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I. PROLEGÓMENOS PARA O ESTUDO DO ÁLBUM ILUSTRADO

1. Apontamentos para uma história do álbum

1.1. Origens e evolução

Embora os estudos histórico-críticos consagrados ao álbum sejam escassos, devemos à investigadora francesa Sophie Van der Linden a mais ampla e rigorosa análise – Lire l’album (2007), onde a autora situa e caracteriza o género, tanto no seu contexto histórico como editorial, constituindo uma das principais referências, certamente a mais pertinente e imprescindível para o estudo do álbum. Além de outras aportações bibliográficas de interesse, devidamente referenciadas ao longo do capítulo, seguiremos, ainda, pari passu, as cronologias de Annie Renonciat (2009), de Olivier Piffault (2009), de Michel Piquemal e Cendrine Genin (s.d.) (membros da BnF - Centre

national de la littérature pour la jeunesse - La Joie par les livres – Secção Francesa do

IBBY) e outra mais recentemente traçada por Teresa Duran (2009), por constituírem outras referências centrais e úteis na abordagem de uma história do álbum ilustrado para a infância.

Desta feita, como forma de alcançarmos uma visão histórica do segmento editorial em análise, assinalemos algumas das criações mais relevantes e que marcaram os principais pontos de viragem no trilho da sua evolução.

Certos estudos relacionam o seu aparecimento com o primeiro livro didático ilustrado destinado à infância – o Orbis Sensualium Pictus de Comenius (1592-1670), publicado em 1658, e que, apoiado na ilustração enquanto elemento decisivo na transmissão de saberes e no desenvolvimento educativo da criança, testemunhava já de uma relação estreita entre texto e imagem. Outros tendem a situá-lo nos meados (e finais) do século XIX, com o nascimento de novas casas editoriais, nomeadamente em

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França, como a Hachette (1826) ou a Larousse (1852), que deram um forte impulso ao desenvolvimento do género, assim como de obras reveladoras de uma interdependência visível entre os discursos verbal e icónico, como por exemplo em Der Struwwelpeter (1844) de Heinrich Hoffmann (1809-1894), na obra de Randolph Caldecott (1846- 1886), considerado por muitos como o precursor deste encontro de linguagens, ou ainda, mais tarde, nos célebres contos de “Pedrito Coelho”, nascidos em 1901 pela mão de Beatrix Potter (1866-1943).

Na verdade, apesar de a sua origem não ser consensual, teremos de recuar cerca de dois séculos se quisermos ouvir pela primeira vez o termo “álbum”5, surgido, em França, em 1820, para designar uma recolha de gravuras ou litografias, impressa e habitualmente encadernada num formato de paisagem, e de temática artística, caricatural, paisagista ou monumental. Seguidas de um comentário didático ou moralizante, estas “estampas” apoiariam, mais tarde, a narração de histórias de cariz instrutivo e educativo junto do público infantil, retomando, algumas, grandes clássicos da literatura infantojuvenil (La Fontaine en estampes, Contes de fées en estampes,

Civilité en estampes, etc.), e revestindo-se, portanto, das funções pedagógicas,

documentárias e educativas que se lhe associavam desde as suas origens.

Com este primeiro formato, o álbum assinala um período notável na história do livro – uma “espécie mutante” criada para a veiculação de imagens, a inverter a primazia milenar do texto sobre a imagem (Renonciat, 2008). Ainda assim, a importância secundária do texto não se media em termos quantitativos – ocupando a componente textual um número de páginas frequentemente superior às imagens – mas antes ao nível do seu estatuto: sob a forma de um comentário ou extensão de gravuras, ou até mesmo de um simples título ou legenda, o texto era, então, concebido numa dependência mútua.

Nesta sua forma primitiva, o álbum afasta-se do sistema organizado do livro,

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Referimo-nos aqui ao uso contemporâneo do termo, que aparece, em 1820, com a emergência do novo suporte editorial referenciado. Não desprezamos, contudo, as origens da palavra álbum (acusativo do latim albus – branco) que designava, já na Antiguidade, um suporte ou uma espécie de tábua, rebocada com gesso e utilizada para a inscrição de registos oficiais. Nos séculos XVI e XVII, na Alemanha, o album amicorum corresponde a um pequeno caderno de páginas brancas que os estudantes universitários usavam para recolher dedicatórias de amigos e estudiosos. A partir dos meados do século XVIII, o termo álbum passa a designar um caderno de viagem destinado a acolher notas e esquissos de artistas sem intenções de difusão (Renonciat, 2009).

