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4.4 A necessidade de proteção da moralidade administrativa no ordenamento pátrio: a

4.4.3 A Lei Anticorrupção Empresarial

Outro instrumento normativo de extrema relevância, relativamente recente, é a Lei Anticorrupção empresarial. Nascida a partir do Projeto de Lei nº 6.826/2010, transformando-se posteriormente na Lei nº 12.846/2013, este dispositivo nasceu com o objetivo de suprir a ausência de regulamentação de compromissos assumidos pelo Brasil nas três convenções de combate à corrupção o qual é signatário: a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção; a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais; e a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (Cf. capítulo seguinte). Desta maneira, este instrumento jurídico possui como objetivo central responsabilizar nas esferas administrativa e civil as pessoas jurídicas pelo ato de corrupção em desfavor da Administração Pública nacional ou estrangeira, como prescreve o art. 1º da referida lei.

463 ALENCAR, Carlo Higino Ribeiro de; GICO JR., Ivo. Corrupção e judiciário: (in)eficácia do sistema judicial

Além de tutelar a proteção jurídica da moralidade administrativa, bem imaterial da sociedade e direito fundamental de cada cidadão, a Lei Anticorrupção objetiva, precipuamente, proteger o patrimônio público nacional ou estrangeiro contra ações de pessoas jurídicas. Nas palavras de Oliveira e Neves, “trata-se de uma inovação legislativa importante, pois permite que não apenas os sócios, os diretores e funcionários da empresa, mas, também, a própria pessoa jurídica seja submetida a um processo de responsabilização civil e administrativa por atos de corrupção”.464

Esta Lei prevê, de forma exaustiva, um rol de atos lesivos à administração pública em âmbito internacional e estrangeiro, e uma série de sanções, bem como a forma de responsabilização na esfera administrativa e seu processo, dentre outras inovações, inaugurando um verdadeiro microssistema processual próprio do julgamento das pessoas jurídicas. Veja-se, neste sentido, o que preleciona o seu artigo 5º:

Art. 5o Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

464 OLIVEIRA, Rafael Rezende; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. O sistema brasileiro de combate à

corrupção e a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). RBDP – Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, MG, ano 12, n. 44, p. 9-21, jan./mar. 2014. p. 9-10.

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.465

De acordo com a própria Lei, as pessoas jurídicas serão responsabilizados por atos contra a Administração Pública independentemente da “responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito” (art. 3º). Para isto, é prevista a responsabilidade objetiva para as pessoas jurídicas que se relacionam com a Administração Pública. Desta maneira, como expõem Petrelluzzi e Rizek Junior,

Prevista a responsabilidade objetiva, há que se perquirir, apenas, nexo causal entre a conduta e o dano, sem que se precise buscar a presença de qualquer elemento de ordem subjetiva para caracterizar a responsabilização. Não será mais possível, para o sancionamento de pessoa jurídica, que se exija vínculo de ordem subjetiva com a pessoa natural que tenha praticado o ato ilícito favorecendo os interesses de pessoa jurídica.466

A questão da responsabilidade objetiva é observada com ressalva por uma parte da doutrina, como é o caso de Justen Filho, que considera que na prática ela será mitigada em face da existência de indivíduos que atuam em nome das pessoas jurídicas. Em suas palavras: “somente se consuma uma das infrações previstas na Lei 12.846 quando a conduta da pessoa física for eivada de um elemento subjetivo reprovável. Esse elemento será necessariamente o dolo”.467 Outros autores podem ser citados neste mesmo sentido. Um deles é Nascimento, para quem “a dimensão da responsabilidade deverá ser compreendida de forma mitigada, diante das variáveis de uma ‘corrupção objetiva’ que recairão sobre as pessoas jurídicas”.468

465 BRASIL, Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de

pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 21/12/2015.

466 PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção: origens, comentários

e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 53.

467 JUSTEN FILHO, Marçal. A “nova” Lei Anticorrupção Brasileira (Lei Federal 12.846). Disponível em:

<http://www.justen.com.br//informativo.php?&informativo=82&artigo=1110&l=pt>. Acesso em: 12/12/2015.

468 NASCIMENTO, Melillo Dinis do. O controle da Corrupção no Brasil e a Lei nº 12.846/2013 – Lei

Anticorrupção. In NASCIMENTO, Melillo Dinis do (Org.). Lei Anticorrupção empresarial: aspectos críticos à Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 113.

