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Ação pendular pela satisfação do indivíduo: segurança e liberdade

3 PARA UMA ARQUEOLOGIA DO PARADIGMA DA AMBIVALÊNCIA:

4.1 Ação pendular pela satisfação do indivíduo: segurança e liberdade

“...há em nós um anjo e um demônio. Aliás, imagi- namos o diabo e os anjos responsáveis por senti- mentos tão diferentes que é difícil acreditar que eles nascem no mesmo coração e reagem à mesma experiência. Ouvimos os dois risos quando alguém ri se ouvirmos atentamente – mas raramente o fa- zemos. É por isso que a “impostura semântica”, na maioria dos casos, funciona tão bem” (BAU- MAN, 2000)

Em Bauman (2001, p. 66) ―‗ordem‘ é monotonia, regularidade, repetição e previsibili- dade; dizemos que uma situação está ‗em ordem‘ se e somente se alguns eventos têm maior probabilidade de acontecer do que suas alternativas, enquanto outros eventos são altamente improváveis ou estão inteiramente fora de questão‖. Esse entendimento se refere a ―moderni- dade pesada‖/modernidade sólida87, uma época, na compreensão baumaniana, de ―moldar a realidade como na arquitetura ou na jardinagem‖, onde, também, ―a realidade adequada aos veredictos da razão deveria ser ‗construída‘‖ sob estrito controle de qualidade e conforme rígidas regras de procedimento, e mais do que tudo projetada antes da construção‖ (BAU- MAN, 2001, p. 58). Nesse contexto, a modernidade sólida tem como característica, a preten- são de ―impor a razão à realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrário à razão tão alto que os impedisse‖ (BAUMAN, 2001, p. 58). Essa época, que também segundo Bauman, não acabou, mas convive paralelamente com a modernidade líquida, forja-se na centralidade do legislador, do filósofo, do intelectual, símbolos que representam as condições de pensar as razões lógicas e indicá-las para a comunidade, para os indivíduos. O mundo ―rigidamente controlado‖ (BAUMAN, 2011b, p. 66). O grande emblema dessa modernidade sólida, de ordem e regulação, controlada pela razão legisladora, é o Estado-nação.

Duas questões nos parecem ser importantes nessa tematização. O Estado-nação, embo- ra centralizador, regula a sociedade, estabelece normatividade e desencadeia um compromisso

87 Acerca da modernidade sólida, julgamos pertinente transcrever o pensamento baumaniano pela evidência da análise e clareza de sua reflexão caracterizando essa parte da modernidade e estabelecendo uma relação com o ideário de educação do Estado-Nação: ―Por boa parte da história moderna (a parte marcada por grandes planos industriais e enormes exércitos de soldados), a sociedade moldou e preparou seus membros para o trabalho in- dustrial e o serviço militar. A obediência, o conformismo e a resistência diante de uma rotina monótono e enfa- donha eram, consequentemente, as virtudes a ser plantadas e cultivadas – enquanto a fantasia, a paixão, o espírito de rebeldia e a relutância em sair da linha eram os vícios a ser exterminados. Era o corpo do potencial operários ou soldado que contava; era o espírito que tinha de ser silenciado; e, uma vez silenciado, podia ser excluído do cômputo como algo sem consequência. A sociedade dos produtores e soldados concentrava seu ‗reprocessamen- to da infância‘ na administração dos corpos para adequá-los à condição de moradores de seu futuro hábitat natu- ral: o recinto da fábrica e o campo de batalha‖ (BAUMAN, 2009, p. 144)

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do indivíduo com o coletivo para que ambos – indivíduo e coletividade – colham benefícios e cresçam na efetivação da satisfação humana, na compreensão e dinamização da condição hu- mana. Outra questão que se apresenta é a associação do Estado-nação com o capital, compre- endendo-se aqui, a classe burguesa, no sentido de modificar os interesses e a atuação do Esta- do e dos indivíduos. Percebemos que há uma vinculação entre o capital/Estado/classes sociais – tanto dirigentes/hegemônicas, quanto trabalhadoras/operárias – que resulta, de alguma for- ma, no aquecimento da sociedade/Estado para o reconhecimento do movimento, característico da modernidade. O problema aparece no, primeiro caso, na regulação unilateral a partir da narrativa unívoca da burguesia/capital, mascarando as instâncias instituídas da liberdade, de- mocracia, propriedade, segurança, regulação. Essa problemática se intensifica com a procla- mação da independência da classe burguesa do período industrial para o pós- industrial/hegemônico/monopolista, desvinculando-se da relação com os ideais originários do iluminismo burguês do século XVII para elevar-se em capital/mercado com status divinizado que parte da instrumentalização material para a instrumentalização também simbólica. Nesse nível, as relações se volatilizam e evaporam valorações estruturais e estruturantes dos cami- nhos da humanidade. Na dimensão pluralizadora dessas volatilidades, a sociedade/os indiví- duos apreendem ou se abrem para as possibilidades da novidade, da ressignificação, pois vi- sualizam os limites, os impedimentos e as corrosões das estruturas sistêmicas.

