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A ética é necessária: eis o calcanhar de Aquiles para os antinomistas

4- Capítulo 3: O problema da ética no interior da relação Individuo singular/

4.2 A ética é necessária: eis o calcanhar de Aquiles para os antinomistas

Em Temor e Tremor a ética se identifica com o geral. O esforço de Johannes de Silentio consiste, entre outros pontos, em mostrar de que modo o Indivíduo singular é paradoxalmente superior ao geral. Esta superioridade tem o seu lastro na fé, tal como o caso de Abraão procurou destacar. Então, aparentemente Johannes estaria sugerindo uma descontinuidade radical entre fé e ética.

Ou seja, a moralidade é imanente, haja vista que se volta para o geral, ao passo que o Indivíduo singular se volta de maneira transcendente para o Absoluto. Enquanto a ética abarca e pode legitimar ou não um dever para com Deus - porque a própria ética, do ponto de vista da generalidade social constitui o divino -, do ponto de vista da fé, um dever para com Deus pode extrapolar os deveres para com o todo social, sem lhes dar maiores satisfações, e pode inclusive estar na contramão dos imperativos da universalidade moral.

Esta suposta descontinuidade radical entre ética e fé constitui um solo fértil para as mais diversas variações de leituras antinomistas, desde as mais brandas até as mais radicais. Se o estádio religioso da existência pode suspender o télos da ética, então o télos suspenso, uma vez superado, se tornaria obsoleto e, portanto, prescindível. O grau de prescindibilidade da ética

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chegaria a tal ponto que, segundo determinadas interpretações, seria possível mesmo melhorar e evoluir o salto entre os estádios da existência, como se o estádio estético e o religioso não fossem, ao fim e ao cabo, muito distintos tal como pressupôs, por exemplo, Jean Wahl.210

Seria possível lançar mão de um hiper salto que vai, como que “viajando” através de uma ponte aérea, da estética até diretamente atingir o estádio religioso da existência211. Desse modo, segundo se supõe, seria possível adotar uma variação mais radical da interpretação antinomista, pois não apenas se superaria a ética, mas seria permitido mesmo descartá-la completamente. Por outras palavras, no processo de se tornar Indivíduo singular diante de Deus seria possível conceber que o indivíduo, para cumprir esta tarefa, saia sem mais da categoria da massificação da existência e salte diretamente para a categoria do Indivíduo singular, do segredo estético para o segredo religioso, do silêncio que procura preservar o instante estético para o silêncio do instante religioso, sem precisar se deter na ética e tampouco lhe prestar contas. Passar pela ética seria algo supérfluo.

Ora, nosso argumento neste tópico pretende contrapor-se diametralmente à interpretação antinomista, seja em seu sentido brando, seja em sua versão mais radical, e pretende também simultaneamente chamar a atenção para a necessidade da ética. Para tanto, entendemos ser significativo investigar a) o que Kierkegaard tinha em mente ao fazer referência acerca do tema da ética e b) qual a sua relevância para o processo de tornar-se si mesmo.

Pois bem, quando nos voltamos para Temor e Tremor, tal como observou Seung-Go Lee, nota-se que Johannes de Silentio concebe a ética com pelo menos três características: 1) a universalidade, visto que se aplica a todos em todos os lugares, 2) a imanência, pois nada fora de si constitui um télos. É neste sentido que a ética é, ela mesma o divino, e finalmente 3) a publicidade já que toda a ação moral deve ser passível de poder se externar, tornar-se

210 WAHL, 1998, p. 271.

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manifestamente pública por meio da linguagem212. Assim, cada problemata da parte dialética de Temor e Tremor procura justamente tentar problematizar e “afinar” o estatuto da ética, assim como Silentio já houvera feito na atmosfera quando “afinou” as várias versões sobre Abraão.

