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Da relação entre ―ambivalência‖ e hermenêutica pluralizadora

2.1 Algumas razões que facultam o status de paradigma à ―ambivalência‖ enquanto categoria

2.1.3 Da relação entre ―ambivalência‖ e hermenêutica pluralizadora

Ambiguidade é terminologia que identifica-se com ―ambivalência‖ e, por vezes, é mais utilizada no mundo da ciência; contudo, assume sentidos profundamente próximos no olhar semiótico das tradições filosóficas a partir da concepção existencialista. Para os existen- cialistas, ambiguidade é elemento da condição humana, mesmo que, em nossa leitura, parcela significativa de escritos na atualidade ainda utilize o termo com grandes reservas de negativi- dade. Ressaltamos, porém, que ambiguidade segue uma proximidade entre ―ambivalência‖, dialética e ―hermenêutica pluralizadora‖ (BAUMAN, 1998, p. 248), de modo que a compre- ensão de ―ambiguidade‖ como o defrontar-se humano ―com a ausência de um sentido pré- estabelecido e prefixado para a vida devendo, portanto, lutar incessantemente para inventá-lo e estabelecê-lo no mundo real‖. Lembrando o pensamento de Merleau-Ponty (MORÃO, 2003), ambiguidade é compreendida como situação paradoxal do homem autêntico que simul- taneamente se retira do mundo para refletir e nele se põe a agir. São compreensões autentica- doras da multiplicidade, uma espécie de totalidade/pluralidade, que envolve as narrativas, os discursos, as compreensões e, inclusive, ações do humano no mundo comum ou, mundo real, no sentido marxiano-gramsciano.

A ambivalência é o inusitado, o novo, o aleatório e nisso se institui plurivalente, como a hermenêutica pluralizadora, plural, de Bauman. Novo na gênese, no aparecimento, na con- cepção, no sentido, das coisas, dos fenômenos, e também no desenvolvimento, no acontecer da vida formando história pelas mãos de um grande guia, com entrega total. Certeza na incer- teza, mas, simultaneamente a essa ―liberdade‖ pretendida e experimentada, paira sempre uma busca por ―segurança‖, progredindo na contradição, no conflito. Para Jameson (2007, p. 13), é próprio do período pós-moderno ser ambíguo. O mais importante é ―de que lado da ambigui- dade nos colocamos‖. Dessa compreensão, então, ―o pós-modernismo, a consciência pós- moderna‖, nas palavras de Jameson, pode ser que acabe ―não sendo muito mais do que a teo- rização de sua própria condição de possibilidade, o que consiste, primordialmente, em uma mera enumeração de mudanças e modificações‖. O espírito da ambivalência pode se apresen- tar como o ―modernismo‖ que se preocupava ―compulsivamente com o Novo‖, diz Jameson (2007, p. 13), e buscando ―rupturas, busca eventos em vez de novos mundos‖. Pós- modernismo é uma espécie de resíduo, de consistência não ―essencialista‖ e ―utópica‖, ―algo que se tem quando o processo de modernização está completo e a natureza se foi para sempre.

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É um mundo mais completamente humano do que o anterior, mas é um mundo no qual a ‗cul- tura‘ se tornou uma verdadeira ‗segunda natureza‘‖ (JAMESON, 2007, p. 13).

Um sentido teórico de ambivalência, em nossa compreensão, justificador do paradig- ma em discussão, pode ser encontrado na obra de Jameson, Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (2007), quando escreve, logo na introdução sobre o sentido de cultura: ―[...] está tão colado ao econômico que é difícil destacá-la ou examiná-la em separado é, ele mesmo, um fenômeno pós-moderno [...] então, a descrição infra-estrutural que se está invo- cando aqui já é, necessariamente, uma descrição cultural e, de antemão, uma versão da teoria do pós-modernismo‖. Em outra passagem, com exemplo63, igualmente, significativo, de am- bivalência enquanto paradigma, transcrevemos: ―A palavra nostalgia [...] não é empregada no sentido em que normalmente a uso‖ e explica: ―a expressão ‗filme de nostalgia‘‖, tem sido, ―objeto de lamentáveis mal-entendidos‖. É preciso, segundo Jameson (2007, p. 19), ―que se entenda que os filmes de figuração historicista que a expressão designa não devem ser enten- didos como expressão apaixonada daquele desejo mais antigo, que antes se chamava nostal- gia, mas sim designar o seu contrário [...]‖. Essa exposição exemplifica os sentidos ambiva- lentes, possibilidades da ―modernidade líquida‖ – na linguagem baumaniana, o que para Ja- meson, com alguma proximidade, seja o pós-modernismo -, expressão característica do para- digma da ambivalência.

