• Nenhum resultado encontrado

I. PROLEGÓMENOS PARA O ESTUDO DO ÁLBUM ILUSTRADO

1. Apontamentos para uma história do álbum

1.2. No trilho do álbum moderno

No difícil contexto económico em que insere o pós-guerra, a produção massiva que invade o mercado do livro, influenciando a sua padronização, não impedirá, contudo, a criação de obras originais nem a influência da edição por parte de novas correntes. As grandes ruturas artísticas do início do século XX perturbam o domínio cultural e o período Art Déco caracteriza-se por uma produção significativa de livros ilustrados, mantendo o álbum o seu lugar de primazia e de renovação da publicação para a infância. Em França, cinco obras-chave ilustram, de forma expressiva, as especificidades do género e os estádios da sua evolução entre as duas guerras.

O livro pioneiro de Edy Legrand (1892-1970), publicado, em 1919, na Nouvelle

Revue Française (com a qual a editora se estreara, aliás, na produção infantojuvenil),

traduziu-se num autêntico golpe de mestre. Numa época em que a edição para a infância se mostra ainda pouco desenvolvida, Macao et Cosmage ou l’expérience du bonheur

34

vem renovar integralmente o álbum, tanto ao nível temático como do ponto de vista da conceção gráfica e do formato, invertendo o lugar predominante do texto sobre a imagem e orientando, desde as primeiras páginas, o olhar leitor para a vertente icónica. A sua paginação, em resultado do formato amplo e quadrado da obra, reduz o texto caligráfico (e de tamanho variável) a pequenos quadros, frequentemente dominados por uma extensão cromática da ilustração e dispostos em lugares significantes correspondentes. Num jeito eminentemente contemporâneo, numa linha expressionista de influência japonesa e realçada à mão de cores intensas num estilo Art Déco, a ilustração deixa de funcionar aqui como simples ornamento e passa a complementar ou, até mesmo, ultrapassar os sentidos do texto, apelando à atenção do leitor infantil para a compreensão e interpretação daquilo que não é verbalmente narrado. Em anos seguintes, o editor Alfred Tolmer10 (1876-1957) publicará uma série de obras originais para os mais novos, cujas configurações confirmarão a orientação artística do álbum (Van der Linden, 2007).

Benjamin Rabier (1864-1939), que conquistou grande popularidade com a famosa imagem publicitária de “La vache qui rit”11, versa a sua experiência em novas criações que atravessarão épocas. Modernizando a imagem no álbum para a infância, o caricaturista francês, considerado o mestre da antropomorfização animal, inaugura, em 1923, a série Gédéon, com que declara um verdadeiro domínio da composição da página, organizando, espacial e semanticamente, a disposição de ambas as componentes verbal e pictórica, em função da expressão elegida (Van der Linden, 2007). Em alternância com ilustrações de página inteira, a narrativa visual resulta, fundamentalmente, da decomposição em várias pranchas dos movimentos das personagens centrais (numa técnica próxima da da banda desenhada), imprimindo expressividade e dinamismo, e evidenciando os tempos fortes da ação.

Outro ponto culminante na história do álbum instaura-se, em 1930, com o primeiro livro vindo a público – em parceria com o escritor André Beucler (1898-1985)

10

O impressor e designer francês publicou, em 1930, um livro intitulado Mise en page: the

theory and practice of lay-out, uma obra sobre o projeto gráfico moderno e técnicas de design e, por

muitos anos, a única inspiração e grande referência neste domínio. 11

Recorde-se que Benjamin Rabier fora igualmente responsável pelas ilustrações a cores de um dos mais extraordinários clássicos da literatura portuguesa para a infância, o Romance da raposa, do incontornável romancista da primeira metade do século XX – Aquilino Ribeiro, editado, pela primeira vez, em 1924.

35

–, de uma artista plástica de origem russa, Nathalie Parain (1897-1958), que, a curto prazo, se afirmará com as principais ilustrações dos álbuns do “Père Castor” (Ronds et

carrés e Baba Yaga, 1932). Edição de luxo, Mon chat dota-se de uma particularidade

notória, sendo uma parte da sua tiragem vendida encadernada e outra em pranchas individuais destinadas à decoração de quartos infantis, autorizando, deste modo, diferentes apropriações da imagem (Renonciat, 2008). Ao lado de um texto breve, grafado com caracteres de grande dimensão, as ilustrações, cujo poder narrativo monopoliza, por si só, a atenção do leitor/apreciador, movem-se num espaço sem escala nem perspetiva, transgredindo quaisquer regras fixas/rígidas da composição da página.