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fugindo ao princípio de sucessividade que a leitura exige, e podendo, assim, ser apreendido numa qualquer ordem. Por outro lado, trata-se já de um produto editorial peculiar, dotado de uma capa atraente e cuidada e de um formato oblongo concebido para a reprodução de gravuras de página inteira. Intimamente ligado ao desenvolvimento da litografia no início do século XIX6, o álbum começa, desde então, a ser visto como um objeto artístico, pela reprodução fiel de criações autorais (desenhos e caricaturas), que assegura uma divulgação ampla e popularizada. De forma rápida e progressiva, a sua produção diversifica-se ao longo desses anos e procura responder a uma larga variedade de gostos.

Na origem também daquela que hoje, e só há pouco anos, chamamos de banda desenhada, o genovês Rodolphe Töpffer (1799-1846), que, com recurso ao procedimento litográfico, se lança, em 1833, na publicação de «sete álbuns em formato oblongo […], traduzidos e divulgados um pouco por toda a Europa estabelecendo um padrão de narrativa gráfica» (Cotrim, s.d.), inventa uma nova forma de articular texto e imagens, que o próprio designou de “literatura em estampas”, acrescentando numa nota sobre o primeiro livro:

Ce petit livre est d’une nature mixte. Il se compose d’une série de dessins autographiés au trait. Chacun de ses dessins est accompagné d’une ou deux lignes de texte. Les dessins, sans ce texte, n’auraient qu’une signification obscure; le texte, sans les dessins, ne signifierait rien. Le tout forme une sorte de roman, d’autant plus original qu’il ne ressemble pas mieux à un roman qu’à autre chose (Töpffer, 1837, apud Van der Linden, 2007: 13).

Essa natureza mista do livro acentua-se e ganha uma nova faceta na obra que determinaria, dez anos depois, uma primeira viragem no domínio da criação de álbuns para crianças, a coletânea que o psiquiatra alemão Heinrich Hoffmann escreveu e ilustrou para o seu filho de quatro anos, e que encabeça com o título do seu primeiro conto – Der Struwwelpeter (Pedro esgrouviado). Embora compreendesse mais do que uma narrativa, este volume original tolerava já um diálogo pictórico-verbal particularmente notório.

Na segunda metade do século XIX, ainda que novas orientações tenham

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Relembre-se que foi em Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, que a imagética popular alimentou a corrente original e inventiva que inspiraria então a ilustração do livro para crianças no resto da Europa – a litografia –, e que conservava toda a qualidade do desenho, ao mínimo traço.

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contribuído para a renovação do género (voltando-se para a fotografia de viagem ou, inversamente, para a gravura original), a produção de álbuns para adultos enfrenta uma recessão significativa, ganhando a edição para crianças uma dimensão dinâmica e inovadora proeminente, e evidenciando uma maior abertura a influências internacionais. Num período em que perduram algumas obras para crianças de qualidade literária inferior, o álbum conhece, simultaneamente, um boom sem precedentes, devido aos avanços tecnológicos da época, nomeadamente com o surgimento da cromolitografia em 1845 (ou mais tarde, em 1872, com a fotogravura a traço).

Essas evoluções comprometem-se, em França, na década de 1860, nomeadamente com a chegada de um novo e brilhante fenómeno editorial – as coleções. A série de “álbuns Trim” é lançada pela Hachette com Pierre l’ébouriffé, joyeuses

histoires et images drôlatiques pour les enfants de 3 à 6 ans, versão francesa adaptada

do clássico universalmente traduzido Struwwelpeter por Louis Ratisbonne (de pseudónimo Trim) (1827-1900). Em parceria, ainda, com esta editora, Charles Albert d'Arnoux, mais conhecido por Bertall (1820-1882), experimentará combinar textos e imagens em obras de que é, simultaneamente, autor e ilustrador (Mademoiselle Marie

sans soin, 1867). Por sua vez, consequente do seu desejo (aliado às evoluções técnicas)

de iniciar uma literatura especificamente dirigida à infância, o editor Hetzel publica a coleção de “álbuns Stahl” (197 volumes entre 1862 e 1913), de autoria preferencialmente partilhada com o ilustrador dinamarquês Lorenz Froelich (1820- 1908), e da qual resulta o célebre volume La journée de Mademoiselle Lili (1862). Estes álbuns, destinados aos mais novos (dos 3 aos 6 anos), cujas narrativas se centram principalmente em personagens infantis, adotando deliberadamente a imagem o seu ponto de vista, orientam a produção para novas direções, numa rutura clara com as formas românticas: o formato oblongo é substituído por um formato vertical, a cor surge em todo o seu esplendor7 e a cartonagem anima-se. A imagem deixa de aparecer isolada, e passa a associar-se (ou, até mesmo, entrelaçar-se) ao texto para contar uma história, transmutando este tipo de livro num género narrativo em que ambas as componentes se conjugam para imprimir ação e temporalidade.