Contudo, há ainda em Jameson, outra passagem, baseada em Marx, situado dialetica- mente, que exemplifica o status de paradigma ao termo ―ambivalência‖. Com a dialética, é possível buscar um ―modo genuíno‖ para ―pensar o desenvolvimento histórico e a mudança‖, - diz Jameson (2007, p. 73) citando o Marx do Manifesto -. Pensamos que ―ambivalência‖ capta bem o sentido do ―fazer o impossível‖. Com a ―ambivalência‖ se torna compreensível e pensável ―o desenvolvimento [do capital, do tecnológico, as micro e macro situações] de for- ma positiva e negativa ao mesmo tempo; em outras palavras, chegar a um tipo de pensamento capaz de compreender ao mesmo tempo as características demonstravelmente funestas do capitalismo e seu extraordinário dinamismo libertador em um só raciocínio e sem atenuar a força de nenhum desses dois julgamentos‖ (JAMESON, 2007, p. 73). Então, dessa compreen-

63 Exemplo, também significativo do que seja ambivalência, operação paradigmática, em nossa compreensão, de Zygmunt Bauman (2000, p.83): ―[...] a saúde supõe uma atividade guiada por um propósito, visando a alcançar e manter um padrão; a boa forma, por outro lado, não é fechada e não tem meta específica nem um padrão ideal que, atingidos, justifiquem o fim do esforço. Enquanto a saúde supõe uma condição estável ideal a ser obtida por meio de um esforço sistemático, consistente e monótono, o ideal de boa forma equivale ao contrário, a uma aber- tura para o novo, o desconhecido, o inesperado. Saúde sugere equilíbrio e continuidade; boa forma supõe ruptura e descontinuidade. A saúde afirma a uniformidade, enquanto a boa forma ressalta a diferença‖.

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são se torna possível ―pensar dialeticamente a evolução do capitalismo tardio como um pro- gresso e uma catástrofe ao mesmo tempo‖ (JAMESON, 2007, p. 73)64.

No sentido do já posto paradigma da ambivalência, sempre há espaço para objeções de sentido. Ao que nos parece, evidencia-se a abertura positiva da ―modernidade líquida‖ alar- gando os horizontes do discurso, das narrativas, das textualidades e das compreensões, inter- pretações, introduzindo a ―hermenêutica pluralizadora‖ de Bauman (1998). Ambiguidade não quer significar, tolo, ingênuo, sem sentido, embora a aproximação com algum dos sentidos, como diz Jameson, já indica uma tonalidade ideológica. A ambivalência é o espaço da ―con- testação‖, do ―conflitante‖, do ―contraditório‖. A questão, como diz o próprio Jameson (2007), é sempre ―recolocar essas contradições‖, sentido que se aproxima, nesse caso, e po- demos colher alhures no pensamento de Mário Osório Marques quando indica a necessidade de recolocar as questões, os conceitos a cada vez, ressignificar sempre/atualizar/contextualizar e não de uma vez/definitivamente. ―Ambivalência‖ nos parece, então, ser um ―mal-estar da pós-modernidade‖, porque oscilando entre liberdade e não-segurança, segurança e não- liberdade, uma condição do humano, da vida/da existência.

