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3 PARA UMA ARQUEOLOGIA DO PARADIGMA DA AMBIVALÊNCIA:

4.3 Ambivalência e Educação

4.3.3 Educação e solidariedade à luz da ambivalência

Julgamos fundamental, no primeiro momento deste item, marcar que a condição para- digmática da ambivalência - alerta já disparado em outros momentos desta tese - se apresenta, em nosso entender e a partir da hermenêutica pluralizadora/sociológica de Bauman e das compreensões do que seja paradigma em Thomas Kuhn, Alain Touraine e Boaventura de Sousa Santos, como um modo/uma possibilidade de ver/analisar a realidade. Um parâmetro apenas, entre tantos outros possíveis, para explicar/iluminar – ainda que por um único período - o mundo da vida/o mundo compartilhado, tanto nas suas dimensões simbólicas quanto con- cretas. Igualmente, saber que esse paradigma, embora uma eleição apenas, entre outras possí- veis, produz realidades/produz mundos e, portanto, aventa-se como via produtora de verdades. Contudo, nosso movimento nessa construção não busca estabelecer teleologias; almejamos discutir a condição humana iluminados por um paradigma, o da ambivalência, de mãos dadas com a hermenêutica baumaniana, comunhão que vemos central nas tematizações de Bauman e expressões de seu percurso teórico.

Justamente porque compreendemos a ambivalência na sua força crítica à sociedade tanto sólida quanto líquida e, desse modo, também a um modelo de educação sobrevivendo de verdades outorgadas e por indivíduos revestidos de status e poder, tematizamos a ambivalên- cia como paradigma considerando as amplitudes que este prisma plural de análise – o para- digma da ambivalência – pode desenvolver. Em nossa hermenêutica, a concepção sociológica baumaniana e a operação do pensamento desde o plural horizonte da ambivalência, expressão central do percurso teórico de Bauman, a educação dos tempos líquidos precisa operar na re- lação dialógica dois papéis como ―os da desvulgarização do vulgar e da vulgarização (contro- le, domesticação) do invulgar‖, pois é desse modo que podem se desenvolver as habilidades exigidas para reconectar os isolados movimentos e ações individuais com benefícios também individuais e é por esse viés que, igualmente, desenvolve-se a possibilidade de ―desvelar a ‗doxa‘ (o conhecimento com que pensamos, mas não sobre o qual pensamos), [...] habilitando e colocando em movimento um processo de perpétuo exame crítico, e talvez até de controle consciente sobre seus conteúdos, por aqueles até agora ignorantes do fato de que o possuem e conscientemente o usam. Em outras palavras, exigem a arte do diálogo‖ (BAUMAN, 2013a, p. 214).

A possibilidade da comunidade, da solidariedade e da educação como instituições dos indivíduos em relação a partir do interior da modernidade líquida/da volatilidade das relações,

