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Um dos aspectos essenciais da análise da corrupção são os seus aspectos normativos.69 Cabe ao Direito prever o conteúdo das normas que disciplinam a moralidade política, como defende Filgueiras. Para o autor, a corrupção pressupõe um marco normativo, o que significa que o seu conceito nasce do conjunto de regras que regulam as práticas sociais. Na sua realização, sempre existirá um agente público genericamente considerado, sujeito a um conjunto de deveres jurídicos institucionais, que não se referem apenas a um órgão ou entidade da Administração, mas ao próprio interesse social. O agente, ao transgredir estes deveres, auferirá algum tipo de benefício por meio de seu cargo público. Assim, a corrupção pode ser

67 CARRARO, André; FOCHEZATTO, Adelar; HILLBRECHT, Ronald Otto. O impacto da corrupção sobre o crescimento econômico do Brasil: aplicação de um modelo de equilíbrio geral para o período 1994-1998.

Disponível em: <http://www.anpec.org.br/encontro2006/artigos/A06A057.pdf>. Acesso em: 22/04/2014.

68 NUNES, Antonio Carlos Ozório. Op. cit., p. 19.

definida como uma espécie de comportamento que se desvia dos padrões normativamente impostos pelo Estado aos agentes públicos, que ocorre quando o agente deixa de praticar seus deveres normais com o objetivo de obter algum ganho patrimonial indevido ou uma mudança de status social. Alguns exemplos de corrupção podem ser dados neste sentido: o suborno é uma espécie de corrupção em que uma recompensa, oferecida ou mesmo requerida pelo corruptor, é dada para alterar o julgamento de uma pessoa que está em posição de confiança; o nepotismo é um tipo de corrupção em que um agente público emprega indivíduos para trabalhar na Administração por meio de critérios familiares ou pessoais, e não de mérito; dentre outros.70

Sob a perspectiva jurídica, a corrupção é conceituada como um fenômeno que envolve a transgressão a uma série de regras, princípios e valores éticos que regem o Estado e a Administração Pública. Sobre isto, Bobbio afirma que “assim se designa o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa”.71 Assim, a corrupção envolve uma enorme quantidade de atos, tal como a trapaça, o peculato, o nepotismo, a fraude, a falsificação, o suborno, etc.72

No mesmo sentido, Gardiner entende que é preciso conceituar a corrupção a partir das leis e atos oficiais das nações, pois ela afeta fundamentalmente o patrimônio público, que é regulamentado por uma série de normas previstas no Estado Democrático de Direito. A melhor compreensão da corrupção está vinculada ao conhecimento das normas repressivas no ordenamento jurídico, até porque só existe este ilícito se ele estiver previsto em alguma norma jurídica.73

70 FILGUEIRAS, Fernando. Corrupção, democracia e legitimidade. Op. cit., p. 21. Cf. VALDÉS, Ernesto

Garzón. Acerca del concepto de “corrupción”. Revista Claves de la Razón Práctica. Madri, ES, n. 56, oct. 1995. p. 2. NYE, J. S. Corruption and Politicial Development: A Cost Benefit Analysis. In: HEIDENHEIMER, Arnold; JOHNSTON, Michael. Political Corruption: concepts and contexts. 3.ed. New Jersey: Transaction Publishers, 2002. p. 284.

71 BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política – Volume 1. 11.

ed. Tradução: VARRIALE, C. et al. Brasília: UNB, 1998. p. 290.

72 BREI, Zani Andrade. Corrupção: dificuldades para definição e para um consenso. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, RJ, n. 30, v. 1, p. 64-77, jan./fev. de 1996. p. 65.

73 Além da conceituação da corrupção a partir dos ordenamentos jurídicos, há outras formas de se conceituar a

corrupção sob o prisma das ciências sociais. Sob o prisma do interesse público, todo ato realizado por agente público contrário a finalidade pública deveria ser conceituado como corrupção, e isto engloba às decisões políticas dissociadas da busca pela finalidade pública, pelo bem comum. A corrupção sob o enfoque da opinião pública é conceituada a partir das atitudes e concepções expressas pela opinião pública, o que significa dizer que seu conceito dependerá diretamente da moral social vigente em dado Estado. HEIDENHEIMER, Arnold; JOHNSTON, Michael (Orgs.). Political Corruption: concepts and contexts. 3 ed. New Jersey: Transaction Publishers, 2002. p. 7-8. LEFF, Nathanel H. Economic Development Through Bureaucratic Corruption. In HEIDENHEIMER, Arnold; JOHNSTON, Michael (Orgs.). Op. cit., p. 307. BREI, Zani Andrade. Op. cit.. p. 65. GARDINER, John. “Defining corruption”. In: HEIDENHEIMER, Arnold; JOHNSTON, Michael (Orgs.). Op. cit., p. 25. FILGUEIRAS, Fernando. Corrupção, democracia e legitimidade. Op. cit., p. 21.

Seguindo esta linha de pensamento, Cuenca preleciona que a corrupção pública pode ser reconhecida a partir de três elementos:

Un elemento subjetivo o interno, que afecta directamente la formación de la voluntad de la administración y que está constituido por la motivación del sujeto a realizar el acto corrupto. Implica a intención de vulnerar el interés público, pues prevalecen intereses particulares sobre la objetividad de la administración.

