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Do porquê ―ambivalência‖ se institui em sistema paradigmático

2.1 Algumas razões que facultam o status de paradigma à ―ambivalência‖ enquanto categoria

2.1.1 Do porquê ―ambivalência‖ se institui em sistema paradigmático

Refletimos nesse momento, no sentido de constituir um significado para o termo para- digma, porque nos parece que Zygmunt Bauman opera, na construção de seu percurso teórico, no paradigma da ambivalência. Não vemos nisso um problema negativo e, tampouco, o quali- ficamos pejorativamente. Nossa intencionalidade, nesse primeiro momento da discussão, é realizar um esforço na direção de, ao mesmo tempo em que não limitar a categoria baumania- na da ambivalência, pensar sua composição com o sentido que talvez se aproxime da ―com- plexidade‖, de Edgar Morin59, da ―dialética‖, em sentido genérico, e da ―hermenêutica plura- lizadora‖, na interpretação desenvolvida pelo próprio Bauman. Laborando nessa tentativa pensamos, para melhor estruturar essa questão de paradigma em Bauman, a partir do pensa- mento de Thomas Kuhn. É dele nossa compreensão de ―paradigmas‖ como modelos, repre- sentações e interpretações de mundo, com validades ou aceitações científicas, universalmente reconhecidas – mesmo que em um micro-universo científico/uma comunidade científica –, fornecendo modelos explicativos nas resoluções de problemas, organização, estudo, sistema- tização e compreensão das situações, problemas e questões humanas.

Destacamos a partir da obra kuhniana A estrutura das revoluções científicas, publicada em 1962 nos Estados Unidos, algumas características que nos permitem ver no termo ―ambi- valência‖, embora não aí trabalhado, uma estrutura paradigmática: identificação comunitária (consensos de uma comunidade científica), ―compromissos‖ dessa comunidade (adoção de parâmetros explicativos), disponibilidade para ―compartilhamento‖ e discussão (abertura para a crítica e autocrítica), perspectiva de comunhão de princípios (visualização teórico- explicativa com certa proximidade em uma comunidade, conotando ―conhecimento tácito e intuição‖), compreensão e admissibilidade da ―revolução‖, da mudança (o conhecimento mu- da, se amplia, aprofunda). Desse modo, o conhecimento, na interpretação de Thomas Kuhn (2009, p. 244), ―constitui o processo neurológico e transforma estímulos em sensações‖ apre- sentando

59 Essa aproximação aparece em Dürks e Pithan da Silva (2014), especialmente no capítulo terceiro de Ambiva-

lência, complexidade e conhecimento: Bauman e Morin, instituindo-se como um ―princípio dialógico na cons- trução do conhecimento‖, justamente, decorrente da convivência plural e pluralizadora entre a ―complexidade‖ e a ―ambivalência‖. (p. 39), acontecimentos simultâneos na dimensão do imaginário/da linguagem e do real.

75 as seguintes características: foi transmitido pela educação; demonstrou ser, através de tentativas, mais efetivo que seus competidores históricos num meio ambiente de um grupo; e, finalmente, está sujeito a modificações tanto através da educação posterior como pela descoberta de desajustamentos com a natureza, [e, ainda um paradigma não é absoluto, pois é fruto de uma constante] ―revolução‖ (revolucionam e aí se originam, portanto, são relativos), porque é próprio da ―natureza da ciência‖ (KUHN, 2009,

p. 244).

A partir de Kuhn (2009, p. 13) podemos dizer que paradigmas são modelos de expli- cações científicas, ―matrizes disciplinares‖ (GAMBOA, 2012, p. 30), universalmente reco- nhecidas que, durante algum tempo, fornecem ―soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência‖. Uma novidade interessante, vista por Kuhn, é a relatividade, também e a transitoriedade, desses modelos. Nesse sentido também procuramos situar a con- dição paradigmática da ambivalência no pensamento baumaniano. Mesmo sendo a ambiva- lência, em nossa compreensão, um paradigma que nos permite compreender a dinâmica da realidade e o horizonte da linguagem, indicando as amplitudes, horizontes, metodologias de análise, é necessário ter presente a limitação de uma concepção/modelo, pois, não há em Bauman, possibilidade no mundo humano de uma teoria/pensamento/razão absoluta com condições de abarcar toda a verdade. Desse modo, a própria condição paradigmática da ambi- valência, a partir da teoria baumaniana, está condicionada a uma espécie de flui- dez/volatilidade. Paradoxalmente – compreendemos a realidade da ambivalência como para- doxal no desenvolvimento desse texto – a própria ambivalência está condicionada, é também vítima da sua própria condição. E nesse sentido é onde nos ancoramos para encontrar, de al- guma forma, na nova compreensão de comunidade baumaniana, residuais sólidos da condição humana, por exemplo, a solidariedade, a necessidade do conhecimento – ou de algum conhe- cimento/ciência/racionalidade -, educação, convivência/relação intersubjetividade.