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encontra respaldo em Bauman que explica ser ―Esse um paradoxo interno do comunitarismo. Dizer ‗é bom ser parte de uma comunidade‘ é um testemunho obliquo de não fazer parte, ou não fazer parte por muito tempo, a menos que os músculos e mentes dos indivíduos sejam exercitados e expandidos‖. Essa revelação de ambivalência permite ao próprio Bauman, indi- car que ―Para realizar o projeto comunitário, é preciso apelar às mesmíssimas (e desimpedi- das) escolhas individuais cuja possibilidade havia sido negada. Não se pode ser um comunitá- rio bona fide sem acender uma vela ao diabo: sem admitir numa ocasião a liberdade da esco- lha individual que se nega em outra‖ (BAUMAN, 2001, p. 195). E Bauman, nos parece, deixa clara sua intencionalidade de resgate e valorização da comunidade, ao afirmar, logo adiante, sociologicamente, que ―o comunitarismo é uma reação esperável à acelerada ‗liquefação‘ da vida moderna‖. Nesse ponto, parece unir a comunidade e a solidariedade como laços humanos constitutivos da humanidade, referindo-se que a busca/opção pela comunidade é, na sua com- preensão, ―uma reação antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido como a mais aborre- cida e incômoda entre suas numerosas consequências penosas – o crescente desequilíbrio en- tre a liberdade e as garantias individuais‖. E acresce: ―A fragilidade e transitoriedade dos la- ços pode ser um preço inevitável do direito de os indivíduos perseguirem seus objetivos indi- viduais, mas não pode deixar de ser, simultaneamente, um obstáculo dos mais formidáveis para perseguir eficazmente esses objetivos – e para a coragem necessária para persegui-los‖ (BAUMAN, 2001, p. 195). Nesta tese, por sua paradoxalidade, Bauman tangencia e, com isso, ilumina o paradigma da ambivalência, valorizando a possibilidade da hermenêutica plu- ralizadora como elemento de certa naturalidade ou originariedade da existência humana no mundo comum, contudo nem sempre observado ou tornado atitude desse mundo da vida em função das desvirtuações e forças que a racionalidade instrumental e singularizadora exerce sobre os indivíduos.

Do interior do ―Estado-nação‖ brotam - reflete o capítulo Comunidade, na obra Mo- dernidade Líquida (2001) - dois sentimentos opostos ou, pelo menos, distintos: o ―patriotis- mo‖ e o ―nacionalismo‖, debate que desenvolvemos na sequência, visualizando a centralidade que assumem na instituição da comunidade, lócus da possibilidade construtiva do espírito solidário. O nacionalismo como o desejo da igualdade, da uniformidade, do controle, da ho- mogeneidade, confere espaço para o ―nós‖, mas um nós, acentua Bauman, agregador das igualdades ou onde as pequenas diferenças podem ser toleradas porque os traços e caracterís- ticas de igualdade são mais vistosos, mais salientes e dignos de destaques e valorização. Por outro lado, desse mesmo meio comunitário, superando a condicionalidade retórica, apenas,

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constitui-se em sentimento acolhedor o patriotismo, afeito a valorização do sentimento de pertença, de opção, de escolha individual. No fundo há uma característica fundamental nessa distinção entre patriotismo e nacionalismo, autorizando Bauman a pensar na possibilidade de escolha, na capacidade de opção e desejo dos indivíduos em participar, em integrar-se. A par- tir de Leszek Kolakowski, Bauman resgata um resíduo de solidariedade entre os patriotas, mais afeitos à ―benevolência‖ e ―tolerância em relação à variedade cultural e especialmente às minorias étnicas e religiosas‖ (BAUMAN, 2001, p. 199).

O Estado-nação se constitui e observa rigorosamente a ―etnicidade‖ porque ela tem condições de ―naturalizar a história, de apresentar o cultural como ‗um fato da natureza‘, a liberdade como ‗necessidade compreendida (e aceita)‘‖. Desse horizonte, concluirmos a partir de Bauman (2001, p. 198) que ―Fazer parte de uma etnia estimula à ação: devemos escolher a lealdade à nossa natureza – devemos tentar, com o maior esforço e sem descanso, viver à altu- ra do modelo e assim contribuir para sua preservação‖. Esse padrão não permite opção, esco- lhas; mas aceitação e submissão. As diferenças, as características individuais, permanecem, subsistem latentes. Dessa dimensão, desponta outro paradoxo na relação entre a uniformiza- ção/padronização/homogeneidade/ação de controle e regulação do Estado-nação como fator de agregação da comunidade e o desejo de instituir-se, aparecer, constituir-se como indivíduo, como grupos menores mais identificados, portanto, outras comunidades dentro desse grande ―Leviatã‖. Desse sentimento de comunidade, para Bauman, surgem os ―comunitarismos‖ que, na nossa compreensão, são comunidades suprimidas pela hegemonia e homogeneização do Estado-nação, buscando autoafirmação. Como compreende Bauman, minorias lutando para a manutenção de seus costumes, de suas histórias, de modo que