Todavia, um ponto que importa esclarecer, e de resto não foi bem compreendido, é que a concepção de ética em Temor e Tremor pressuposta por Johannes de Silentio não necessariamente nos autoriza a dizer que se trata da concepção do próprio Kierkegaard. Quando nos referimos ao longo de nossa investigação à ética ou à moralidade, podemos tomar estes termos uns pelos outros, de maneira intercambiáveis, sem uma grande distinção entre eles. Kierkegaard também faz isso a maior parte do tempo, já que emprega estes termos usando-os em conexão, sem sustentar uma polissemia rígida ao empregar um ou outro.

Kierkegaard usa no conjunto de sua escrita, segundo Hélène Politis, termos como Ethik (ética/moral), det Ethiske (o Ético ou a eticidade), Moral (moral), Moralitet (moralidade), det saedelige (o viver eticamente), saedelighed (vida ética)213. Estes termos não são sinônimos, mas apenas em duas obras de Kierkegaard eles são empregados com indícios de nuanças ligeiramente distintas. Precisamente, em Temor e Tremor e O Conceito de Ironia, onde a dualidade hegeliana entre moralidade e eticidade está sendo retomada214. Nessas obras, Kierkegaard está interessado nesta distinção porque tem como horizonte imediato a discussão de Hegel na Filosofia do Direito215de 1821, especialmente na ideia hegeliana de Sittlichkeit

(eticidade). É importante lembrar que o próprio Johannes de Silentio se apresenta, em um primeiro momento, como um hegeliano e está disposto a convocá-lo para o debate. Isto já indica a familiaridade do pseudônimo com os termos da filosofia de Hegel, bem como sua pauta de interlocução. Quando o interesse de Kierkegaard é dialogar com Hegel, só então ele se preocupa

212 LEE, IKC, vl. 6. P. 107. 213 Cf. POLITIS, 2002, p. 18. 214 CLAIR, 1997, pp. 79-81. 215 POLITIS, 2002, p. 19.

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em falar, tanto da moralidade quanto da eticidade no sentido de Hegel, muito embora Silentio não esteja exatamente sustentando esta distinção da Filosofia do Direito com todas as letras. Porém, seus conceitos estão subentendidos e as ideias principais das obras do pensador alemão transitam em sua análise, de modo que é importante tê-las em mente.216

A moralidade, ou moralidade subjetiva, difere da eticidade, ou moralidade objetiva, para Hegel. Enquanto na moralidade o que está em jogo são os aspectos subjetivos determinantes da ação moral, na eticidade o indivíduo é considerado como membro de uma comunidade ética, cuja expressão máxima se dá por meio do Estado. Isto é, na eticidade o indivíduo é qualificado a partir de suas determinações objetivas e importa notar neste quadro os resultados e consequências de suas ações, tendo como horizonte a generalidade universal.

Em Temor e Tremor, o estádio ético se constitui tanto de uma visão moral do mundo (moralidade subjetiva) como da eticidade (moralidade objetiva). Acontece que o indivíduo, como já chamamos atenção no capítulo anterior, não pode ser suprassumido no interior das estruturas abstratas como o Estado, a sociedade civil e a família como quer Hegel na Filosofia do Direito. O indivíduo que age em função da comunidade e visa universalizar suas máximas para atender o geral está no estádio ético de Kierkegaard, ou na eticidade de Hegel. O problema é que para o dinamarquês a moralidade objetiva, ou a eticidade, não pode ter a palavra final para o indivíduo. É preciso saltar para o estádio religioso da existência, ou para o que ele denominará como segunda ética.