Un elemento adjetivo, según el cual es necesaria la intervención de un funcionario público que abuse de su cargo, bien sea profiriendo un acto administrativo ilegal, omitiendo proferirlo o realizando cualquier otra actuación administrativa. De este modo, la corrupción debe constituir una actividad ilícita, pues para que exista un acto de corrupción debe haber un sistema normativo que le sirva de referenca, aunque no siempre entrañe una antijuridicidad penal.

Un aspecto material, según el cual los actos de corrupción están siempre vinculados a la expectativa de obtener beneficios de un beneficio indebido (directo o indirecto), sin que sea necesario que constituyan una ganacia de caráter económico, pues puede ser políticos, profissionales o sexuales.74

Através da análise geral das leis e regulamentações que regem os Estados, percebe-se que a corrupção será todo exercício impróprio e egoísta dos poderes decorrentes dos cargos públicos em desacordo com as normas jurídicas previstas no sistema.75 É importante destacar que, sob este prisma, ela não é um fenômeno protagonizado somente por funcionários públicos. Trata-se de um “empreendimento complexo”, que é constituído de empresários, políticos e agentes públicos, que se utilizam da máquina governativa para suprir os interesses de um grupo restrito.76

Sob outro ponto de vista, Martín compreende que a dimensão central do fenômeno, sob o prisma normativo, repousa na “captura do Estado”. A corrupção administrativa envolve o suborno que ocorre entre funcionários públicos e empresas (em prol das melhores condições negociais e vantagens econômicas), pressupondo a transgressão das normas, leis e regulamentos do Estado. A “captura do Estado” se configura quando os grupos poderosos utilizam sua

74 CUENCA, Carlos Guilhermo Castro. Op. cit., p. 31.

75 MYRDAL, Gunnar. Corruption as a Hidrance to modernization in South Asia. In: HEIDENHEIMER, Arnold;

JOHNSTON, Michael. Op. cit., p. 265.

76 Como bem destaca Cuenca, “la corrupción en la administración pública há dejado de ser un fenómeno

protagonizado únicamente por los funcionarios públicos, para convertirse en una compleja empresa constituida por algunos empresarios y políticos, en la cual, como en todo contrato de sociedades, los "socios capitalistas" financian las campañas políticas para recoger los dividendos representados en sobrecostos de los contratos públicos, que los funcionarios, como "socios industriales", entregan a través de concesiones, subcontrataciones, revisiones de precios o adjudicaciones, a través de actuaciones administrativas con aparencia de total legalidad.”.

influência na “formulação das regras básicas do jogo”, ou seja, na construção das leis, decretos, resoluções, regramentos e até da própria Constituição, com o objetivo de atingir seus próprios interesses em detrimento do bem comum. Diferencia-se esta modalidade do lobby, atividade que em si mesma é amplamente aceita em grande parte dos países. Nos países em que a atividade está regulamentada, ela terá legitimidade sempre que for realizada de maneira transparente e quando todas as partes que forem afetadas pela norma resultante neste “processo de influência” que se desenrola no Poder Legislativo puderem participar da sua produção (tanto a sociedade como grupos sociais específicos). Nas palavras do autor, “las personas naturales,

así como las empresas, en tanto personas jurídicas, tienen el derecho de promover y defender sus intereses, incluso en el proceso legislativo”.77

O fenômeno da captura do Estado só se configura quando os grupos econômicos utilizam dos mais variados meios de influência ilicitamente, para atingir suas próprias finalidades em detrimento da coletividade.78 Para melhor intelecção da noção, confira-se o exemplo que segue:

Por ejemplo, las empresas que se beneficiaron en Estados Unidos con el rescate financeiro y que recibieron miles de millones de dólares de transferencias (AIG, Citigroup, JPMorgan Chase, Merril Lynch, Bank of America, Goldman Sachs, entre otras) con recursos del fisco - es decir, con dinero de los contribuyentes - ocupan los primeros lugares en el ranking de empresas que más gastan en actividades de cabildeo. De hecho, parece existir una correlación positiva entre la magnitud gastada y los montos de las transferencias recebidas. Las empresas y, en particular, las entidades financieras invierten mucho dinero en tratar de influir en los congresistas con el fin de que sus decisiones favorezcan sus intereses. Sin enbargo, en otros países, deben reportar estos gastos y publicar las cifras.79

Os indivíduos corruptos ferem uma série de normas jurídicas, sobretudo as normas de solidariedade social que são a base do desenvolvimento humano. Trata-se de uma grave ofensa ao Estado, pois impede que uma coletividade inteira goze com qualidade dos serviços públicos essenciais ao desenvolvimento social. A corrupção já nasce violadora de uma série de direitos fundamentais inerentes a todos, como o direito à vida, a subsistência digna, à administração pública proba e eficiente, e, além de tudo, fere os objetivos primordiais dos Estados. Nossa

77 MARTÍN, José Távara. Economia de la corrupción. In GARCÍA, Henry Pease; TORRIANI, Giofianni (Ed.). La lucha anticorrupción como política del Estado: V Seminario de Reforma del Estado. Peru: Pontificia

Universidad Católica del Perú, 2012. p. 79.

