• Nenhum resultado encontrado

I. PROLEGÓMENOS PARA O ESTUDO DO ÁLBUM ILUSTRADO

1. Apontamentos para uma história do álbum

1.3. O álbum no pós-modernismo

1.3.2. O triunfo da imagem

Em França, num período em que o álbum é concebido como um gesto artístico e em que a edição para a infância prolifera de forma declarada, várias casas editoriais (Éditiond du Rouergue, Mountain Ash, Thierry Magnier, Rue du Monde, etc.), mais ou menos efémeras, marcam uma nova viragem, pela orientação das suas produções numa linha de criatividade artística, abrindo espaço a experimentações renovadas.

Enquanto, para certos criadores, a ilustração continua a desempenhar um papel instrumental, para outros – como provara já Iela Mari, em anos anteriores – a escrita deixa de ser portadora de conteúdo, passando a ilustração a ocupar o seu lugar e a assumir-se como escrita visual. Destaque para o caso emblemático da obra L’album

d’Adèle, com que Claude Ponti se estreara, em 1985, no mundo do álbum ilustrado, e

que, além do formato excecional que apresenta, da elevada gramagem do seu papel e da qualidade gráfica e cromática das suas ilustrações, surge, quase exclusivamente, composta por imagens, à exceção do título e de uma nota final elucidativa do propósito do livro. Num estilo próximo do do livro de imagens e, até, do de certas bandas desenhadas, tirando partido das formas e do jogo, as suas páginas povoam-se de uma multiplicidade de pequenos objetos e figuras caricaturais, e transpõem o leitor – interrogado e expectante – de um universo inicialmente bem estruturado para um cosmos progressivamente delirante, fantasioso e onírico, capaz de desconcertar não só pequenos como grandes leitores.

Nos anos 90, os procedimentos editoriais amplificam-se e conferem magnitude ao álbum contemporâneo. Uma nova onda criativa instaura-se e renova o seu tratamento. É nesse quadro que emergem algumas das figuras internacionais mais relevantes e a constituírem, ainda hoje, o grupo veterano deste segmento do sistema literário para a infância. Pensemos, por exemplo, em Anthony Browne, atualmente considerado como um dos mais talentosos e imaginativos criadores de álbuns ilustrados, a quem o IBBY concedeu, em 2000, o Prémio Hans Christian Andersen, pela globalidade da sua criação plástica; em Babette Cole, autora de uma obra consistente (contando com mais de 70 álbuns publicados) e indiscutivelmente original, com que foi granjeando algumas das mais importantes distinções (como a Kate Greenaway Medal, sucessivamente auferida em 1986 e 1987); em David McKee, que, desde 1989, tem já editados mais de vinte títulos na série mundialmente conhecida de “Elmer”, o elefante

46

multicolor – personagem inspirada na obra do pinto suíço-alemão Paul Klee; ou, ainda, no holandês Max Velthuijs (igualmente vencedor do Prémio Hans Christian Andersen, na categoria “ilustrador”, em 2004), cujos álbuns mais populares integram outra das séries emblemáticas da década de 90, protagonizada pel’ “O sapo”, e onde o autor versa, com humor e especial sensibilidade, tópicos como a busca de identidade, o amor, a solidariedade, a discriminação, o medo ou, até, a morte.

Em França, tal como Jacques Binsztok, fundador, nessa mesma época, da secção juvenil das edições do Seuil, Olivier Douzou, escritor/ilustrador e diretor das Éditions du Rouergue (entre 1994 e 2002), mostrou-se preocupado em criar álbuns resolutamente artísticos (Jojo la mache, 1993; Luchien, 1996; etc.), desenvolvendo, ao nível do tratamento narrativo, um trabalho linguístico que interagisse não só com as imagens como com o conjunto das suas componentes formais, agora insertas num formato quadrado, onde a mensagem visual se revela essencial, passando a verbal a adaptar-se às representações gráficas, estilisticamente incomuns. No plano do conteúdo, o humor, as estratégias narrativas minimalistas e as opções temáticas são muito eficazmente mediadas em função do suporte e da materialidade das suas publicações.

A viragem de século é assinalada por um conjunto de criações que comprovam as mais recentes evoluções do álbum e a crescente valorização conferida à linguagem plástica, sobretudo nos últimos decénios, pelo recurso a uma multiplicidade de técnicas e de estilos cada vez mais originais e a uma aproximação manifesta à Arte Contemporânea. Ao nível estilístico, a renovação da ilustração para a infância em finais do século XX passa, entre outras técnicas, pela revelação da pintura e dos efeitos de luz que a ela se agregam, pelo emprego de técnicas, direta ou indiretamente, ligadas à fotografia, através, por exemplo, do recurso à modelagem e a volumetrias originais, ou, ainda, pelo uso de técnicas mistas, a incluírem o papel rasgado e outros materiais diversificados. Vejam-se, a título exemplificativo, os casos emblemáticos, em França, do exímio criador de álbuns ilustrados Christian Voltz (1967-), ou ainda, em Espanha, do criativo ilustrador Isidro Ferrer (1963-). Do ponto de vista formal, alguns artistas também se inspiram em processos narrativos da banda desenhada para a aplicação do recorte sequencial da imagem em seus registos gráficos.