Temos, com o estádio ético problematizado por Silentio, o que outro pseudônimo, Virgilius Haufinienses na obra O Conceito de Angústia de 1844 denuncia como sendo a primeira ética. Se Cauly está correto, pode-se dizer que a ética discutida em Temor e Tremor é

216 Embora Kierkegaard tenha em mente a Filosofia do Direito de Hegel, há muitas diferenças entre os propósitos

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a do estádio ético, também chamada de primeira ética.217 Dito de outro modo, o próprio estádio ético está circunscrito no âmbito desta chamada primeira ética que aparece em Temor e Tremor. Ou ainda, primeira ética e estádio ético se confundem. Ora, tal estádio ético, como muito bem lembraram Almeida e Valls, não representa a concepção ética de Kierkegaard218. O estádio ético joga com os enfoques de determinado aspecto da vida por alguns pseudônimos, mas é criticado por outros. Desse modo, conforme ressaltou Jean Wahl, o ético-religioso (ou segunda ética) para Kierkegaard é diferente do ético que foi suspenso em Temor e Tremor219.

Virgilius Haufiniensis, autor da obra O Conceito de Angústia, argumenta que a ética, isto é, a do estádio ético, precisa ser contrastada a uma segunda ética220, superior e mais abrangente do que a primeira, porque tem seu alicerce sustentado, não com a razão ou com imperativos, mas fundamenta-se na dogmática revelada. Então, teríamos assim uma primeira ética discutida ao longo da história da filosofia, especialmente no idealismo, mas somente uma segunda ética pode efetivamente lidar com os pontos em que a primeira ignora. A segunda ética leva em conta o pecado original e seus efeitos noéticos, enquanto a primeira não adentra em sua jurisdição. Discutiremos esta questão de maneira mais detalhada no último tópico. O que importa destacar, por ora é que aparentemente foi este o ponto para o qual Virgilius Haufiniensis chamou atenção no Conceito de Angústia221. Segundo Virgilius Haufiniensis:

Na luta para realizar a tarefa da Ética, o pecado se mostra não como algo que pertence só por acaso a um indivíduo casual, mas o pecado se retrai sempre mais profundamente como um pressuposto sempre mais profundo, como um pressuposto que recai sobre cada indivíduo. Agora está tudo perdido para a Ética, e a Ética contribui para a perda total. Apareceu uma categoria que se situa completamente fora de seu domínio. (KIERKEGAARD, 2010b, p. 21.)

217 O. CAULY, 1991, p. 115. 218 VALLS; ALMEIDA, 2007, p. 43. 219 WAHL, 1949, p.593.

220 Segundo Laura Sampaio, é preciso destacar sobre a diferença entre primeira e segunda éticas: “Tal distinção, a

qual não foi dado tanta importância até pouco tempo atrás, torna-se a chave para uma compreensão da questão

ética no corpus kierkegaadiano”. SAMPAIO, 2010, p. 147. 221 EVANS IKC vl.6, p. 25.

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Assim sendo, caberia-nos perguntar então, que tipo exatamente de ética Johannes de Silentio entende que precisa ser suspensa pelo télos do estádio religioso. Se a ética universal, imanente e pública de Temor e Tremor é a ética do cavaleiro da infinita resignação, estamos tratando da primeira ética, ou ainda, da ética presente dentro dos limites do estádio ético. Ora, é notadamente esta que precisa ser superada enquanto um absoluto para a vida, já que tem o privilégio de se constituir em uma categoria que oferece a palavra final em tudo222. O que está em jogo é relativizar esta primeira ética que não consegue dar conta de um dever absoluto para com Deus.

Mas lembremos, o cavaleiro da fé faz o duplo movimento. Duplo porque embora faça o movimento da fé acessando o estádio religioso, faz antes o movimento da ética, de passar pela generalidade tal como discutimos no capítulo anterior. Neste sentido, poderíamos dizer que passar pelo ético constitui pré-requisito para acessar o estádio religioso. Então, mesmo que o estádio ético não represente a perspectiva do próprio Kierkegaard sobre o tema, esta primeira ética não pode ser simplesmente descartada. O salto que o cavaleiro da fé faz para o estádio religioso parte do estádio ético e não do estético. Se partisse do estético seria um hiper salto que torna a responsabilidade moral algo obsoleto.