[...] quanto mais determinada a Kulturkämpfe iniciada e supervisionada pelo Estado, maior o sucesso do Estado-nação na produção de uma ―comunidade natural‖. Além disso, os Estados-nação (diferentemente das comunidades hoje projetadas) não se lan- çaram à tarefa no escuro e nem pensariam em depender apenas da força da doutrina- ção. Seu esforço tinha o poderoso apoio da imposição legal da língua oficial, de currí- culos escolares e de um sistema unificado, que as comunidades projetadas não têm e nem estão perto de adquirir (BAUMAN, 2001, p. 199 - grifo no original e desta- que nosso).

Dentro do sistema Estado-nação que se pretende regulador e por isso difundindo o sentimento de nacionalismo, subsistem desejos individuais capazes de se associar em comu- nidades, ou grupos menores, pelo cultivo do sentimento de patriotismo, de acolhimento, de hospitalidade, de preocupação com as individualidades/com outras identificações distintas das hegemônicas; mas não menos fortalecidas, capazes de manter-se com forças de instituir-se nas

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brechas do sistema. Assim compreendemos que ―O aspecto em que somos semelhantes é de- cididamente mais significativo que o que nos separa; significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar posição‖ (BAUMAN, 2001, p. 202). A ideia de pluralismo como essencial às sociedades, às próprias comunidades, desse modo, é mantida e revalidada. No seio do pluralismo que subsiste nas sociedades, mesmo nas modernas, nas ditas ―sociedades civilizadas‖, reguladas pelo padrão do Estado-nação, a subjetividade é a estrutura última, guardiã da pluralidade e de onde emanam os mais recônditos desejos de li- berdade. É também desse lugar que advém a necessidade do diálogo, do acordo cotidiano/em construção como possibilidade de expressão das diferenças, de convivência, manutenção da comunidade e instituição de novas comunidades e possibilidades. Sem forçar a exegese ou exagerar o salto quantitativo/qualitativo, nesse gérmen encontra-se a viabilidade da solidarie- dade.

Mantendo a aproximação que Bauman faz em todo seu percurso teórico com Jürgen Habermas, no que se refere e nos parece ser uma crença baumaniana, a racionalidade comuni- cativa se apresenta na salvaguarda das possibilidades, pois ―o tipo mais promissor de unidade é a que é alcançada, e realcançada a cada dia, pelo confronto, debate, negociação e compro- misso entre valores, preferências e caminhos escolhidos para a vida e a auto-identificação de muitos e diferentes membros da polis, mas sempre autodeterminados‖ (BAUMAN, 2001, p. 204)96. Parece-nos possível aproximar a solidariedade desse processo, bem como a possibili- dade e necessidade de um percurso de educação em Bauman, pois é ele mesmo que nos faz pensar sobre a ―volatilidade das identidades‖, como acontecimento próprio da modernidade líquida. Das circunstâncias que envolvem o humano brota a necessidade da realização de es- colhas/opções assim ante as possibilidades que se apresentam ou são instituídas; mas especi- almente na individualidade, na pessoalidade, é que elas assumem uma direção/orientação, se viabilizam enquanto opções, atitudes/ação. Assim como as escolhas/as opções são realizadas na dimensão da individualidade, daí também decorre a necessidade, segundo Bauman, de ―aprender a difícil arte de viver com a diferença ou produzir condições tais que façam desne- cessário esse aprendizado‖ (BAUMAN, 2001, p. 204), ou seja, se é necessário aprender a conviver com a diferença, é porque a própria diferença assume uma relevância impeditiva da

96 Bauman ressalta residir nessa máxima o modelo republicano de unidade, e afirma ainda ser essa uma unidade emergente como ―uma realização conjunta de agentes engajados na busca de auto-identificação; uma unidade que é um resultado, e não uma condição dada a priori, da vida compartilhada; uma unidade erguida pela negoci- ação e reconciliação, e não pela negação, sufocação ou supressão das diferenças‖. Para esse mesmo Bauman (2001, p. 204) ―essa é a única variante da unidade (a única forma de estar juntos) compatível com as condições da modernidade líquida, variante plausível e realista‖.