No ano seguinte, a publicação de L’Histoire de Babar, le petit éléphant (na revista Le jardin des modes) traz um novo impulso à configuração imagética e textual do álbum. Numa autêntica obra artística, inteiramente concebida pelo pintor Jean de Brunhoff (1899-1937), a página e a dupla página são totalmente invadidas e dão lugar a uma linguagem global, diluindo-se as margens e articulando-se texto e imagem, num espaço narrativo onde ambos concorrem para a criação dos sentidos da história. O grande formato, a simplicidade do desenho, a escrita cursiva próxima dos seus destinatários preferenciais e a impedir a rutura visual entre texto e imagem, o uso de cores fortes e luminosas, a abundância e a precisão nos detalhes, bem como a configuração da página remodelam a paisagem gráfica do álbum. Perpetuados pelo filho Laurent de Brunhoff, os livros do “Babar” passam a ser editados pela Hachette, a partir de 1937, conhecendo, por largos anos, um enorme sucesso internacional junto do público infantil.

Ainda em 1931, a conceção do álbum é posta em causa pela criação artística de Paul Faucher (1898-1967). O livreiro e pedagogo francês vem redefinir a função do livro com os títulos inaugurais – Je fais mes masques e Je découpe – da sua série de

álbuns do “Père Castor”, e cuja finalidade primeira residia em favorecer a criatividade

infantil. Inspirado no modelo de publicação soviética, rompendo com a tradição do álbum artístico (onde a arte não se emancipa do luxo), Paul Faucher inventa o livro de atividades capaz de estimular as habilidades sensoriais, motoras, psicológicas e intelectuais da criança, aplicando o princípio da “pedagogia ativa” e propondo uma educação progressiva da sua inteligência, do seu olhar e do seu gosto estético e literário. Por outro lado, procurando atingir um número máximo de leitores, os seus livros, agora de capa mole e baixo custo, adotam o pequeno formato, sem, por isso, deixarem de

36

responder às exigências artísticas, guardando imagens expressivas e harmoniosamente coloridas, afastadas de qualquer distorção ou esquematização exagerada e redutora, e antes a transmitirem uma visão clara e sensível da realidade (Renonciat, 2008). Ao nível da configuração da página, os álbuns do “Père Castor” conferem especial atenção ao espaço visual/gráfico do livro e elevam o estatuto da imagem (do álbum), que se distingue da ilustração, surgindo elaborada numa linguagem formal de grande eficácia e numa relação com o texto particularmente criativa (Van der Linden, 2007). A elevada qualidade destas obras mantê-las-á, durante muitos anos, numa posição claramente dominante, sobretudo quando comparadas com a produção de massa do pós-guerra, nomeadamente, e a título de exemplo, com os volumes das séries “Petits livres d’or” (importados do modelo americano “Little Golden Books”) ou dos “Albums roses”, editados, no decénio seguinte, pela Hachette.

De um modo geral, os anos 30 do século XX correspondem a um novo período de renovação do livro para crianças e do álbum, em particular. Por esses anos, não só se evidencia o aprofundamento no seu tratamento temático, aparecendo, por exemplo, temas ligados às relações familiares e políticas, como também se alargam os territórios de intervenção dos álbuns que Jane Doonan (2005) apelida de “semieducacionais” – produzidos de forma massiva com o intuito de divertir e ao mesmo tempo instruir o público infantil –, ultrapassando os limites da França, e surgindo sucessivamente na Rússia, na Alemanha, ou até mais tarde, em Inglaterra, por meio dos livros “Puffin” (1941).

Contudo, durante a Segunda Guerra Mundial, o panorama editorial volve-se inevitavelmente lacunar: a escassez de papel e o desaparecimento de importantes ilustradores dificulta a produção e, ao longo desse período – e ainda depois, no caso da França, com a lei de censura de 16 de julho 1949 –, a edição de livros para crianças permanece muito limitada. Só perto da década de 50 do século XX, finda a guerra, se faz sentir um progressivo aperfeiçoamento no processo litográfico em offset, que fomentará, em anos seguintes, um forte desenvolvimento das possibilidades tecnológicas para a impressão de imagens com qualidade mais pictórica (Doonan, 2005).

37