A transvaloração desencadeada pelos apelos da classe hegemônica desenvolvida pela globalização, volume de informações, veículos midiáticos e internet, segundo Bauman (2016a, 2013a, 2013b, 2003, 1999b) não reconhece mais a condição humana, as relações hu- manas, tanto nas dimensões subjetiva quanto intersubjetiva ou privada e coletiva. De alguma forma, porque a ―principal atração do mundo virtual deriva da ausência de contradições e ob- jetivos contrastantes que infestam a vida off-line‖ (BAUMAN, 2010a, p. 67). Nesse sentido, surge uma grande questão, elaborada a Bauman por Gustavo Dessal (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 156): ―¿Y de qué sufrimos ahora, tanto en el nível individual como en el social? De lo que há [Zygmunt Bauman] denominado la «liquidez»‖. Parece haver a subsunção total dos indivíduos/das subjetividades e das vontades/autonomia aos processos, às determina- ções/sugestões de um sistema/de uma ordem/lógica desconhecida, no entanto, poderosa e ar- dilosa. A humanidade aparece, metaforicamente, como um grande número de zumbis pairan- do a esmo, controlados por uma energia inesgotável e controladora. Poderíamos situar nessa fonte, de alguma forma definidora das verdades e orientação máxima dos comportamentos e

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vontades dos indivíduos, a ação do sistema de mercado usando seus instrumentos, as mídias, a internet, a globalização?

Ao citar Karl Marx, na discussão sobre as ideias dominantes, advindas da classe do- minante e que, por isso, se torna em classe dominante e, ao mesmo tempo, detentora das idei- as dominantes, Bauman identifica a modernidade sólida como aquela que, pelo império de uma racionalidade reguladora, separa o ―factível do implausível, o racional do irracional, o sensato do insano‖ e de outras formas autorizadas a determinar e circunscrever a gama de alternativas dentro das quais a vida humana e suas trajetórias estão confinadas (BAUMAN, 2001, p. 67). Na sequência, Bauman identifica as características da sociedade sólida em ana- logia ao capitalismo, demonstrando serem heranças ―do mundo dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores; o mundo de homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros, do modo determinado por outros. Por essa razão era também o mundo das autoridades: de líderes que sabiam mais e de professores que ensinavam a proceder melhor‖ (BAUMAN, 2001, p. 76).

Em oposição à modernidade sólida, surge a modernidade líquida, expressando a ambi- valência da realidade. No mundo líquido, ―poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final‖ (BAUMAN, 2011b, p. 74). É o espírito da modernidade líquida, libertando-se das amarras dos tempos sólidos, de controle e regulação, que se desen- volvem em possibilidades infinitas, movimentos que impedem de ―petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham ‗data de validade‘, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura‖ (BAUMAN, 2011b, p. 74). Este é o espírito da liberdade que abre caminhos, alter- nativas e vias para os indivíduos alargar suas visões e deixar planar seus intentos, criativida- des, imaginação, na busca do ―tornar-se qualquer um‖. O ―qualquer um‖ se apresenta com a potencialidade toda da possibilidade, da escolha, que a liberdade apresenta. Há uma infinidade de alternativas para as constantes opções/escolhas que se dispõem para os indivíduos no jogo da vida.