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aproximação, da relação, da convivência. Vinculamos a essa preocupação baumaniana, a prá- xis educativa agindo na produção da solidariedade pela abertura ao outro e estímulo ao diálo- go, caminho da vinculação/relação intersubjetiva.

Aprender a conviver, enquanto relação educativa, ensina que a diferença precisa assu- mir um status de ―normalidade‖, de ―naturalidade‖, de forma que os indivíduos não se espan- tem, não estranhem a diferença porque ela é parte do mundo da vida/mundo compartilhado97. Radicalizando essa tese, Bauman (2001, p. 205) ensina que ―Não há afirmação que não seja auto-afirmação, nem identidade que não seja construída‖. O desejo massificador advindo com a globalização e sucumbindo os indivíduos, parece, para Bauman (2011b, p. 219), acumular mais baixas humanas e distanciar mais os indivíduos na sua luta diária entre a segurança e a liberdade, promovendo mais inimizades do que atuando no sentido de ―promover a coexistên- cia pacífica das comunidades‖. Com a globalização e o advento da fluidez das relações e es- truturas diluindo a atuação do Estado-nação, em nossa concepção, as forças econômicas tam- bém imbuíram-se de uma força de liberdade de ação capaz de interferir na vida pessoal dos indivíduos e das próprias comunidades. O vazio dessa liberação passa a ser ocupado pelos apelos do mercado capitalista que, igualmente volátil, adentra velozmente os espaços de segu- rança dos indivíduos, as subjetividades, e passa a compor um novo controle, uma nova regu- lação, justamente a pretexto da liberdade. Na teorização baumaniana (2013a, p. 98), o merca- do de consumo, na sua atuação mediadora para a operatividade e eficácia da dinâmica, ―ofe- rece símbolos materiais de interesse, solidariedade, compaixão, bem querer, amizade e amor‖. Embora elementos da essencialidade humana, travestidos da roupagem capitalista e forjados para fisgar o maior número de indivíduos, não deixam de expressar a radical relevância que representam, pois, é desse reconhecimento que o capital/o mercado consumista parte para obliterar as concepções humanas autônomas e ressignificá-las a favor dos apelos do mundo do capital. Então, o

mercado de consumo adota e assimila a esfera cada vez mais ampla das relações inter- humanas, incluindo o cuidado com o Outro, seu princípio moral organizador. Nesse

97 O esforço desta tese também consiste no apresentar o pensamento baumaniano operando naquilo que compre- endemos como paradigma da ambivalência. Nos parece que, também, no sentido da ―identidade‖, Bauman tema- tiza nesse horizonte plural. É o que se apresenta ao escrever em Modernidade e Ambivalência, especialmente, no capítulo 2 – A construção social da ambivalência acerca de um dos conceitos caros em sua teoria, a identidade: ―Uma identidade que qualquer um pode adquirir pela diligência e esforço é uma identidade que também pode ser abandonada à vontade. Esse tira e põe de identidade é, no entanto, um fundamento frágil demais para susten- tar a existência segura (a ‗integridade‘) do grupo. A aceitação de raízes ‗meramente culturais‘ (isto é, artificiais, manipuláveis e retificáveis) da idiossincrasia do expedir vistos e passaportes, ao seu direito de controlar o tráfico de fronteira. E uma fronteira desguarnecida é, para todos os efeitos práticos, uma contradição em termos‖ (BAUMAN, 1999b, p. 78).