Mesmo diante da controvérsia em torno do tema, o fato é que a partir da responsabilidade objetiva o legislador pátrio deu um grande passo na repressão dos atos de corrupção praticados pelas pessoas jurídicas. Se antes a previsão de punição estava restrita à Lei de Improbidade, mas mesmo assim de forma muito perfunctória, este diploma veio complementar o quadro geral de responsabilidades por ato de corrupção realizado na Administração Pública. Neste sentido, leia-se mais uma vez Petrelluzzi e Rizek Junior:

Importante salientar, também, que a adoção da responsabilização administrativa das pessoas jurídicas atende, como vimos, a Convenção firmada no seio da OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Segundo dita Convenção, na hipótese de sancionamento penal da pessoa jurídica, cada signatário deve assegurar que ela esteja sujeita a sanções, mesmo de natureza não penal, mas que sejam efetivas, proporcionais e dissuasivas, contra a corrupção do funcionário público estrangeiro.469

Este instrumento normativo se configura como verdadeiro instrumento de combate à corrupção na esfera privada, uma vez que passa a coibir as ações corruptas, a título exemplificativo, de sociedades empresárias,470 sociedades simples,471 fundações criadas pelo poder Público com personalidade jurídica de direito privado,472 bem como as fundações instituídas por pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, as associações ou entidades de pessoas,473 organizações sociais,474 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público

469 PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Op. cit., p. 54.

470 “As sociedades empresárias podem ser definidas como pessoas jurídicas de direito privado que atuam no âmbito

de seu objeto social, visando à exploração da atividade empresarial”. Ibid., p. 55.

471 “As sociedades simples, comuns e limitadas, são as demais sociedades de direito privado e, mesmo que não

personificadas (art. 986 do Código Civil Brasileiro), ou seja, mesmo que ainda não tenha efetivado a inscrição de seus atos constitutivos, estão inteiramente sujeitas às disposições da Lei nº 12.846/2013”. Ibid., p. 55-56.

472 Neste caso, somente a natureza jurídica pública e a regência por direito público poderiam excluir as fundações

do polo ativo deste tipo de ação. Ibid., p. 56.

473 Nos termos do Código Civil, art. 53: ”Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem

para fins não econômicos”. BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 12/12/2015.

474 Nos termos da Lei nº 9.637/1998, art. 1º: “O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais

pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei”. BRASIL, Lei 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9637.htm>. Acesso em: 12/12/2015.

(OSCIPs),475 Organizações Não Governamentais (ONGs),476 além das demais pessoas jurídicas de direito privado.

De acordo com o art. 6º, I, as sanções administrativas envolvem uma multa e a publicação extraordinária da sentença. No caso da primeira, pode variar entre 0,1% a 20% do faturamento bruto de cada pessoa jurídica referente ao ano em que foi instaurado o processo administrativo. Mas no referido dispositivo se anteviu a possibilidade de uma lesão superior ao faturamento bruto total, na medida em que se autorizou que a multa não poderia ser menor que a vantagem auferida pela pessoa jurídica.

Além disto, as pessoas jurídicas precisarão devolver todos os valores desviados. A referida lei previu, ainda, que no caso de não ser possível a identificação do critério do faturamento, o valor da multa deveria ser fixado entre R$ 6.000,00 e R$ 60.000.000.00 (art. 6º, § 4º).

Já a publicação extraordinária da decisão condenatória, prevista no art. 6º, § 7º, será realizada na forma de extrato de sentença e as despesas da publicação correrão por conta da pessoa jurídica. A sentença deverá ser veiculada nos meios de comunicação de grande circulação do local em que a pessoa jurídica desenvolve suas atividades ou mesmo em jornal nacional, de modo que todos saibam do ilícito cometido. Trata-se, de fato, de uma sanção que mexe com o bom nome da empresa, com sua reputação e avaliação no mercado. Por isto, pode ser considerada uma medida bastante eficaz para dar publicidade e transparência ao controle da corrupção no Brasil, na medida em que toda a sociedade vai reconhecer na pessoa jurídica a prática de uma série de atos de corrupção.

Mas a referida lei ainda prevê um sistema de dosimetria, baseado em uma série de elementos (art. 7º, I a X), além da forma de instauração e julgamento do processo administrativo que apurará a responsabilidade da pessoa jurídica (art. 8º em diante). Desta forma, este instrumento jurídico assume a missão primordial de estimular as empresas a prevenir a

475 “As OSCIPs são associações de caráter civil, organizadas nos termos do que dispõe a Lei nº 9.790/99, que se

dediquem a variadas atividades de interesse público, dentre elas as de promoção da assistência social, da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico, da educação, da saúde, do meio ambiente, do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza, da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia, e de outros valores universais”. PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Op. cit., p. 57.