A partir da ambivalência, podemos compreender a sociedade como ―pendular‖, osci- lando de um extremo ou de um ponto a outro sem a consciência do movimento ou, alheio a qualquer consequência que não aquela que o ―desejo‖ e o ―prazer‖ podem desencadear. Essa inconsciência ou espécie de alienação acompanha o indivíduo ou, como estamos compreen- dendo no lastro teórico de Bauman, uma parcela considerável da população ainda sem esbo-

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ços de reação. A autonomia e a liberdade estão implicadas nessa questão de modo que a rela- ção de consumidor se dá na dimensão oposta da de produtor, portanto, de submissão e perda da autonomia. Então, a liberdade, buscada como um grande troféu da pós-modernidade, na linguagem jamesoniana e, modernidade líquida, em terminologia baumaniana, também fica comprometida e aparece apenas como superficial, como máscara de um acontecimento maior, ainda inconsciente para o indivíduo. Parece que o indivíduo tem liberdade, mas ela se limita apenas à liberdade de consumir, ou liberdade de ter liberdade. Efetivamente ela, a liberdade, não acontece porque é subsidiária de uma realidade maior de mercado, de relação econômica, de dependência consumidora/consumista, atrelada aos apelos – na denúncia de Bauman – do mercado de capital tornados públicos e vivificados pela grande mídia e pela ação da globali- zação econômica, além de ser potencializada pela internet.

En pocas palabras, la situación actual se caracteriza por una intrínseca y extrema am- bivalencia. Y la condición de ambivalencia no tiene visos de definirse. Puede suscitar reacciones mutuamente opuestas que redunden en sufrimientos ostensiblemente con- trarios. Tanto el carpe diem como la búsqueda febril de «raíces» y «cimientos» son sus resultados igualmente probables y legítimos (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 52, grifos no original).

Pode-se visualizar essa preocupação baumaniana, na sua reflexão acerca da necessida- de que os indivíduos têm, nesses tempos líquidos/voláteis, de encontrar protótipos, exemplos, onde se espelhar. Nesses tempos líquidos, assevera Bauman (2003, p. 63) a ética foi trocada pela estética e, desse modo, ―a autoridade ética dos líderes com suas visões, ou dos pregado- res morais com suas homilias‖, foi substituída pelo ―exemplo das ‗celebridades à vista‘ (cele- bridades porque estão à vista)‖. A ―sedução‖ atua, então, no nível do apelo subjetivo para vivenciar a objetividade vivenciada pela coletividade. O apelo está no horizonte do desfrutar a oportunidade da mesma forma que o coletivo está fazendo. É possível que haja, em conformi- dade com o paradigma da ambivalência, uma espécie de ―comunidade de solitários‖ (BAU- MAN, 2003, p. 64) que, talvez, atue/pense em sentido diverso. Muito embora ―el «principio de realidad» parezca haber perdido su batalla más reciente contra el «principio del placer», la guerra entre ellos está lejos de haber llegado a su fin y el resultado final (si es que algún acuerdo es capaz de alcanzar el estatus de ‗final‘) no está definido en absoluto‖ (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 53).

O que nos faz ver solidariedade, ainda que latente nas comunidades ou agrupamentos humanos, formados por alguma forma de proximidade e, por isso, pelas identidades em busca de segurança e, dessa forma, amparo para o exercício da autonomia/da liberdade, da expres-

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são individual, é, ambivalentemente, a fragilidade dos laços estéticos. Eles são passageiros, leves, voláteis e se liquefazem com velocidade espantosa, jamais presenciada na história da humanidade. Quando da insuficiência/consciência da fragilidade e deficiente segurança ou garantia do exercício da liberdade dos indivíduos, há uma recorrência à ―comunidade verda- deira‖, aquela onde subsistem os laços mais sólidos e para onde os desamparados da experi- ência fugaz da estética na modernidade líquida, se dirigem como o porto seguro onde podem retornar sempre que o exercício da liberdade falhar ou enveredar por frustrações. A comuni- dade é o espaço de acolhimento do ―aventureiro‖ (SINGLY, 2006, p. 67). Nesse aspecto, aprendemos com Bauman (2003, p. 67-8):

Uma coisa que a comunidade estética definitivamente não faz é tecer entre seus mem- bros uma rede de responsabilidades éticas e, portanto, de compromissos a longo pra- zo. Quaisquer que sejam os laços estabelecidos na explosiva e breve vida da comuni- dade estética, eles não vinculam verdadeiramente: eles são literalmente ―vínculos sem consequências‖. Tendem a evaporar-se quando os laços humanos realmente importam – no momento em que são necessários para compensar a falta de recursos ou a impo- tência do indivíduo (grifos no original).