Cremos que em Bauman a ―ambivalência‖ se mostra como um paradigma que, nesse momento da história da humanidade/a modernidade dispende um esforço explicati- vo/interpretativo do horizonte sócio-filosófico – ou permite compreender, de modo mais sufi- ciente, porém, com a consciência do não-absoluto – a realidade e as interpretações, os fenô- menos socioeconômicos e culturais, as ações e intenções da ―modernidade sólida‖ e da ―mo- dernidade líquida‖. Duas faces da mesma modernidade, indicando sua pluralidade e ambiva- lência. Para nossa compreensão, desse modo, ―paradigma‖ é um ―modelo explicativo‖ não absoluto; mas parâmetro útil, horizonte, fronteira necessária, em um determinado contexto coletivo, em uma determinada época e sociedade. É digno de anotação que, para Thomas Kuhn (2009), a medida da absolutização de um conhecimento, de um conceito, de uma teoria,

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portanto de uma estrutura, é a medida do fim da ciência. Outro momento relevante e que qua- lifica o esforço de compreender ―ambivalência‖ como paradigma, se dá na compreensão do ―desenvolvimento da maioria das ciências [...] caracterizado pela contínua competição entre diversas concepções de natureza distintas‖ (KUHN, 2009, p. 22-3). No conceito de paradigma kuhniano, também percebemos o movimento dialético, o diálogo das teses, seu ―confli- to‖/oposição, como ocorrências sócio-históricas passíveis de processos de revolução.

Seguindo ainda com Kuhn (2009), podemos dizer que os paradigmas surgem numa tradição. Eles não estão obrigados a submissões e/ou a regras pré-estabelecidas com ortodo- xia. Não necessariamente há uma interpretação padronizada e/ou regras determinadas, fixas. São argumentos, em nossa análise, que demonstram a condição paradigmática da ―ambivalên- cia‖ baumaniana, a dialética e a hermenêutica presentes no movimento dinâmico da ciên- cia/do conhecimento. Da mesma forma, a não prevalência de uma ciência ou de um modelo dominante, libera o trânsito para diálogos entre as tradições de pensamento/tradições filosófi- cas. Embora a tradição filosófica e científica tenha se apropriado do sentido de paradigma como sendo ―exemplo, amostra, padrão, modelo, cópia‖, principalmente pela vertente platôni- ca (MORA, 2004b, p. 2199) a partir das obras A República e Timeu, de Platão, Thomas Kuhn parece dar outra conotação ao termo, especialmente na obra A estrutura das revoluções cientí- ficas (2009). Compreendemos de Kuhn que é no interior dos paradigmas que subsistem as perplexidades e elas se constituem em ―revoluções científicas‖, superando o próprio paradig- ma que lhes permite declarar as insuficiências das explicações/sentidos/compreensões vigen- tes. Para Mora (2004b, p. 2200), o conceito de paradigma kuhniano se conecta com o ―concei- to de episteme [ou campo epistemológico] proposto por Foucault e dos conceitos de ‗corte epistemológico‘ e de ‗limiar epistemológico‘, de Bachelard‖.

No sentido foucaultiano, paradigma parece ser como que uma estrutura subjacente, in- consciente, que delimita o campo do conhecimento. ―Um lugar no qual‖ o pensamento/a pes- quisa se instala ―e a partir do qual conhece e atua de acordo com as regras estruturais resultan- tes da episteme‖ (MORA, 2005b, p. 851). Na compreensão de Foucault, é muito mais arqueo- logia do que, propriamente, estruturação. Nesse sentido, compreendemos que paradigma refe- re-se, sobremaneira, a busca/investigação das origens, dos princípios, dos horizontes, métodos e procedimentos que permitem compreender os problemas, as questões e, também, o modo como as possíveis conclusões – ainda que provisórias e relativas – se organizam/sistematizam. Então, paradigma, ―Não é em vão que não se trata de história, mas de ‗arqueologia‘, e não é em vão que se destaca a completa descentralização da episteme, as rupturas, as descontinui-

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dades‖ (MORA, 2005b, p. 852), conceitos que nos aproximam do sentido de ―corte epistemo- lógico‖, de Bachelard (MORA 2004a, p. 593). Esse sentido bachelardiano de paradigma re- mete a compreensão de ―contexto epistemológico‖, ou seja, não perene, não durável, não eterno; mas suficiente para um determinado momento. Paradigma é, desse modo, uma espécie de ―fronteira epistemológica‖ (MORA, 2004a, p. 594), porém, não absoluta, por onde há pos- sibilidades de trânsito e identificação/segurança sem perda da liberdade. Para Marcondes (2002, p. 28), a crise de paradigmas é característica da impossibilidade de eleição de um único paradigma como dominante e suficiente para os projetos, estudos, debates e parâmetros da ciência, das operações de pensamento e das compreensões e sentidos da realidade. Carlos Al- berto Plastino (2002, p. 30), somando-se ao debate, sugere que Marcondes nos ilumina na direção da insuficiência de pensar somente em crise paradigmática. Plastino vê a urgência do debate também no campo da ―crise do conceito de crise dos paradigmas‖ e nesse sentido, co- munga com Elmar Altvater (1999) para quem a existência dos paradigmas não significa que seus conceitos sejam consensuais. Para Altvater (1999, p. 110), ―paradigma é mais que uma metodologia. Inclui conteúdos‖ e também ―afirmações sistemáticas sobre o mundo real e a vida real‖. A compreensão que desenvolvemos de paradigma nos desafia a pensá-lo como possibilidade de ver o mundo na sua diversidade/pluralidade, como problema porque desde aí estão situadas as condições básicas para a instituição do diálogo, não da hegemonia/de la ma- jorité.