476 “ONG é uma designação, um acrônimo, usado para qualquer associação civil que não tenha finalidade lucrativa

e que atue no terceiro setor da sociedade civil. Como as demais pessoas jurídicas de direito privado, as ONGs poderão ser sujeitos ativos dos atos lesivos à Administração Pública”. Ibid., p. 58.

corrupção, desenvolvendo-se um sistema de compliance477 para minorar as sanções, como previsto no art. 7º, VIII, que prevê que “a existência de sistemas de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades”, além da “aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta”, deverão ser levadas em consideração para a aplicação das sanções.

Como bem ensina Gabardo e Castella, o sistema de compliance não é uma criação da referida lei. Trata-se de um sistema que já era utilizado pelas próprias pessoas jurídicas para controlar, proteger e prevenir ações criminosas em empresas. Nas lições dos autores, trata-se de “instrumento valioso de transferência de responsabilidade, evitando-se ou amenizando-se, assim, a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica”.478

Outro importante instrumento trazido pela Lei Anticorrupção foi a possibilidade do acordo de leniência para as pessoas jurídicas que efetivamente colaborarem com as investigações de corrupção, o que pode levar à diminuição da pena (art. 16 da Lei 12.846/2013). Este instrumento tem permitido uma série de avanços nas investigações que envolvem escândalos de macrocorrupção. Apenas a título exemplificativo, cite-se a operação Lava Jato: trata-se da maior operação já montada para investigar um esquema de corrupção. Envolve o desvio de R$ 6,4 bilhões de reais da Petrobrás. Deste total, R$ 2,9 bilhões já foram recuperados através de acordo de leniência,479 o que supera em cinquenta vezes os valores recuperados em ações judiciais nos últimos 10 anos.480

Para tornar a legislação correlata compatível com este novo momento no combate à corrupção no Brasil, a Medida Provisória (MP) nº 703/2015 revogou de maneira expressa o art. 17, §1º da Lei 8.429/92, que previa a impossibilidade de realização de transação, acordo ou

477 De acordo com Saavedre, “o conceito de compliance surgiu na década de noventa, mas, apenas nos últimos

anos, ele passou a ser objeto de estudos jurídicos. O instituto passou a ter relevância jurídico-penal, principalmente, com a entrada em vigor da Lei 9.613, de 03.03.1998, e da Resolução n. 2.554, de 24.09.1998, do Conselho Monetário Nacional. Desde então, as instituições financeiras e as empresas de capital aberto passaram a ter o dever de, respectivamente, colaborar com as investigações de lavagem de dinheiro (os chamados “deveres de compliance”) e de criar sistemas de controles internos que previnam as práticas de corrupção, de lavagem de dinheiro e de outras condutas que possam colocar em risco a integridade do sistema financeiro”. SAAVEDRE, Giovani A. Reflexões iniciais sobre criminal compliance. In Boletim IBCCRIM. São Paulo, SP, ano 18, n. 218, p. 11-12, jan., 2011, p. 1. Disponível em:

<http://xa.yimg.com/kq/groups/17983762/1696253331/name/Reflex%C3%B5es+iniciais+sobre+criminal+comp liance.pdf>. Acesso em 12/01/2016.

478 GABARDO, Emerson; CASTELLA, Gabriel Morettini. A nova lei anticorrupção e a importância do

compliance para as empresas que se relacionam com a Administração Pública. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte, MG, ano 15, n. 60, p. 129-147, abr./jun. 2015. p. 135. 479 MPF. Resultados da Operação Lava Jato. Disponível em: <http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-

instancia/resultados/a-lava-jato-em-numeros-1>. Acesso em: 12/12/2015.

480 CARVALHO, Mario Cesar. Acordos da Operação Lava Jato já recuperaram R$ 1,8 bi desviado. Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/08/1672192-acordos-da-operacao-lava-jato-

conciliação nas ações de improbidade. A referida MP alterou também a própria Lei Anticorrupção, permitindo à União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a realização de acordos de leniência, de forma isolada ou em parceria com o Ministério Público e a Advocacia Pública.481

Trata-se, sem dúvida, de um avanço incontestável no aprimoramento do sistema jurídico de combate à corrupção e recuperação dos valores desviados, o que foi possível graças ao texto da Lei Anticorrupção, que permite uma série de avanços no sistema punitivo brasileiro. Além disto, a ação do Ministério Público Federal, da Polícia Federal, a cooperação internacional para recuperação de ilícitos por meio de organizações como a Interpol (Cf. capítulo seguinte) tem servido de suporte para que este diploma normativo tenha ampla efetividade. Com isto, diminui- se a impunidade e o sentimento de injustiça social decorrente dos casos de corrupção noticiados diariamente.

Desta forma, a Lei 12.846/2013 tem se mostrado como um dos instrumentos jurídicos protetivos da moralidade mais efetivos, na medida em que tem ampliado a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas. Portanto, trata-se de instrumento imprescindível à proteção da moralidade administrativa no ordenamento jurídico brasileiro.