A originalidade e a inventividade do setor editorial francês confirmam-se ainda, nesta época, pela ascensão de um outro fenómeno admirável: o desenvolvimento da chamada “pequena edição” (Edições Grandir, MeMo, Les Trois Ourses, etc.), que, numa

47

estratégia de inovação – e longe de reduzir-se à designação com que foi sendo rotulada –, procura a afirmação de uma liberdade estilística e se mostra empenhada na publicação de novos talentos, na difusão/tradução de obras estrangeiras ou na reedição de textos e autores esquecidos, garantindo, ainda, a sobrevivência de géneros pouco comerciais. Pela (re)descoberta de um conjunto de ilustradores franceses mas também estrangeiros, tais como Uri Shulevitz, Hitoshi Kamatsu, Katsumi Komagata, Kveta Pacovská ou Bruno Munari, para relembrar apenas algumas das vozes mais populares, vários desses pequenos editores, cujas opções, não raras vezes arriscadas, determinam a evolução subsequente da produção, distinguem-se na publicação de obras de criação artística stricto sensu. Outras pequenas casas como “L’Atelier du Poisson Soluble”, “Passage piétons” ou “Points de suspension”, que, ainda em dias atuais, se comprometem numa oferta de qualidade, exploraram novas tendências estéticas e levaram a cabo um trabalho perfeitamente atípico, caracterizado pela exigência, audácia e originalidade das suas publicações, e visível tanto ao nível das opções temáticas, como da componente gráfica, da técnica, do aspeto e da configuração dos seus livros-objetos.

Esta foi, igualmente, a aposta editorial da empresa galega Kalandraka, que, a 2 de abril de 1998 – coincidindo com o Dia Internacional do Livro Infantil –, se estreia com força e dinamismo num campo ainda praticamente desconhecido no âmbito espanhol19, lançando, só no primeiro ano, em distintas coleções, o número expressivo de 19 álbuns (Franco Vázquez & Mesías Lema, 2010). Partindo do panorama editorial corrente, Kalandraka arrisca num formato inovador, onde as ilustrações se despem da sua mera função auxiliar do texto e passam a interagir com ele, ocupando um lugar de igual ou maior peso narrativo e assegurando, deste modo, as bases do género álbum. A sua entrada no mercado editorial é sobretudo assinalada pela adaptação/recriação de contos tradicionais e pela recuperação de outros clássicos mundiais, além de apoiar a produção de textos originais, a difundirem as linguagens literárias e plásticas de um conjunto admirável de vozes galegas. Até à viragem do século a editora contava já com mais de meia centena de publicações, com fortes repercussões e popularidade materializadas, entre outros factos, nos mais variados prémios que lhes foram sendo

19

No panorama galego, a Editorial Galaxia, as Edicións Xerais de Galicia e a Sotelo Blanco Edicións tinham-se esforçado, em anos anteriores, na criação de álbuns ilustrados, contudo, viram limitada a continuação e a difusão das suas publicações.

48 atribuídos20.

Desde então, apostada em criar livros de qualidade, Kalandraka não cessou de crescer e converteu-se num fenómeno editorial de projeção internacional, alargando as suas publicações para lá do marco ibérico21, e convidando, para este diálogo permanente e dinâmico com o mundo, outros projetos editoriais recentes como a OQO (por separação) e a Faktoría K de Libros (por expansão), com que, no caso da primeira, se desenvolvem interessantes tendências, nomeadamente pela excecional articulação da literatura com obras de arte universais. Atente-se, desde logo, nos dois títulos da coleção OQart (Gran libro de los retratos de animales, de Svetlan Junakovic, e Cuaderno de

animalista, de Antón Fortes e Maurizio A. C. Quarello, editados respetivamente em

2006 e 2008), que constituem uma revisitação subversiva e parodística de algumas das principais obras da pintura universal.

Além destas, descobrem-se outras pequenas casas, como a Kókinos, a Corimbo, a Serres ou a Ekaré, para apontar apenas alguns exemplos, a cooperarem na configuração de um panorama rico e variado, onde surgem representadas as mais diversas temáticas e correntes artísticas.

Com a sua implantação em Portugal, no ano de 2002, a editora pontevedrense conquistou uma projeção não menos evidente no panorama editorial nacional, influenciando grande parte da publicação atual e garantindo uma assídua colaboração com autores (escritores e ilustradores) portugueses, seja pela recuperação e reedição dos seus textos, seja pela cooperação direta desses mesmos criadores nas suas edições originais22.

20

Relembre-se, desde logo, o “Primer Prémio a las mejores ilustraciones de libros infantiles y juveniles” (Ministerio de Educación y Ciencia de España) e a distinção como um de “Los Mejores Libros para Niños” (Banco del Libro de Venezuela), respetivamente concedidos, em 1999 e 2000, para o álbum

O coelliño branco, texto de Xosé Ballesteros e ilustrações de Óscar Villán. 21

Além de Portugal e Espanha, a editora pontevedrense conta, ainda, com as representações internacionais de Itália, México, e, mais recentemente, Brasil.

22

Pensemos, por exemplo, na adaptação de contos tradicionais portugueses, alguns recriados por duplas autorais luso-galaicas, como O traje novo do rei (2002), de Xosé Ballesteros e João Caetano, um dos mais antigos da Kalandraka, e Os sete cabritinhos (2009), de Tareixa Alonso e Teresa Lima, e.g., ou na criação de obras originais inteiramente concebidas por artistas portugueses, Ovelliña, dáme la (2009), de Isabel Minhós Martins e Yara Kono.

49