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4.4 A necessidade de proteção da moralidade administrativa no ordenamento pátrio: a

4.4.1 A Ação Popular

A ação popular tem sua origem está ligada às “actios popularis” do direito romano, sendo considerada por muitos autores como o pilar de todas as ações coletivas modernas.423 Assim, tratava-se de ação que objetivava proteger direitos difusos e coletivos, ou seja, protegia os bens da comunidade indivisa,424 a res publica, compreendida como os bens públicos que pertenciam a todos os cidadãos. Qualquer um deles poderia movê-la para proteger tais bens da ação perdulária e nefanda de gestores públicos mal-intencionados, uma vez que os cidadãos eram tidos como coproprietários dos bens públicos, portanto deveriam zelar por eles e protegê- los.425

Este instrumento jurídico já existia no Brasil desde o período imperial, tendo vigorado pela maior parte da República – de forma mais exata, só não esteve presente na Constituição de 1937 – sendo que sempre esteve inserido dentre os direitos e garantias fundamentais, o que denota sua importância e papel de destaque no ordenamento jurídico pátrio.426 Nas palavras de Neves,

No Brasil, a doutrina entende que a ação popular vigorou no período imperial e início da República, durante a vigência das Ordenações do Reino, considerando-se a possibilidade de defesa de bens de uso comum pelo

423 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ações Constitucionais. 2. ed. São Paulo: Método, 2013. p. 170. 424 DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Dicionário brasileiro de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva,

2012. p. 22.

425 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. cit., p. 170.

426 BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Ação popular e moralidade administrativa:

aplicabilidade nas hipóteses da lei 8.429/92. Revista da ESMEC, SC, Florianópolis, n. 19, v. 13, p. 1-24, 2006. p. 8.

cidadão. Para alguns, estaria inclusive consagrada no art. 157 da Carta do Império de 1824. Com o advento do Código Civil de 1916, mais precisamente em razão de seu art. 76, a doutrina majoritária passou a entender que o sistema jurídico brasileiro não mais admitia a ação popular, ainda que vozes isoladas continuassem a defender a sobrevivência dessa ação coletiva. Em 1934 a ação popular é incluída expressamente na Constituição Federal, por meio do art. 113, § 38, para três anos depois ser suprimida pela Constituição de 1937, vindo a ser restabelecida pelo art. 141, § 38, da Constituição de 1946, mantendo-se em todas as Constituições subsequentes (art. 150, § 31, da CF de 1967; art. 153, § 31, da EC n. 1 de 1969 e na atual CF em seu art. 5º, LXXIII). 427

Com a promulgação da Lei 4.717 de 1965, a tutela coletiva de direitos fundamentais foi tratada pela primeira vez na legislação infraconstitucional, sendo utilizada para proteger o patrimônio público material. Sobre o assunto, obtempera Neves que

No campo infraconstitucional, a Lei 4.717 de 1965, que regulamenta a ação popular, teve o mérito de ser a primeira lei que indiscutivelmente trata de tutela coletiva no ordenamento brasileiro, sendo significativas as inovações propostas por tal lei, tais como a diferenciada forma de legitimação ativa, a possibilidade de réu virar autor, a coisa julgada secundum eventum

probationis, a obrigatoriedade de execução da sentença de procedência, dentre

outras significativas novidades procedimentais à época (...).

Registre-se apenas que, tanto no âmbito constitucional quanto em seu regramento infraconstitucional, as normas legais de ação popular limitavam a utilização dessa ação para a tutela do patrimônio público material, sendo tradicionalmente associada a atos ilegais e lesivos ao erário. Com a Lei 6.513/1977 e a atual redação da norma constitucional que cuida da ação popular, o objeto dessa ação foi significativamente ampliado, para incluir os bens imateriais que fazem parte do patrimônio público, tais como a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.428

De acordo com o texto da Constituição Federal de 1988, art. 5º, LXXIII, a ação popular é um direito inerente a todo e qualquer cidadão, que pode utilizar este instrumento jurídico para “anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”.429

Desta maneira, este instrumento jurídico se consubstancia em verdadeiro direito fundamental de cada cidadão, na medida em que “todos os direitos inscritos no rol dos direitos e garantias fundamentais são, sim, direitos fundamentais”.430 De maneira dúplice, ao mesmo

427 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. cit., p. 171 428 Ibid.

