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A proteção da moralidade administrativa no direito brasileiro antes da Constituição

3.1 O senso comum sobre a corrupção no Brasil: alguns levantamentos históricos

3.1.2 A corrupção como herança do mundo ibérico

3.1.2.1 A proteção da moralidade administrativa no direito brasileiro antes da Constituição

Durante o processo evolutivo do Estado brasileiro, o controle da moralidade administrativa e o consequente combate à corrupção não foram privilegiados. Não se vê, nas Constituições anteriores à Constituição de 1988, o princípio da moralidade administrativa, tampouco uma clara preocupação com a boa gestão pública e com a eficiência administrativa. Inobstante, em 1934 passou-se a utilizar a ação popular como instrumento de controle da corrupção, tendo a Constituição de 1937 silenciado a respeito, enquanto as Constituições que se seguiram a partir de 1946 passaram a prever a ação popular.141

Neste sentido, como bem acentua Sarmento, a Constituição de 1946 previu no § 31 do art. 141 que “a Lei disporá sobre o sequestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica”. Este vazio normativo permaneceu até 1957, com a edição da Lei Pitombo-Godói Ilha.142

O processo legislativo que culminou com a aprovação desta lei foi bastante longo. Em 1951, o alagoano Ari Pitombo apresentou um projeto de lei para regulamentar o dispositivo, iniciativa totalmente inovadora em termos de combate à improbidade administrativa. No projeto, previa-se a disciplina da ação civil em face de servidores que cometessem abusos no cargo público, incluindo-se a medida cautelar de sequestro, perda dos bens obtidos ilicitamente e declaração de bens periodicamente. O relator do projeto foi o deputado gaúcho Godoi Ilha, que deu um passo relevante na luta contra a improbidade ao defender a perda dos bens auferidos ilicitamente pelo agente mesmo em caso de extinção da ação ou absolvição. Além disto, o deputado incluiu a obrigatoriedade da prestação de contas periódica relativa aos bens e vencimentos dos agentes públicos, o que representou um notável avanço para a legislação da

141 FIGUEIREDO, Marcelo. A “corrupção” e a improbidade – Uma reflexão. Op. cit., p. 256. 142 SARMENTO, George. Op. cit., p. 55 et seq.

Nova República. E em 1957 foi aprovada a Lei Pitombo-Godói Ilha, que inseriu uma série de institutos para combater o combate à improbidade administrativa no país.143

Para complementar este dispositivo normativo, foi sancionada a Lei nº 3.052/1958, a Lei Bilac Pinto, que buscava incrementar o combate à improbidade administrativa que gerava o enriquecimento ilícito dos agentes públicos, tipificando uma série de matérias para a ampliação do combate à corrupção.144

Mas tanto a Lei Pitombo-Godói Ilha quanto a Lei Bilac Pinto não tiveram efetividade na prevenção e repressão aos atos de corrupção, até porque, como bem destaca Sarmento, não houve sequer vontade política de aplicá-las. Deve-se levar em consideração, por exemplo, o fato que estas leis foram editadas na iminência da ditadura militar, o que definitivamente foi um desestímulo a aplicabilidade das mesmas, dado o fato que neste período várias práticas de corrupção se intensificaram. Assim, “durante o período em que estiveram em vigor, não se tem conhecimento de punições exemplares impostas aos agentes públicos ímprobos”, e, nem mesmo com a edição da Lei da Ação Popular – Lei nº 4.717/65 – houve uma mínima mudança de paradigma, haja vista que o regime militar reprimiu toda e qualquer tentativa de mudança da estrutura social.145

Assim, a questão da efetividade das leis e normas anticorrupção no Brasil, bem como das regras de conduta na Administração, notadamente antes da edição da Constituição Federal de 1988 (CF/88), é emblemática. As leis que existiam não eram de fato aplicadas, e as constituições anteriores quase não se preocuparam com o tema. Somente a partir da década de 1990 se inaugura um novo paradigma para a Administração Pública.

Mas o fato é que a CF/88 constituiu um verdadeiro marco na luta contra a corrupção institucionalizada no país. Direitos que outrora não estavam positivados no texto constitucional

143 Citem-se alguns institutos que alteraram a forma de combate à improbidade: “1. medida cautelar de sequestro

de bens do agente público acusado de enriquecimento ilícito; 2. reversão à fazenda pública dos bens adquiridos por influência ou abuso de cargo público; 3. competência do juízo cível para a apreciação da ação civil pública; 4. independência das esferas cível e criminal em matéria de improbidade administrativa; 5. criação do registro público obrigatório de valores e bens pertencentes ao patrimônio privado dos servidores da União, Estados e Municípios; 6. obrigatoriedade da atualização bienal dos bens dos agentes públicos e respectivos cônjuges, sob pena de demissão na hipótese de falsidade das informações; 7. legitimação do Ministério Público para a propositura da ação civil de ressarcimento ao erário”. Ibid.

144 Foram introduzidos os seguintes institutos: “1. Tipificação dos atos de enriquecimento ilícito, através da

descrição das transgressões mais comuns no serviço público; 2. Ampliação do conceito de servidor público; 3. Equiparação de enriquecimento ilícito aos crimes contra a administração e o patrimônio público; 4. Especificação do procedimento cautelar de sequestro dos bens do agente público acusado de enriquecimento ilícito; 5. Inclusão do ressarcimento ao erário e indenização por perdas e danos como sanções aplicáveis às hipóteses de enriquecimento ilícito”. Ibid., p. 57 et seq.

passam a ter caráter de fundamentalidade e a embasar todo o sistema jurídico, como é o caso da probidade administrativa e da eficiência.

A CF/88 buscou, desde o seu nascimento, modificar as relações de poder imperantes no Brasil até o final do Século XX, abraçando de uma vez por todas o ideal da moralidade administrativa como valor central do ordenamento e política de Estado, eis que inúmeros instrumentos jurídicos foram inseridos em seu texto para dar efetividade à luta contra a corrupção. Além disto, a Constituição incentivou a defesa coletiva dos direitos, deu maiores poderes ao Ministério Público, que passou a atuar de forma visivelmente mais intensa nas décadas seguintes. Foi aperfeiçoado o sistema principiológico constitucional, sendo elencado um conjunto de princípios regentes de toda Administração Pública, bem como dos cidadãos e empresários que estivessem envolvidos nos atos de improbidade. Em resumo, buscou-se “dinamizar e apoiar a cidadania”, o que de fato fez toda diferença para mudar a antiga forma com que a Administração Pública era vista pela sociedade.146

A conjuntura até aqui analisada demonstra que o direito fundamental à moralidade administrativa é fruto de uma necessidade histórica experimentada no Brasil e no mundo. Mas a consolidação da ordem normativa, que será o seu suporte, só vai ocorrer de fato com a crise do Welfare State. Como se verá a seguir, é a partir deste momento que o direito aqui defendido começa a ganhar contornos mais definidos em âmbito nacional e internacional, dando fundamento a edição de uma série de instrumentos normativos.