―Ambivalência‖ é apropriação baumaniana, assim concebemos, identificada também, com a sociedade líquida, com o pós-modernismo, ―não como um estilo, mas como uma domi- nante cultural: uma concepção que dá margem à presença e à coexistência de uma série de características que, apesar de subordinadas umas às outras, são bem diferentes‖ (JAMESON, 2007, p. 29). Situação concreta, expressão dos tempos contemporâneos e concepções, dimen-

64 Transcrevemos a citação completa de Jameson (2007, p. 73), para facilitar a compreensão: ―A forma canônica da distinção que estou propondo aqui é a diferenciação de Hegel entre o pensar da moralidade individual ou a moralização (Moralität) e o domínio totalmente diferente dos valores e práticas coletivas e sociais (Sittlichkeit). Mas sua forma definitiva encontra-se na demonstração de Marx da dialética materialista, notadamente naquelas páginas clássicas do Manifesto, que nos ensinam a difícil lição de um modo genuinamente dialético de pensar o desenvolvimento histórico e a mudança. O assunto da lição evidentemente é o desenvolvimento histórico do capitalismo e a formação de uma cultura especificamente burguesa. Num trecho bem conhecido, Marx nos incita a fazer o impossível, a saber, pensar esse desenvolvimento de forma positiva e negativa ao mesmo tempo; em outras palavras, chegar a um tipo de pensamento capaz de compreender ao mesmo tempo as características de- monstravelmente funestas do capitalismo e seu extraordinário dinamismo liberador em um só raciocínio e sem atenuar a força de nenhum desses dois julgamentos. Devemos, de algum modo, elevar nossas mentes até um ponto em que seja possível entender o capitalismo como, ao mesmo tempo, a melhor e a pior coisa que jamais aconteceu à humanidade. A queda desse austero imperativo dialético para a instância mais confortável da tomada de uma posição moral é irrevogável e demasiadamente humana: ainda assim, a urgência do assunto exige que façamos pelo menos o esforço de pensar dialeticamente a evolução do capitalismo tardio como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo.

Esse esforço sugere duas questões imediatas, com as quais pensamos concluir essas reflexões. Podemos, de fato, identificar um ‗momento de falsidade‘ da cultura pós-moderna? E, mesmo que possamos fazer isso, será que não algo em última análise paralisante na visão dialética de desenvolvimento histórico proposta acima; será que ela não tende a nos desmobilizar, e nos reduzir à passividade e impotência ao obliterar, sistematicamente, as possibi- lidades de ação sob a névoa impenetrável da inevitabilidade histórica? É pertinente discutir essas duas questões relacionadas em termos da possibilidade, em nossos dias, de uma política cultural contemporânea eficiente e da construção de uma cultura genuinamente política.

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sões onde fatos e acontecimentos, na sua grande maioria, ―não mais escandalizam ninguém e não só são recebidas com a maior complacência como são consoantes com a cultura pública ou oficial da sociedade ocidental‖ (JAMESON, 2007, p. 29). A ―ambivalência‖, seguindo o pensamento jamesoniano, pode ser a expressão da cultura líquida dos tempos contemporâneos ou, no pensamento de Gustavo Dessal (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 156), ―la era pós- moderna, que revela com nunca antes el profundo vacío en el que estamos sumidos em cali- dad de seres hablantes‖. Compreendemos, nesse momento, ambivalência, como o modo com o qual as pessoas compreendem, expressam-se e agem na contemporaneidade, então, no sen- tido de condição social em aproximação com Jameson. Isto significa que os tempos hoje tes- temunham redução nas capacidades de consensos e racionalidades argumentativas identifica- das com o real, com a ação - com a práxis -. Talvez, na nossa interpretação, possa-se dizer, manifestação real dos objetivos e/ou interesses do laissez-faire, não uma cultura nova (JA- MESON, 2007), mas uma ramificação germinal do capital forjada ainda na sua fase monopo- lista. Não que ―Jameson assuma a ambivalência como forma de ver o mundo; mas veja nela a configuração do mundo no pós-modernismo‖ (PITHAN DA SILVA, 2015b). Percebemos a ambivalência tanto como uma condição social, acontecimento do mundo da vida, quanto ca- tegoria de pensamento; embora, com Jameson, estejamos mais propensos a identificar como movimento da dinâmica social; com Bauman, a ambivalência aparece tanto na sua condição social quanto categoria de pensamento como no sentido kuhniano de paradigma, debatido neste capítulo.