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Embora aparecessem, já, algumas reproduções a cores, o seu uso, na época romântica, era raro, sendo progressivamente desenvolvidos, na segunda metade do século XIX, diversos procedimentos, nomeadamente manuais, de entre os quais teve maior êxito o stencil.

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É igualmente nos anos 60 do século XIX que edições francesas como a Hachette e a Capendu procuram a difusão dos chamados livros animados. A produção destes volumes – cuja tipologia emanara daquele que será certamente tido como o primeiro livro interativo, Le livre-joujou (1831) de Jean-Pierre Brès (1782-1832) – aumentará a partir dos anos 50, principalmente no Reino-Unido, onde a casa editorial Dean e o seu concorrente alemão Ernst Nister desenvolveram os seus principais dispositivos: livros com janelas ou abas de puxar e correr, livros com figuras animadas a privilegiarem o divertimento dos seus leitores. Contudo, a dedicação tardia e a falta de inovação neste domínio conduziram ao declínio da edição desse tipo de obras na viragem do século, em resultado, ainda, do seu elevado custo de produção, num contexto, refira-se, de mecanização da produção do livro.

Em 1865, vinte anos depois de Heinrich Hoffmann, o ilustrador alemão de imprensa satírica Wilhelm Busch (1832-1908) imprime, em Max und Moritz, as bases daquela que viria a ser outra modalidade de álbum. Com páginas onde se alternam sucessivas vinhetas e curtos fragmentos textuais, esta série infantil ajudaria «a desenhar o rosto da bd tal como o conhecemos [hoje]» (Cotrim, s.d.).

Com o aperfeiçoamento das técnicas de impressão e produção, nomeadamente com a ajuda do impressor Edmund Evans (1826-1905), em Inglaterra, Walter Crane (1845-1915) e Kate Greenaway (1846-1901) criam, nos anos 1870, os “Toy books”, manifestando um interesse particular pelo suporte e pelos seus recursos visuais, e dedicando já alguma atenção à decoração da ilustração. A unidade narrativa formal entre texto, imagem, cor e tipografia também avulta numa das célebres obras a que Kate Greenaway dá à estampa em 1866 – o abecedário ilustrado A apple pie. Considerado um precedente emblemático do álbum ilustrado para a infância, este modelo conheceu grandes seguidores, nomeadamente na Rússia, com Ivan Bilibin (1876-1942), que ilustrou, em 1907, os Contos de Aleksandr Pushkin (Duran, 2009).

Mas, na verdade, quem trouxe, até à data, maior sofisticação à relação pictórico- verbal foi Randolph Caldecott (1846-1886). O ilustrador britânico, que Maurice Sendak tinha por inventor do álbum moderno (Van der Linden, 2007), experimenta enlaçar textos e imagens de sentidos complementares – uma harmonia que o autor resume numa «síncopa rítmica de palabras e imágenes» (Sendak, 1988, apud Salisbury, 2005: 11). Fazendo nossas as palavras de Martin Salisbury, «antes de Caldecott, la ilustración solía repetir lo que contaba el texto, mientras que con él quedaron tan unidos que la única

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forma de captar plenamente su significado era verlos como un todo» (Salisbury, 2005: 11). O contributo da obra de Caldecott no desenvolvimento da ilustração é, ainda nos dias que correm, homenageado com a Medalha Caldecott, concedida anualmente, pela

American Library Association, ao ilustrador do mais destacado livro ilustrado

estadunidense para a infância publicado naquele ano8.

A influência de Caldecott, Crane e Greenaway difundiu-se e a colaboração mantida com Edmund Evans teve fortes reflexos no movimento estético Arts & Crafts (Salisbury, 2005). Embora fizesse frente aos avanços da indústria, este movimento durou relativamente pouco tempo, inspirando, antes, o estilo francês da Arte Nova, considerado por muitos como uma das principais raízes do modernismo no domínio, entre outros, do design gráfico. Em poucos anos, a influência destes criadores ultrapassou a Europa, chegando de forma vigorosa aos Estados-Unidos, onde a ilustração começou a prosperar com figuras tão marcantes como Howard Pyle (1853- 1911) ou alguns dos seus seguidores, Jessie Willcox Smith (1863-1935), Oliver Rush (1873-1966) e Newell Convers Wyeth (1882-1945).

