• Nenhum resultado encontrado

A 7 de setembro de 1989 viria a conquistar, pelos originais desta obra, a “Maçã de Ouro” da Bienal Internacional de Bratislava, com a qual granjeara um prestígio

4. No âmago do álbum: sucessões e cruzamentos

4.1. Da (dupla) página e do espaço do livro

4.1.3. De uma página para a outra

Além destas questões de ordem conceptual, importar também refletir sobre a evolução da composição das páginas do álbum. Como confirmam alguns dos exemplos já mencionados, a sua mise en page caracteriza-se por uma elevada liberdade formal, permitindo uma variabilidade que não é arbitrária ou despida de significado.

A variação entre a ocupação da página inteira e dupla (ou vice-versa) terá, como se referiu já, diferentes funcionalidades, permitindo, entre outras, destacar uma personagem ou um momento nuclear da ação. Em Tobias fantasma, esta estratégia opera-se diante da oscilação entre os espaços físico e interior ficcionados, favorecendo a variação de perspetiva e focalização. Neste volume, onde Tobias toma, pela primeira vez, a palavra, para ir dando conta dos seus pensamentos e desejos mais íntimos, destaca-se uma sequência de páginas destinada a uma pausa reflexiva. A sua mise en

page apoia-se, em primeiro lugar, numa estratégia de centralização da imagem na

página simples, dando especial ênfase à expressão corporal/gestual, e, sobretudo, facial/emotiva da personagem. Mais adiante, a interrupção do narrador, que vem informar dos devaneios mais profundos do pequeno herói − «(Diga-se de passagem que, para o Tobias muiiiiiiito goluso, os bicos de lápis eram equivalentes aos rebuçados e chupa-chupas – as melhores das goluseimas!!!)» −, impele a intervenção súbita de uma dupla página profusamente ilustrada.

171

Figura 18 – Dupla página de Tobias fantasma

Se, por um lado, o recorte das imagens sobre o fundo branco, nas páginas precedentes, limita o olhar leitor à representação circunscrita; enquanto estratégia de sintaxe narrativa160, esta dupla página logra quase, por outro, transportá-lo para o âmago do universo/imaginário ficcionado, pela transcendência dos seus limites, rompendo com os marcos da realidade e os limites espácio-temporais.

Num virar de página, o leitor depara, pois, com uma profusão imagética, onde a energia cromática e a abundância de pormenores o atiram para um espaço fantasioso intenso: um universo repleto de doces, que, além de deliciar qualquer criança, a encanta pela presença de um carrossel de rebuçados, suscitando a ilusão. Conferindo estabilidade à imagem, o brinquedo, comummente associado aos parques de diversões, “gira” no centro desta dupla página, captando a atenção do leitor, cujas vivências o capacitarão para lhe atribuir determinadas qualidades. Numa composição sinestésica e visivelmente simbólica, a orientação e a forma deste elemento giratório estimulam não só a perceção visual do seu movimento circular, como a perceção auditiva de uma melodia ressonante, alargando a imaginação infantil e conferindo-lhe segurança pelo contacto com um universo familiar e divertido.

Desde logo, as primeiras páginas do álbum são um relevante indicador do género de composição gráfica em que se inscrevem. Uma organização variada ao longo dos primeiros conjuntos de páginas poderá indiciar uma mise en page evolutiva. Já, no caso

160

172

em que mantêm o mesmo tipo de arranjo, qualquer variação perante esse modelo inicial poderá ser entendida como uma rutura, dotada de um efeito de espetacularidade. Um dos modelos mais clássicos, e igualmente distinguível na obra de MB, faz intervir, numa organização dissociativa do texto e das imagens, uma dupla página única e amplamente ilustrada, para logo regressar ao tipo de composição inicial − podendo inverter-se a ordem das páginas reservadas a cada discurso.

Privilegiando uma distribuição (quase) estável, com o texto grafado na página da esquerda e as ilustrações na página da direita, unidas por um fundo homogéneo − onde os espaços brancos/vazios envolventes são parte integrante da imagem −, MB opta, n’O

livro do Pedro, por conferir um lugar destacado à imagem. Estruturado com base em

dois níveis diegéticos161, a componente visual oscila entre o formato sangrado, na narrativa de primeiro nível, e o recurso a uma moldura virtual, na narrativa encaixada. Uma estrutura gráfica que impele o leitor a passar, de forma sucessiva e alternada, da observação atenta da imagem à leitura de um texto breve, prolongando o ritmo de leitura162.

Porém, se cada dupla página parece sugerir um universo autónomo, não deixam, no seu conjunto, de estar frequentemente ligadas entre si, propondo, na sua sequencialidade, uma progressão. Veja-se, na narrativa encaixada, como entre imagens soltas ou individuais, MB introduz uma página dupla profusamente ilustrada e, praticamente, desprovida de texto. Ganhando espaço na largura e na altura, a ilustração invade, subitamente, a dupla página – e o espaço reservado à mancha textual – para chegar ao seu ponto culminante163. Com efeito, depois de partilhar e descrever muitas experiências vividas com os pais, Maria conduz-nos, por meio de uma prolepse, ao episódio mais enigmático desta história – o seu oitavo aniversário –, ocasião para a qual Pedro e Paulo lhe reservaram uma surpresa, mas cuja revelação apenas se concretiza na dupla página que a encerra. Tanto ao nível sintático como tipográfico, o texto verbal surge claramente dominado pelas ilustrações, sendo deslocada para a componente pictórica a única palavra que o enforma − «avóóó» −, uma espécie de icono-texto ou de

161

A saber, “O Livro do Pedro” dentro d’O livro do Pedro. 162

Vide Gutiérrez García (2002) e Van der Linden (2007). 163

A propósito da “técnica de sintaxe narrativa”, leia-se a análise pertinente de Jesús Díaz Armas (2003a) sobre a amplitude tomada pela ilustração em Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak. Vide, ainda, Gutiérrez García (2002).