Percebemos que a solidariedade é latente. Reside nos laços humanos que, enquanto tal, são capazes de acolher – e estão dispostos a isso – os regressantes88 das experiências superfi- ciais, fugidias da vida estética, da experiência da liberdade individual. A fonte de recomposi- ção das frustrações do individualismo se encontra encantadora ou acalentadora no seio da comunidade humana. A expressa ambivalência desse movimento, em nossa compreensão, a partir de Bauman (2003, p. 68), evidencia o paradoxo da vida, da realidade, dos conflitos so- ciais não para serem resolvidos, equacionados, mas como acontecimentos de fato do mundo da vida. É dessa forma que nos sentimos autenticados, ao afirmar o paradigma da ambivalên- cia, apresentar a saída pela via dos laços humanos, portanto, da solidariedade. O texto Duas

88 Regressantes é terminologia que pensamos para caracterizar indivíduos que, no exercício de sua pretendida liberdade e, portanto, autonomia, envolvem-se em experiências no mundo dos apelos estéticos, voláteis, rápidos, momentâneos, com ou sem vínculos profundos e duradouros, frustram-se ou não em suas investidas para ver assegurada sua felicidade, seus objetivos, sua satisfação e, então, retornam para o porto seguro do acolhimento dos laços humanos que, enquanto humanos, mantém o calor sólido da fonte de renovação das energias, a segu- rança e onde o risco de vida (Risikoleben) é amenizado ao ser assumido pelo coletivo ou por um coletivo. Os regressantes não retornam para ficar, mas para reabastecer-se e assegurarem-se de que há uma coletividade, uma comunidade, uma ―ilha que seja, disposta a recebê-los quando precisarem. Um sentimento de ―pertença‖ (SIN- GLY, 2006), um vínculo, uma ligação, forte; mas não prisão, limitação. Seguindo o pensamento baumaniano, parece que encontramos mais um fundamento para essa compreensão quando diz: ―Suponho que o perigo que devemos enfrentar no século XXI não será a coerção totalitária, a principal preocupação do século XX, mas o colapso das ‗totalidades‘ capazes de assegurar autonomia à sociedade humana‖ (BAUMAN, 2011a, p. 155). Denominamos regressantes porque ao mesmo tempo em que regressam da experiência estética, moral, cognitiva, individual, regressam, também, da comunidade de fato. Oscilam, como pêndulo, entre o ponto do volátil onde exercem seus desejos e experimentam a liberdade e o ponto sólido da segurança, porque, ―la seguridad y la liber- tad sean dos valores tan indispensables para una «vida digna de ser vivida»‖ (BAUMAN; DESSAL, 2014 : 159).

147 fontes do comunitarismo (BAUMAN, 2003, p. 68) parece justificar essa compreensão que assumimos:

A comunidade que procuram seria uma comunidade ética, em quase tudo o oposto do tipo ―estético‖. Teria que ser tecida de compromissos de longo prazo, de direitos inali- enáveis e obrigações inabaláveis [...] E os compromissos que tornariam ética a comu- nidade seriam do tipo do ―compartilhamento fraterno‖, reafirmando o direito de todos a um seguro comunitário contra os erros e desventuras que são os riscos inseparáveis da vida individual (grifo no original).

A partir dessa compreensão podemos aproximar a noção de liberdade e o desejo de liberdade que é, também para Bauman, inato/próprio do humano, ao conhecimento como con- dição sine qua non para a efetivação dessa liberdade enquanto, de alguma forma, sinônimo de autonomia. É nesse sentido, cremos estar no pensamento de Bauman, que encontramos o pen- samento de Lucília Regina de Souza Machado (1989, p. 148), embora operando epistemologi- camente do interior da dialética, a defender ―[...] o conhecimento, o saber, a educação [...como] fundamentais para a conquista da liberdade‖. Desse modo vinculamos a educação, a liberdade e a solidariedade como acontecimentos inter-relacionados, possíveis e necessários no mundo humano, seguindo o percurso dialético e da hermenêutica pluralizadora de Bau- man.

A luta por liberdade e autonomia dos indivíduos concorre paralelamente à intenciona- lidade do capital em promover o desajuste/desestruturação dos vínculos humanos e relações sociais. Para Bauman (2014, p. 78), há um combinado, na modernidade líquida, entre desregu- lação-individualização-privatização - que ele nomina de DIP - e o consumismo. A fragmenta- ção, típica da demanda dos sujeitos pelos próprios projetos e experiências, se desenvolve tam- bém nos objetivos do sistema de mercado que, sabiamente, se apossa da fragmentação coleti- va, do anseio por liberdade, do desejo de novas experiências dos indivíduos e associa essas novidades em explosão à intenção de continuidade do sistema e aprofundamento de suas rela- ções de controle que, embora, disfarçadas/imperceptíveis aos comunitarismos, crescem mais fortificadas e deterministas.