Nessa ―ambivalência‖ contemporânea, pelo pensamento jamesoniano (2007), também pode ocorrer que ―a profundidade é substituída pela superfície, ou por superfícies múltiplas‖, permitindo justificar ações individuais, particulares, denominadas ―micro-política‖ (JAME- SON, 2007, p. 44). Para uma compreensão aproximada, Bauman (2001) denomina esse acon- tecimento crescente como ―política vida‖65. Na ―política-vida‖, acontece, de modo mais segu-

65 Após Anthony Giddens, também fonte de inspiração de Bauman, ―política da vida real‖ é categoria incorpora- da na obra baumaniana. Segundo Daniel Augusto (2017), em entrevista com Zygmunt Bauman, publicada no O Estado de São Paulo, em 18/02/2017, ―Na política da vida real, eu, você e todas as pessoas, somos ao mesmo tempo parlamento, governo e judiciário. As pessoas têm que decidir o que fazer, executar e julgar. Assim, diver- sas funções que eram antes realizadas por uma comunidade, agora estão nos ombros dos indivíduos‖. De tal modo, ―[...] é um grande avanço de liberdade individual. Em princípio, você pode ser o dono da sua própria vida. É o que chamo de indivíduos de jure: nós somos indivíduos por decreto. Assim, goste ou não, você é culpado por suas derrotas. Se você fracassa, não pode culpar a ninguém. O que, é claro, afeta sua autoestima. [...] Essa situa- ção traz sentimentos muito desagradáveis, que são muito comuns no mundo hoje. Um deles é o sentimento de ignorância constante, de não saber o que vai acontecer. Outro sentimento é o de impotência, isto é, mesmo que eu saiba exatamente qual o perigo, não posso fazer nada para impedir. Não tenho o poder para isso. A combina- ção desses sentimentos, ignorância e impotência, resulta no de humilhação, que é um golpe pesado na autoconfi- ança e na autoestima. De acordo com as estatísticas, a depressão é a doença mais comum do momento. [...] A

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ro para os indivíduos, a construção de uma ―identidade pessoal‖ que, na compreensão de Ja- meson (2007, p. 53), é ―efeito de uma certa unificação temporal entre o passado, o presente e o futuro‖, possibilitando aos indivíduos uma vida reduzida ―à experiência dos puros signifi- cantes materiais‖. É o que Jameson (2007, p. 53-4) reconhece como ―crise da historicidade‖ e ―esquizofrenia‖, produzindo ―um perturbador sentido de irrealidade‖ e separação ―do resto do mundo‖.

O sentido de ―ambivalência‖, na discussão que propomos ao longo dessa tentativa de contextualização e arquitetura de um paradigma - embora Bauman não tenha assim se referi- do, mas assim a concebemos a partir do seu percurso teórico - nos parece iluminar-se com as palavras de Jameson (2007):

[...] a ruptura da temporalidade libera, repentinamente, esse presente do tempo de to- das as atividades e intencionalidades que possam focalizá-lo e torná-lo um espaço de práxis; assim isolado, o presente repentinamente invade o sujeito com uma vivacidade indescritível, uma materialidade da percepção verdadeiramente esmagadora, que dra- matiza, efetivamente, o poder do significante material – ou melhor, literal – quando isolado. Esse presente do mundo, ou significante material, apresenta-se diante do su- jeito com maior intensidade e da perda da realidade, mas que seria possível imaginar nos termos positivos da euforia, do ―barato‖, de uma intensidade alucinógena ou into- xicante (JAMESON, 2007, p. 54).

