, não raras vezes, cruciais para a apreensão global da obra.

Na verdade, a exploração de elementos peritextuais (como as capas/contracapas, guardas, páginas de rosto, quebras de página, e.g.) possibilita ao leitor «o desenvolvimento de mecanismos de previsão textual no plano da lógica narrativa, da caracterização e evolução das personagens, do tom da história e da própria apreciação estética das ilustrações, entre outros aspectos» (Gomes, 2009: 78). À diferença do romance ou do próprio conto ilustrado, os peritextos do álbum podem, pois, cumprir um papel capital, excedendo a mera função decorativa e integrando, não raro, ao lado das ilustrações, o sistema de comunicação do livro. Visto resultar, com frequência, da responsabilidade do ilustrador, surgindo com propósitos concretos na configuração da mensagem, a componente gráfica deve ser considerada como parte integrante de um conjunto coerente.

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E note-se, neste caso, o papel do escritor que escreve para “ser ilustrado”, adaptando os seus textos de modo a conceder espaço à narrativa visual.

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Relembre-se que a qualidade mais imediata do álbum se prende, seguramente, com o seu caráter artesanal. Como refere Kenneth Marantz (2005), basta acreditar que as figuras podem ter múltiplos significados, dependendo da forma como surgem dispostas.

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Neste domínio do álbum, o trabalho porventura mais relevante fora o de Lyn Ellen Lacy, Art

and design in children’s picture books: an analysis of Caldecott Award-winning illustrations, vindo a

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Por outro lado, são vários os autores que começam a dominar a gramática visual

do álbum, enunciada por Brian Alan Hornberg (2004), e para cuja relevância haviam já

alertado Perry Nodelman, em Words about pictures: the narrative art of children's

picture books (1990), ou David Lewis, em Reading contemporary picturebooks: picturing text (2001). Com base na teoria semiótica funcional da imagem e, mais

especificamente, no estudo proposto por Gunther Kress e Theo Van Leeuwen, em

Reading images. The grammar of visual design (1996), encontram-se algumas análises

pertinentes75. Numa organização retórica que confere unidade à publicação, a gramática visual do álbum cruza distintos níveis de leitura, a saber: o lexical (relativo a elementos, como o texto, a linha, o volume, e.g.), o morfológico (que diz respeito à forma, valorizando componentes como o tamanho, a cor, a textura, etc.), o sintático (concernente à sua dimensão estético-funcional e, logo, incidente sobre aspetos como a composição, a perspetiva ou o ponto de vista) e o semântico (respeitante ao sistema narrativo, à simbologia visual e ao jogo intertextual).

O quadro que ora se apresenta, baseado em leituras variadas e esparsas, descreve, mais detalhadamente, esses mesmos níveis de análise e o conjunto de normas/convenções pelas quais se regula a linguagem visual:

Quadro 1 − Gramática visual do álbum

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Sobre esta questão, vide, ainda, Schwarcz (1982), Doonan (1993), Suari Obiols (2004) e Moebius (2005).

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Ultrapassando a sua função primitiva, enquanto elemento decorativo, e configurando uma retórica específica, a imagem passa a «pertence[r] ao sistema de comunicação do livro, uma vez que a mensagem, sob a forma de narrativa ou não, se realiza, de forma articulada, por meio de textos e imagens» (Ramos, 2011a: 25). Como analisou Ana Margarida Ramos, em Livros de palmo e meio. Reflexões sobre literatura

para a infância (2007), e como em outro contexto também noticiámos76, a componente visual do álbum pode cumprir numerosas funcionalidades, que podem ir muito além do seu significado e surgir combinadas num único volume. Para além de atrair o olhar do leitor e despertar a sua atenção para elementos que, mediando a mensagem verbal, o

apoiam na descodificação e no alargamento do(s) sentido(s) do texto, a componente

pictórica do álbum funciona, ainda, como complemento essencial do texto, condensando-o e isentando-o de numerosas informações. A ilustração pode, ainda,

aprofundar o texto, prolongando as possibilidades narrativas e complicando, por

exemplo, o enredo e a antecipação, mas também aludir a elementos culturais e/ou quebrar os limites da ficção, iniciando o leitor no jogo intertextual/metaficcional. Em alguns casos, ainda, as imagens podem contradizer o texto ou mesmo substituí-lo, preenchendo as suas lacunas ou apontando outros caminhos de leitura.

Alertando para a importância do papel do ilustrador na construção de uma linguagem híbrida, Blanca-Ana Roig Rechou e María Jesús Agra Pardiñas (2007) destacam o recurso a estratégias elaboradas e variadas a partir das imagens, para, nomeadamente, evitar a resolução das ações ou a ordem causal; construir narrações desestruturadas, nas quais o leitor é quem deve atuar para organizar ou completar o significado do relato; usar diferentes códigos para sugerir narrativas paralelas; apresentar sujeitos fragmentados; e, por último, jogar com formas convencionais ou elaborar novas linguagens plásticas.

O álbum requer, pois, da criança uma atenção acrescida, sendo levada a completar os inúmeros espaços em branco que os textos contêm e a articulá-los com as imagens que os acompanham. Luciana Souza (2002) fala-nos, a propósito, do surgimento de um “novo-leitor”, onde a imagem deixa de ter uma mera função ilustradora e vem enriquecer o texto, capacitando a criança não só para a leitura de

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novas formas visuais, como também para atuar na intersemiose imagem/texto.

Efetivamente, se o álbum tem sido, nos últimos tempos, alvo de atenções especiais é porque, nele, palavras e imagens se potenciam mutuamente, promovendo uma leitura particular por parte do recetor infantil, que é chamado a resolver os mais variados enigmas do texto e a articulá-los com as ilustrações. Para Jesús Díaz Armas, aliás,

es imposible entender o estudiar la ilustración sin tener en cuenta sus relaciones con el texto lingüístico, pero, por contrapartida, la ilustración ha llegado a ser tan importante en la Literatura infantil que prácticamente ningún aspecto puede tratarse sin tenerla en cuenta: temas, tópicos, símbolos, enfoques, proceso de lectura, recepción de la obra (Díaz Armas, 2008: 45).

A afinidade que o texto e as imagens mantêm no álbum deixa, pois, de se situar numa simples relação de proximidade espacial e de redundância semântica, residindo, antes, na sua coabitação e na sua interação (Nières-Chevrel, 2001).