Para que a ideia da ―boa sociedade‖ possa reter seu sentido numa situação de moder- nidade líquida ela precisa significar uma sociedade que cuida de ―dar a todos uma oportuni- dade‖ e, portanto, da remoção dos muitos impedimentos a que a oportunidade seja aproveita- da. Agora sabemos que os impedimentos em questão não podem ser removidos de um só gol- pe, por um ato de imposição de outra ordem planejada - e assim a única estratégia disponível para realizar o postulado da ―sociedade justa‖ é a eliminação dos impedimentos à distribuição

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equitativa das oportunidades uma a uma, à medida que se revelam e são trazidas à atenção pública graças à articulação, manifestação e esforço das sucessivas demandas por reconheci- mento. Como a velocidade e fluidez dos tempos líquidos exige, não há permissões para apro- fundamentos, reflexões vinculadas e edificações de nível espiritual e material, pessoal e cole- tivo. A procura por conselhos e orientações, parece, ao mesmo tempo em que perseguida co- mo guia para as ações pessoais, descarte imediato. Desse modo, ―quanto mais se procura‖, escreve Bauman (2001, p. 85), ―mais se precisa e mais se sofre quando privado de novas do- ses da droga procurada‖. Ao apresentar a sociedade ambivalente, líquida e sólida, Bauman vê como essencial compreendê-la na transição da condição de produção para a de consumo89. Sobre essa distinção, parece interessante saber que

A vida organizada em torno do papel de produtor tende a ser normativamente regula- da. Há um mínimo de que se precisa a fim de manter-se vivo e ser capaz de fazer o que quer que o papel de produtor possa requerer, mas também um máximo com que se pode sonhar, desejar e perseguir, contando com a aprovação social das ambições, sem medo de ser desprezado, rejeitado e posto na linha (BAUMAN, 2001, p. 90).

Enquanto na sociedade de produtores/construtores, o principal cuidado é com a ―con- formidade‖, no coletivo de consumidores, há que se cuidar, primordialmente, da adequação, ou seja, manter-se sempre dentro do limite; na sociedade de consumidores, é exigido dos in- divíduos, a prontidão, a capacidade de aproveitar e desenvolver novos desejos e aptidões e buscar a satisfação sempre que a frustração se apresentar novamente. Então, na modernidade líquida, dimensão formadora da sociedade em que vivemos a vida é ―organizada em torno do consumo‖ e, dessa forma, ―deve se bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por dese- jos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais por regulação normativa‖ (BAUMAN, 2001, p. 90). O capital, em seu processo de escamoteamento, continua sua ação sem aparecer e pôr-se à frente. No entanto, como compreende Bauman (2001, p. 141), os interesses do capi- tal/do mercado consumista, desenvolve/organiza a sociedade de modo a dar-lhe uma tonalida- de de mais sagacidade, pois, a ―descorporificação do trabalho anuncia a ausência de peso do capital‖, o que permite ao capital, exercer sua força sorrateiramente enquanto ―viaja esperan- çoso, contando com breves e lucrativas aventuras e confiante em que não haverá escassez delas ou de parceiros com quem compartilhá-las. O capital‖, continua Bauman (2001, p. 141) na análise da sociedade leve, soft, ―pode viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade se

89 Adotamos as metáforas baumanianas relacionadas com a modernidade sólida e líquida e, desta forma, com o pensamento racionalista, simplificador e uniformizador da modernidade expressamos a sociedade de produtores que, para Bauman, vincula-se com o Estado-nação envolto em aura regulatória, igualitária e moralista.

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tornam as fontes mais importantes de incerteza para todo o resto. Essa é hoje a principal base da dominação e o principal fator das divisões sociais‖.

É desse horizonte, da volatilidade do capital que disfarça sua existência, sua força e sua ação, que Bauman (2001, p. 142) denuncia, assim como o faz Fredric Jameson (2007), o seu controle mais absoluto enquanto, ao esconder-se se fortalece, de modo que, na denúncia baumaniana, ―O capital ganha mais campo de manobra‖, na leveza da sociedade líquida, ―mais abrigos para esconder-se, maior matriz de permutações possíveis, e portanto mais força para manter o trabalho que emprega sob controle, juntamente com a capacidade de lavar as mãos das consequências devastadoras de sucessivas rodadas de redução de tamanho‖ e, con- clui Bauman, na crítica ao neo-liberalismo, que ―essa é a cara contemporânea da dominação‖.