A ―separação‖ entre ―modernidade sólida‖ e ―modernidade líquida‖, na filosofia bau- maniana, por si só, denota uma dialética, conforme o próprio pensador, detentora de conceitos valorosos em cada uma das características modernas ou encruzilhadas desse labirinto social, embora, na atualidade, haja uma prevalência da fluidez. A síntese está em construção, sendo gestada, ou não, no seio dessas confluências, divergências sociais, teóricas, conceituais, arqui- teturas e desconstruções - não para Jameson (2007) que ―se nega a pensar pela desconstrução‖ (PITHAN DA SILVA, 2015a) - ―ambiguidades‖ e paradoxos. O próprio Bauman, em entre- vista (2016f, 2016e), esclarece:

[...] estamos num estado de interregno. Esse é o termo que gosto de usar. No ―inter- regno‖, não somos uma coisa nem outra. No estado de interregno, as formas como aprendemos a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organi- zar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam [mais direito]. Mas as novas formas, que substituiriam as antigas, ainda estão engatinhando. Não temos ainda uma visão de longo prazo, e nossas ações consistem principalmente em reagir às crises mais recen- tes, mas as crises também estão mudando. Elas também são líquidas, vêm e vão, uma é substituída por outra [...].

depressão é o produto dessa sensação de não ter controle, de estar abandonado. Às vezes, chamamos isso de exclusão. Nós somos excluídos de onde a ação acontece, de onde a vida real é vivida‖ (AUGUSTO, 2017).

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A ―ambivalência‖ carrega o movimento dialético e o sentido hermenêutico. Com ela é possível pensar e transitar em compreensões do contraditório e com o contraditório porque a dialética envolve categorias de totalidade, contradição e ação recíprocas. Simultaneamente, é possível apreender sentidos e estabelecê-los nessa dinâmica do movimento, da mudança, da transformação. O diálogo com o diferente, entre as distintas tradições de pensamento, se põe não só válida, mas necessária ante a fluidez das relações e fugacidade do conhecimento, sua transitoriedade, seu valor relativo. Aqui se situa a ―hermenêutica pluralizadora‖ (BAUMAN, 1998). O paradigma da ―ambivalência‖ se põe como momento de ―coexistência‖, entre o sóli- do e o líquido, o positivo e o negativo, o coletivo e o privado, o ―legislador‖ e o ―intérprete‖, o ―construtor‖ e o ―consumidor‖, a liberdade e a segurança. Nele, no paradigma da ambiva- lência, a supremacia não quer dizer verdade, mas realidade momentânea; a minoria não quer significar exclusão, mas diferença; o diferente, ao mesmo tempo, ―estranho‖ e colaborador. O paradigma da ambivalência que vemos no percurso teórico de Bauman e no modo como de- senvolve o seu pensamento analítico, crítico-reflexivo e sócio-filosófico, em aproximação com a compreensão kuhniana de paradigma (KUHN, 2009), se institui como mais ―una her- ramienta indispensable‖ para decodificar e ler os sintomas do mundo contemporâneo, pala- vras que aprendemos de Gustavo Dessal (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 149). Uma possibi- lidade ambivalente, portanto, complexa/dialética/hermenêutica de analisar a sociedade e o sentido das condições humanas também historicamente e que abre a via do posicionar-se con- tra ―imposturas‖ porque esse é precisamente o dever fundamental do pensamento crítico (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 91).

Por isso, ―ambivalência‖ contém polissemia em sua essência/natureza. Não no sentido de significar qualquer coisa, mas de assumir vários sentidos possíveis, a partir das várias apreensões e compreensões humanas, portanto, dos diálogos possíveis. Simultaneamente, na liquidez da modernidade, que é também liquidez, fluidez, de sentidos, apropriações e signifi- cações particulares, a realidade/as ações/acontecimentos/conceitos, podem assumir multiplici- dades de significados e de expressões. Bauman vê essa realidade como componente da condi- ção humana, algo intrínseco ao humano e justifica essa posição, através de sua ―hermenêutica pluralizadora‖, sem a qual não se faz possível a compreensão do paradigma da ―ambivalên- cia‖.