Perante a recessão da criação literária, em França, o álbum converte-se, a partir de 1880, num espaço de renovação da edição para os mais novos, diversificando, exponencialmente, as suas formas e o seu público. Sensíveis às artes decorativas, vários pintores famosos trazem um novo fôlego ao livro para crianças e motivam a produção de “álbuns artísticos”. Nestes livros de elevado custo, apresentados num formato superior e a integrarem um número considerável de gravuras a cores, a imagem excede as suas funções tradicionais de recreação e instrução, iniciando a criança na apreciação do “belo” (Renonciat, 2008). Os primeiros do género são os álbuns do pintor Louis- Maurice Boutet de Monvel (1851-1913), publicados, em 1883 (Vieilles chansons et

rondes pour les petits enfants) e 1884 (Chansons de France pour les petis français) nas

edições Plon. Primeiro ilustrador do simbolismo francês, os seus traços lineares e simplificados, assim como as suas estampas em cores suaves, mostram estar ao serviço da clareza e da legibilidade da imagem, da promoção do “bom gosto” e da visão de um universo infantil idealizado (idem, ibidem). Boutet de Monvel interessa-se pelo espaço do livro e dedica alguma pesquisa ao tratamento da dupla página, relacionando imagens

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Recorde-se que, a par da Medalha Newbery, a Medalha Caldecott é o mais prestigioso galardão norte-americano dedicado à ilustração infantojuvenil.

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ou sobrepondo o texto em molduras opostas na ilustração (Van der Linden, 2007). Este tipo de obras artísticas insere-se em edições de luxo, tal como os “álbuns históricos”, já dirigidos a um público maior, por responderem a objetivos diferentes, integrando grandes pranchas especialmente consagradas às glórias nacionais – e de que são autores mais conhecidos Georges Montorgueil (1857-1934) e o pintor Jacques Onfroy de Bréville (Job) (1858-1931).

Paralelamente, a impressão em quadricromia, que vem substituir, no último quartel do século XIX, os empolados efeitos da cromolitografia, motiva, em Inglaterra, a (quase obsessiva) experimentação por parte de importantes aguarelistas e traz à componente imagética um enorme apuro estético. Referência na ilustração, Beatrix Potter (1866-1943) é quem vem definir o género literário para a infância com as suas célebres histórias de “Pedrito Coelho”, inauguradas, em 1901, com The Tale of Peter

Rabbit (Ramos, 2007). Harmoniosamente combinadas com o texto verbal e marcadas

pela graça e pela leveza do traço, as suas pormenorizadas ilustrações refletem a expressividade/afetividade, o humor e a antropomorfização das personagens, nas quais o pequeno leitor facilmente se projeta, e delimitam claramente a produção editorial subsequente.

Embora ambos se apoiem num “texto pretexto” com vista à promoção de uma obra gráfica, “livro ilustrado” e “álbum” respondem, doravante, a conceitos distintos e únicos. O grau de iniciativa e a prioridade concedida ao artista na conceção e execução da obra, a predominância da imagem e o estatuto secundário do texto (abreviado ou reescrito9), a apropriação pela imagem dos privilégios da escrita, nomeadamente da sua função narrativa, a exploração visual da tipografia e das especificidades materiais do suporte (formato, dupla página e quebra de página), bem como o investimento da imagem em novos espaços do livro (capa/contracapa, guardas, página de rosto, etc.), constituem as características próprias do álbum na viragem do século XX (Renonciat, 2008).

É, pois, no contexto francês que nascerá, em 1911, o “álbum de artista”,

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A propósito dos álbuns artísticos – nascidos, relembre-se, pela mão de Boutet de Monvel –, Annie Renonciat (2009) informara, já, que esse tipo de obras se aproximava de uma antiga tradição do livro ilustrado, em que o artista se apoiava no repertório canónico da literatura oral ou escrita para a criação de uma obra original, contribuindo, deste modo, para a releitura e a atualização desses mesmos textos.

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nomeadamente em Drôles de bêtes, com que André Hellé (1871-1949) apreciará a arte por excelência de apropriação do suporte pelos seus criadores, responsabilizando-se não apenas pela conceção do texto e da ilustração, como também pela escolha da tipografia e pela própria paginação, convertendo o álbum num domínio privilegiado e específico de expressão artística, e abrindo caminho às mais originais criações dos séculos XX e XXI (Renonciat, 2008).

Assim, em vésperas da Primeira Guerra Mundial, e perto de um século após o seu surgimento no panorama editorial francês, o álbum ilustrado para a infância ganha uma nova dimensão, abraçando um vasto leque de obras, com formas, formatos, conteúdos e funções variados, no culminar de uma criação gráfica diversificada, inovadora e de qualidade. O ideal revolucionário que acompanha a Revolução Russa de 1917 dará rapidamente conta da falta de publicações para crianças, influenciando a sua proliferação através do suprematismo e de outros movimentos vanguardistas: «Bulanov, Deineka Ermolaieva o, sobre todo, Levedev […] son los grandes creadores de una edición infantil renovadora en todos los aspectos» (Duran, 2009: 205). Alguns dos artistas formados pela escola russa chegarão a Paris, ao longo das décadas de 1920 e 1930, aliando-se ao editor e pedagogo Paul Faucher (1898-1967) (idem, ibidem).