78 Ibid., p. 81. 79 Ibid., p. 80.

Constituição Federal prevê em seu texto, por exemplo, que são objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), mas estes são feridos frontalmente diante dos atos de corrupção.

Ainda sobre os aspectos gerais da corrupção, é importante destacar que sob o viés jurídico a corrupção pode ocorrer em dois âmbitos distintos: ao nível da microcorrupção e da macrocorrupção.

No primeiro tipo, a corrupção pode ser identificada através da prática de atos de pequena complexidade, ou seja, aqueles que são descobertos com mais facilidade, por meio de perícias contábeis e inquéritos administrativos. Aqui entram os casos de corrupção que envolvem a utilização indevida do patrimônio público, como a utilização de veículos oficiais, má conservação dos bens públicos, peculato, recebimento de propinas, etc. Nas palavras de Sarmento: “essas condutas quase sempre estão previstas em ‘tipos’ legais passíveis de sanções cíveis, penais e administrativas. Nada que o direito interno não possa resolver”.80

Nunes também reconhece a existência da microcorrupção, mas a chama de petty

corruption, em referência à doutrina francesa. Em suas palavras, trata-se daquele tipo de

corrupção que envolve “rotinas burocráticas, com funcionários de escalões mais baixos, como, por exemplo, o pagamento de propina a um guarda de trânsito na esquina ou para obter uma licença”.81

Por outro lado, a ideia de macrocorrupção remete a um tipo de corrupção de maior abrangência, que envolve o desvio de somas bastante altas: a criminalidade financeira. Esta espécie de corrupção se desenvolve a partir de sistemas de governos, de empresas transnacionais e de organizações mafiosas que, de forma organizada, realizam uma verdadeira pilhagem do patrimônio público.82

Da mesma maneira, Nunes reconhece a macrocorrupção, chamando-a de grand

corruption, que seria, justamente, “aquela ligada a grandes desvios financeiros dos cofres

públicos”, que envolve “milionários contratos com o poder público, grandes concessões de serviços públicos e privatizações de empresas públicas e se dá com a colusão entre grandes empresas ou empresários e políticos ou funcionários do alto escalão de um país”.83

80 SARMENTO, George. Op. cit., p. 34.

81 NUNES, Antonio Carlos Ozório. Op. cit., p. 18. 82 SARMENTO, George. Op. cit., p. 35.

Frise-se que dentro da macrocorrupção ingressam os crimes financeiros, que causam enormes prejuízos ao Estado e à sociedade. Para se ter uma ideia, a corrupção do “colarinho branco” foi responsável pelo “estouro financeiro” de 2008, crise vivenciada por alguns países capitalistas. Neste sentido, há uma pesquisa organizada pela London School of Economics que afirma que a evasão fiscal nos países desenvolvidos é 25 vezes maior do que o total de fluxos ilícitos decorrentes da microcorrupção que abandonam os países em desenvolvimento todos os anos. E, realmente, a macrocorrupção possui um impacto muito maior em termos sistêmicos e estruturais do que a microcorrupção. Observe-se que, apenas em 2013, cerca de um trilhão de dólares fugiram dos países em desenvolvimento por meio de práticas conhecidas da criminalidade financeira, como o “refaturamento” ou o “preço de transferência”.84 De igual maneira compreende Sarmento, para quem:

Estima-se que a criminalidade financeira movimente, em escala mundial, cerca de um trilhão de dólares anuais. Desse total, são lavados pelas instituições bancárias e intermediários (advogados, contadores, leiloeiros e consultores) cerca de 350 bilhões de dólares por dia. 100 bilhões de dólares provêm diretamente de atos de improbidade administrativa.85

Trata-se, sem dúvida, de um dos maiores problemas do Estado na contemporaneidade. Esta forma de criminalidade é mais difícil de ser combatida, pois envolve uma complexa rede de agentes e grupos econômicos que se utilizam dos órgãos administrativos para auferir benefícios. As ações destes grupos são feitas à sorrelfa, longe dos olhos daqueles que poderiam impedir tais ações. Além disto, neste tipo de criminalidade é prática corriqueira a transferência de valores para paraísos fiscais, o que dificulta ainda mais sua repressão.

84 A primeira é uma prática em que empresas falsificam documentos para fazer com que seus lucros apareçam nos

paraísos fiscais sem que seja necessário pagar o imposto devido, a segunda é uma prática em que as transnacionais comercializam seus produtos nas suas subsidiárias nos países em que estão instaladas, com o objetivo de pagar o imposto onde ele é cobrado mais barato. Este tipo de prática envolve o desvio de cerca de um trilhão de dólares anuais. JUSTO, Marcelo. Sonegação dos países ricos é 25 vezes maior que a corrupção nos países pobres. Brasil

de Fato (Jornal), de 06 a 12 de março de 2014, p. 14. 85 SARMENTO, George. Op. cit., p. 35.