429 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro

de 1988.

tempo em que a ação popular é um direito do cidadão, é uma espécie de garantia fundamental que objetiva proteger o patrimônio público genericamente considerado, assim como outros direitos fundamentais, tal como a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico cultural.431

A ação popular possui a missão fundamental de proteger os cidadãos contra atos ou contratos administrativos ilegais ou abusivos em qualquer das esferas da Administração Pública, tutelando-se o direito da sociedade de ver as condutas lesivas e até mesmo as omissões que lesem ao patrimônio público devidamente punidas. É o instrumento democrático por excelência da sociedade contra os atos temerários que ocorrem dentro da Administração, na medida em que permite que qualquer cidadão ingresse com tal ação. Mais que isto, permite mesmo a fiscalização da gestão pública, através do acompanhamento das ações estatais, configurando-se como autêntico instrumento de defesa do direito de cada indivíduo à moralidade administrativa.432

Protege-se, por meio desta ação, o patrimônio público de maneira ampla, que se constitui, de acordo com o §1º da Lei 4.717/1965, dos “bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”.433 Protege-se, para além destes bens de caráter material, a moralidade administrativa, bem imaterial de toda sociedade, que possui o direito a um comportamento ético dos agentes públicos. Sobre isto, pontua Neves:

No caso da moralidade administrativa, a lesividade não diz respeito ao patrimônio público material, daí ser irrazoável exigir algum tipo de dano ao erário, para se admitir a ação popular. Ao prever o ato lesivo à moralidade administrativa, como bem imaterial pertencente ao patrimônio público, o legislador constituinte entendeu que a proteção exclusivamente da moralidade administrativa, que exige da Administração Pública a adoção de padrões éticos e fundados em boa-fé, já é o suficiente para se obter a tutela por meio de ação popular. Não que se dispense a lesividade nesse caso, ou que seja ela presumida, como já decidiu erroneamente o Superior Tribunal de Justiça. Simplesmente deve-se considerar a moralidade administrativa como bem imaterial do patrimônio público, e, por consequência, a mera prática de ato ou omissão contrária à moralidade administrativa, já gera a lesão exigida em lei.434

431 Ibid.

432 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 123-124. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8. ed.

São Paulo: revista dos Tribunais, 2004. p. 482

433 BRASIL. Lei 4.717, de 29 de Junho de 1965. Regula a Ação Popular. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4717.htm>. Acesso em: 12/12/2015.

Embora este instrumento jurídico esteja à disposição de todos os cidadãos, na realidade se trata de um mecanismo pouco utilizado no controle da corrupção no Brasil. Para ilustrar esta afirmação, foi realizada uma pesquisa entre 2013 e 2014, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cujo objetivo era medir o controle da corrupção por meio da Ação Popular. O resultado foi desanimador, pois ficou comprovado que tal ação foi utilizada, primordialmente, para anular atos que continham “vício de forma” e “ilegalidade do objeto”, praticamente inexistindo ação popular que objetivasse anular atos lesivos à moralidade administrativa.435

Na verdade, a ação popular precisa ser resgatada no direito brasileiro como verdadeiro direito fundamental de cada cidadão. Não deve ser encarada apenas como um instrumento jurídico de combate à corrupção, mas como um verdadeiro instrumento social de mudança, pois permite que cada pessoa possa recorrer ao Poder Judiciário para prevenir ou conter ofensas à moralidade administrativa. Ao mesmo tempo, por meio dela se estimula uma atuação proativa do cidadão em prol da efetivação de uma Administração moralizada.