Ao compreendermos paradigma como algo que se põe para além da doxa/da opinião, do aparente e, mesmo, do senso comum, identificamos a plausibilidade da noção paradigma como um grande guarda-chuva ou uma grande lanterna por onde pesquisa, pesquisador e construção têm condições de, em tais parâmetros, dizer algo sobre o objeto de estudo de modo transdisciplinar. O paradigma, nos parece, ilumina e protege para além de uma área. Para Agamben (2009), paradigma não é apenas um exemplo, mas, como concebeu Thomas Kuhn, se constitui como um verdadeiro caso singular, capaz de fazer repensar os conceitos e a práti- ca científica. O paradigma não somente reconduz a modernidade à sua arché, à sua origem, mas torna inteligível uma totalidade de fenômenos de um contexto histórico mais amplo e problemático, elucidando, pois, relações que escaparam ao olhar do historiador. Desse modo, buscamos enfatizar ―paradigma como uma via de acesso para compreender‖ (PEIXOTO, 2018, p. 10), assim como o paradigma da ambivalência nos ensina que é preciso relativizar as certezas e dispor-se ao diálogo. Até que ponto, do interior da ambivalência, se pode afirmar que há teses vencidas?

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Em nossa hermenêutica, a passagem da obra de Karl Marx, Para a Crítica da Econo- mia Política (1982), marca o debate em torno do movimento dialético que circunda a concep- ção kuhniana do paradigma, como uma estrutura em movimento, uma estrutura não estrutura- da, mas em permanente construção:

[...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção estas que corres- pondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas ma- teriais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da soci- edade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (MARX, 1982, p. 25)60.

O marxólogo José Barata-Moura (1998) acrescenta, a propósito da citação anterior, o comentário seguinte: ―Traço marcante de toda esta concepção é, sem dúvida, o reconhecimen- to de como um sistema se tece de relações (tendencialmente contraditórias), de como ele pos- sui constitutivamente uma dinâmica e não se resume a um mero composto de elementos mais ou menos rígidos e inertes‖. Portanto, ―o sistema não exclui a relação; o sistema constitui-se de relações‖. Ele ―não coarcta61 a criatividade das relações. Pelo contrário, define um horizon- te de possibilidades reais [...]‖. E assim,

não se trata de fazer do homem (saiba-o ele ou não) instrumento de qualquer Ideia, ou razão-de-sistema, de ressonância aproximadamente hegeliana, mas tão-só de compre- ender o quadro material concreto – e por isso mesmo efectivo – da sua liberdade (…). O trabalho do subjectivo é indispensável, enquanto ingrediência e agência da própria materialidade do ser, mas supõe sempre um quadro objetivo em que dialecticamente se exerce (BARATA-MOURA, 1998, p. 49-50).

Nesse sentido, igualmente, marcamos a influência marxiana no pensamento de Bau- man, tematização do primeiro capítulo. Percebemos a dialética auxiliando na compreensão da ambivalência como paradigma não estacionário, não restrito/fechado em sua verdade, mas aberto na dinâmica da existência; uma espécie de aprendizado em construção. É desse hori- zonte que compreendemos o paradigma da ambivalência, porque, do contrário, não seria am-

60 Karl Marx é uma das fontes assumidas por Bauman, contudo, não sem críticas, por vezes severas, principal- mente nas compreensões que o marxismo apresenta determinismos. Nessa passagem, contudo, utilizamos Marx para demonstrar a possibilidade dinâmica, de mudança, que as construções humanas podem conter a partir de seus contextos sócio-históricos e indicamos as revoluções que, apesar das condicionalidades, são possíveis de acontecimento. É o caso do conceito de paradigma que assumimos nessa tese. Pode ser uma estrutura rígida, até então, mas não, necessariamente, é definitiva e única em nosso momento. Principalmente se considerarmos uma estrutura para ambivalência; necessariamente será uma estrutura não estruturada em definitivo/não determinista. 61 A terminologia é utilizada com o sentido de não reduzir, não estreitar, não restringir, não impedir.

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bivalente. Condição que, a nosso ver, é garantida pela dialética enquanto potencialidade de consciência da necessidade do movimento interno e permanente relação com o movimento dos opostos/conflitos/diferentes no mundo da vida. Porque, para Bauman (2014, p. 31), ―No hay una senda benigna, fácil de transitar y a prueba de daños colaterales, que conduzca a obe- decer las normas de la vida civilizada‖.