183 processo, submete o projeto e a narrativa dessas relações às categorias inventadas para atender à recorrência regular dos encontros entre os bens de mercado e seus compra- dores, e portanto para garantir a contínua circulação de mercadorias (BAUMAN, 2013a, p. 98).

Vemos que ―Nossas intenções de fazer bem aos outros foram comercializadas‖ (BAUMAN, 2013a, p. 100). A latência dos sentimentos, aqui denominados essenciais do hu- mano, como a solidariedade, a felicidade, a satisfação, a convivência, o diálogo, em síntese, a capacidade de pensamento/de racionalidade e de sentir/emotiva, tem sido explorada com força poderosa pelo capital pós-moderno que acessa a via do consumo como a grande imagem da vida e institui a arquitetura de elementos para validar essa possibilidade como única e a legi- timá-la. Dessa forma, compreendemos que, se o mercado consumista é capaz de colocar os sentimentos humanos na bolsa de valores, independente de quais meios utiliza, é porque esses sentimentos existem fortes, pairam ainda no interior humano e são acessados com relativa facilidade. Portanto, estão latentes no humano, nos indivíduos, e aguardam ativação98. A ciên- cia do mercado consumista, na onda de ―uma das características mais preeminentes da vida que se leva num ambiente líquido-moderno‖, a saber, ―a instabilidade endêmica e em aparên- cia incurável da posição social‖ (BAUMAN, 2013a, p. 101) está sabendo como e porque fa- zer. Para Bauman (2013a, p. 98), essa força do mercado agindo associada ao poderoso capital, volátil e diluidor dos tempos líquidos, intencionalmente ou não, é coadjuvante ―no crime de romper os vínculos inter-humanos [...] tanto antes quanto depois de cometido o crime‖.

Para nós, uma vez mais aparece a potencialidade da educação no mundo líquido ope- rando a partir do paradigma da ambivalência, justamente porque às subjetividades desses tempos, se interpõem novas exigências como ―conciliar a capacidade de fixar-se a uma iden- tidade com a de mudá-la quando se deseja‖ (BAUMAN, 2013a, p. 101). Esta dinamicidade parece desenvolver ―[...] a capacidade de ‗ser quem se é‘ com a de ‗tornar-se outra pessoa‘‖ (BAUMAN, 2013a, p. 101). De um modo, desenvolve-se um aprendizado autônomo, mas de outro, se evidenciam intencionalidades comprometedoras do ideário capitalista. Na crítica

98 O Bauman (2013a , p. 101-2) de Danos Colaterais: desigualdades sociais numa era global, aprofunda a análi- se colocando a lógica dessa ocorrência tanto no âmbito da moral quanto da psicanálise. Nesse sentido escreve: ―Uma vez mais, as necessidades dos indivíduos e as ofertas do mercado têm uma relação [―como no encontro entre consumismo e descarte da responsabilidade moral‖] semelhante à do ovo e da galinha; um não pode ser concebido sem o outro, embora decidir qual dos dois é causa e qual é efeito esteja fora de questão. Contudo, a defesa da indispensabilidade, assim como da conveniência, da confiabilidade e da eficácia, dos serviços do mer- cado de consumo é algo que deve ser feito de maneira conveniente. O terreno já foi preparado para essa defesa ao se estabelecer um laço entre preocupação moral e bens de consumo; o que resta a fazer é transplantar as incli- nações arraigadas e desenvolvidas no contexto da ‗responsabilidade pelo Outro‘ para o contexto da ‗responsabi- lidade por (e para com) si mesmo‘. [...] clamores invocando termos emprestados ou roubados do domínio das obrigações morais precisam ser e são ressemantizados para legitimar o comodismo consumista‖.

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baumaniana, ―É a posse simultânea das duas capacidades [subjetividade e mudança] que o ambiente líquido-moderno exige, e são as ferramentas e os símbolos necessários para exercê- las que os mercados de consumo prometem fornecer‖ (BAUMAN, 2013a, p. 101).