173

“texto intraicónico” (Nikolajeva & Scott, 2001) que sugere a resposta ao enigma criado.

Figura 19 – Dupla página d’O livro do Pedro

Ao nível da sua composição, a orientação gráfica da linha de texto também adquire uma particular relevância, imprimindo movimento e dinamismo, reforçados pelo crescimento dos caracteres que acompanham o andar da menina – ultrapassando, inclusivamente, a margem virtual superior da imagem − à medida que ela se aproxima da avó. A ocupação da dupla página mostra-se, de facto, favorável a este efeito de deslocação espacial, concretizando detalhadamente todos os movimentos de Maria, numa animação a que Manuel Jorge Carvalho chamaria de «frase narrativa» (Carvalho, 2005: 51). Deparamos, assim, com uma repetição pictórica, caracterizada não só pela ocorrência sequenciada da personagem, que nos remete para um encadeamento de

frames, e que o próprio cenário de fundo (um campo de girassóis) também acompanha,

como pelas suas sucessivas expressões faciais e corporais, que comunicam, de forma luminosa, a felicidade da menina. A propósito e entre parênteses, sublinhe-se a aproximação desta técnica ao cinema de animação, atividade cara a MB.

Além disso, o lugar reservado a esta dupla página, no final do livro que Maria tem nas mãos, também serve a passagem para um novo núcleo narrativo ou o regresso à narrativa (e à composição gráfica) principal, imprimindo circularidade à publicação/diegese. A própria ocupação da página inteira, na narrativa de primeiro nível, corrobora a ideia da progressão visual na sequencialidade das páginas do álbum, uma vez que direcionam e atraem o olhar para a continuação do livro. A comprová-lo, atente-se na linha de terra, «plana» e «levemente acidentada» (Maia, 2004: 8), que

174

conduz a ação, convidando o leitor a ligar cada dupla página à seguinte e a estabelecer relações entre elas.

Em contraste com a composição dissociativa d’O livro do Pedro encontra-se a

mise en page do álbum Sebastião. Inserida na tipologia do wordless picturebook, esta

narrativa de caráter dúplice abre-se com uma sucessão de duplas páginas sangradas, cuja progressão sequencial dos detalhes e da cor comunica uma evolução. Materializando uma transfiguração do real, associada à passagem do menino-herói para o universo fantasioso, a variação compositiva das primeiras páginas do álbum confere fluidez à leitura. O crescimento gradual da imagem, o seu transbordo progressivo para as páginas seguintes − ora mostrando ações e imprimindo movimento, ora configurando os espaços nos quais se move a personagem −, convida a uma leitura natural, cadenciada, e a um virar de página quase impulsivo.

Por seu turno, a intervenção de uma mancha vocabular nas suas páginas finais vem suscitar uma rutura com esse universo fantasiado, incitando o regresso à realidade. O único vocábulo presente – coincidente com o nome do protagonista e já retomado no título – entrelaça-se com a imagem através de um balão de fala, permitindo que ambas as mensagens se percebam de forma global. Instaurando, igualmente, uma pausa na leitura, a «voz que chama Sebastião e que acaba por representar o som da ordem, do real e, de certa forma, da punição» (Silva, 2010: 70) vem quebrar o silêncio − baseado no próprio silenciamento da palavra – do espaço aquático que serve de cenário à evasão e ao imaginário do menino-herói.

Mas a «interrupção brusca do convívio com a profundidade do mar» (Pinheiro, 2010: 57), o regresso forçado à realidade influenciará a composição das páginas seguintes. Descritas pela perda da cor, as ilustrações regressam ao seu «estado de quase monocromia, inerente à realidade» (Pinheiro, 2010: 57), que a voz da mãe (supõe-se) imediatamente retoma e que a própria linha de terra evoca igualmente.

Vemos, assim, que quanto mais firme e evidente for o tipo de composição nas primeiras páginas, mais eficaz se tornará a rutura na captação da atenção do leitor, sendo que, por vezes, apenas as imagens são alvo de tais variações. Enquanto a manutenção da composição dissociativa produz um ritmo regular e monótono, a única inversão das páginas de texto e de imagem estimulará, por si só, o leitor. Quer intervenham na organização das páginas, quer na sua sequencialidade, estas alterações agitarão os hábitos e as expectativas do leitor, conferindo um peso diferente à

175 mensagem.

Em jeito de remate, a apreciação global dos álbuns de MB permite perceber uma variedade de composições da página, resultante de uma notável virtuosidade artística. Seja pela distinção, pela justaposição ou mesmo pelo entrelaçamento do texto e das imagens, estas composições respondem a exigências narrativo-expressivas, desempenhando funções relevantes na construção dos sentidos da obra e na criação de um universo coerente. Porque os princípios da mise en page no álbum se devem compreender numa relação estreita com a dupla página e porque desta também advém uma relação particular com o livro, evidencia-se a importância da sua leitura num eixo de sucessão das páginas e das imagens.