A hermenêutica baumaniana, nesse horizonte pluralizador, expressa sentidos para o real/o concreto e a linguagem/o imaginário. Uma linguagem pública compreendida pelas pes-

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soas que se comunicam nessa linguagem, com esforço, mas também com efetividade, no sen- tido tematizado por Habermas (2003, 1987a, 1987b). É ―pluralidade‖, não singularização (BAUMAN, 2001, p. 123), também é ―Multiplicidade, complexidade, movimento, rapidez; paradoxo, volatilidade, ―ambiguidade‖. A hermenêutica de Bauman pode ser compreendida como ―não apego‖ ou não ―compromisso duradouro com nada‖ (BAUMAN, 2001, p. 144), pelo menos num primeiro momento ou como uma necessidade já preestabelecida de alguma forma apriorística ou por algum sistema que não acareado pelo pensamento crítico-reflexivo (BAUMAN; DESSAL, 2014, p. 91) e enfrentado pelas vias pluralizadoras do diálogo. Um modo de não temer o caminho errado, ―pois nenhum caminho [é capaz de manter a] mesma direção por muito tempo e porque voltar atrás ou para o outro lado [é] opção constante e ins- tantaneamente [disponível]‖. (BAUMAN, 2001, p. 144). A hermenêutica baumaniana repre- senta ―a sabedoria necessária a seu futuro‖ (BAUMAN, 2001, p. 159) e essa sabedoria, racio- nalidade não ―pura‖, é a ideia do ―labirinto‖, a ―imagem-mestra da condição humana – e sig- nifica ‗o lugar opaco onde o desenho dos caminhos não obedece a qualquer lei. O azar e a surpresa mandam no labirinto, o que sinaliza a derrota da Razão Pura‖ (BAUMAN, 2001, p. 159). De onde, então, brotam a possibilidade de engajamento, de comunidade? É desse resi- dual de solidez, em nossa interpretação, que decorre a abertura humana para a solidariedade, para a necessidade do aprendizado, da educação, que validam as condições, juntamente com o diálogo, da manutenção, alternativa e viabilidades da existência comum, da vida, do instituir.

Vejamos em Gadamer aproximações possíveis com Bauman, quando, em nossa com- preensão, Bauman, radicaliza a possibilidade de abertura hermenêutica e atribui à hermenêuti- ca, o status plural. Justamente porque em Gadamer (2012, p. 67) ―A hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo, com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde a ‗coisa‘ possa me falar‖. Mas ain- da, além disso, é preciso tomar consciência, e ―consciência histórica‖ que ―a nossa relação com as ‗coisas‘ não é uma relação que ‗ocorra naturalmente‘, sem criar problemas. Precisa- mente sobre a tensão que existe entre a ‗familiaridade‘ e o caráter ‗estranho‘ da mensagem que nos é transmitida pela tradição‖ (GADAMER, 2012, p. 67). Em nossa compreensão, Ga- damer funda a tarefa hermenêutica e Bauman vê a necessidade ou/e o horizonte da pluralida- de.

O sentido de ―ambivalência‖ – para fortalecer nossa tese com um exemplo extraído do pensamento marxiano na crítica da volatilidade do capital – também está presente na citação: ―[...] o capital rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de

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movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qual- quer comprometimento local com o trabalho‖ (BAUMAN, 2001, p. 171). A ―procrastina- ção‖66 é a expressão do sentido de ―ambivalência‖, pois se apresenta como um peregrinar, como diz Bauman, para um local, almejando chegar, contudo, pondo novos objetivos, novos locais. Ela, a ―hermenêutica pluralizadora‖ pode assumir o sentido, na sociedade líquida, de ―captar as coisas‖ e sinalizar ―o fim da peregrinação. Assim, também, significa o fim de uma vida da qual deriva seu único sentido‖ (BAUMAN, 2001, p. 180). Uma espécie de ―adiamen- to da satisfação‖, que pode significar também, adiamento da apreensão de sentido último,