A insignificância/ineficiência do Estado-nação é divulgada como estratégia para pro- vocar um vazio onde seja possível inseminar germes do consumo, do individualismo, da fu- gacidade das relações e superficialidade dos valores, por onde principiam as desconstruções das esperanças e das utopias, dos sentidos e, com eles, das possibilidades. Fredric Jameson (2007) vê esse movimento como intencionalidade do capital transnacional, próprio e típico do capitalismo pós-industrial. Nessa aproximação de compreensões em nossa proposta, Bauman (2003, p. 42) tece dura crítica ao movimento realizado pelo capital:

A ―desregulamentação‖ é palavra da hora e o princípio estratégico louvado e pratica- mente exibido pelos detentores do poder. A ―desregulamentação‖ é demandada por- que os poderosos não querem ser ―regulados‖ – ter sua liberdade de escolha limitada e sua liberdade de movimento restrita; mas também (talvez principalmente) porque já não estão interessados em regular os outros. O serviço e o policiamento da ordem vi- raram uma batata quente alegremente descartada pelos que são suficientemente fortes para livrar-se da incômoda sucata, entregando-a de pronto aos que estão mais abaixo na hierarquia e são fracos demais para recusar o presente venenoso (grifos no origi- nal).

A ação do capitalismo, fortemente ideológica99 nessa porção fluída da modernidade, desestabiliza/desautoriza quaisquer arqueologias inclusive a que empreende no sentido de estudar/instituir e estreitar laços sociais e vínculos humanos. Dessa forma põe em risco – e isso parece intencional –, a possibilidade de conceitualizar/compreender a condição humana tanto no horizonte simbólico quanto empírico. Visualizamos esta ação do capital como carac- terística dos tempos e das relações precarizadas ou ―falta de laços sociais com os membros ‗legítimos‘ da comunidade (ou a proibição de estabelecer tais laços)‖ (BAUMAN, 2011b, p. 222). Na superação ou enfrentamento das diversas formas de violência, os indivíduos unem-se em comunidade na defesa de sua segurança. Embora paradoxal – elemento do paradigma da ambivalência – a violência a ser eliminada, mesmo que realizada com outra violência, agrega, de alguma forma, os laços sociais:

99 Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, na obra A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de

ensino parecem denunciar a cooptação, pelo capital/classes hegemônicas, do sistema de ensino que, então, passa a atuar no sentido da reprodução, de modo ―dissimulado‖ (1992, p. 204). Intuímos que, a ―função ideológica do sistema de ensino‖, na crítica de Bourdieu e Passeron, principia com o ―Descobrir que se pode relacionar com o mesmo princípio todas as falhas que podem ser descobertas em análises do sistema ensino baseadas em filosofias sociais aparentemente tão opostas quanto um economismo evolucionista e um relativismo culturalista, é obrigar- se a buscar o princípio da construção teórica capaz de corrigir essas falhas e de explicá-las‖ (BOURDIEU; PAS- SERON, 1992, p. 204).

185 A visão da exportação calculada da violência interna para além das fronteiras da co- munidade (a comunidade assassinando estranhos a fim de manter a paz entre seus membros) é mais um caso do expediente tentador mais equivocado de tomar a função (genuína ou imputada) por explicação causal. É antes o próprio assassinato original que traz a comunidade à vida, colocando a demanda de solidariedade e a necessidade de cerrar fileiras. É a legitimidade das vítimas originais que clama pela solidariedade comunal e que tende a ser confirmada ano após ano nos rituais de sacrifício (BAU- MAN, 2001, p. 223-4).

A perspectiva da solidariedade nasce da comunidade como a principal ―promessa de um porto seguro‖ diante da ―falta de segurança‖ provocada pelas perspectivas incertas, pelos infortúnios da vida urbana e da ansiedade que a existência moderna provoca (BAUMAN,