Esta primeira ética tem um papel importante na constituição da subjetividade, pois ninguém se torna o cavaleiro da fé sem primeiro passar por ela. A subjetividade, porém, só se efetiva plenamente na segunda ética, no estádio religioso. Temos, com esta, uma ética da interioridade, que será substancialmente diferente daquela primeira ética que Silentio apontava para a necessidade de superar. Mas há também uma outra necessidade no que diz respeito a esta primeira ética: a necessidade de passar por ela. Estes dois pontos: 1) tanto o da necessidade de

222Segundo Evans: “a vida ética é algo visto como um estádio no caminho da vida... oposta à vida religiosa. No

entanto, esta vida ética, quando purgada de seu aspecto absoluto e final, reaparece como um essencial componente

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passar pela primeira ética, 2) quanto o da ética da interioridade, ou segunda ética, ocuparão as reflexões que se seguem, pois são cruciais para nosso argumento neste capítulo.

Para além dos pseudônimo de Kierkegaard que já empregamos até agora, há outro personagem que também ajuda a pensar a necessidade da ética. Johannes Climacus, no Pós escrito as Migalhas Filosóficas de 1846, ao ler e comentar o texto Estádios no Caminho da Vida223 de 1845, sustentou que a relação entre a ética e o religioso não seria de descontinuidade

radical, na medida em que: “para o religioso, é requisito essencial que tenha passado pelo ético... se o religioso é verdadeiramente o religioso, se submeteu a si mesmo a disciplina do ético e a preserva dentro de si mesmo”.224 Climacus está argumentando aqui que não se pode ignorar o estádio ético para acessar o religioso. Antes, acessá-lo, ou se quisermos, tornar-se um autêntico eu diante de Deus, pressupõe ter passado pela disciplina do ético. Logo, passar pela ética é necessário, pois ela se mostra como elemento constitutivo do processo de tornar-se si mesmo, ainda que a ética mesma que Climacus tem interesse em refletir seja a segunda, aquela da subjetividade. Mas a primeira ética, e isto é precisamente o que está em jogo neste tópico, não pode ser descartada, sob pena de se perder a trilha que conduz ao religioso. De fato, a ética desenvolve um solo de receptividade para o religioso como notou Swenson: “Com a reservatio mentalis de que sem uma intervenção e fundo religioso a realização do ideal ético é de fato impossível. Torna-se então, a função da ética desenvolver a receptividade para a religião, um

sentimento de necessidade por ela”225

Decerto, se o estádio religioso suspende e relativiza o âmbito da moralidade imanente e universal em nome de um dever absoluto para com Deus, também o conserva visto que um

223 Trata-se de outra obra pseudonímica escrita por Kierkegaard, cujo pseudônimo editor dos textos é o

encadernador Hilarius Bogbinder que publica três manuscritos que caem esporadicamente em sua mão. Esta obra também foi chamada de segundo Ou/ou. Os pseudônimos de Kierkegaard leem e comentam uns aos outros, o que mostra uma profunda intertextualidade entre eles.

224 KIERKEGAARD, Post Scriptum, 1949, p. 328. 225SWENSON, 1983, p. 166.

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estádio não abole o estádio anterior. Não se trata, então, de considerar os estádios da existência como se fossem escadas com degraus. Antes, trata-se, poderíamos dizer, de subconjuntos dentro de um conjunto maior, a saber, dentro do conjunto do estádio religioso. Não pode haver, assim, o hiper salto da estética diretamente para o religioso tornando a ética obsoleta. Embora o estádio estético, muitas vezes tenha características que lembrem aquelas do estádio religioso, como o segredo, o silêncio e o instante, estas noções são inteiramente distintas no interior destes estádios. O agir ético, por conseguinte, se constitui um pré-requisito absolutamente necessário para que o indivíduo cumpra sua tarefa de tornar-se si mesmo. Nas palavras de Álvaro Valls:

o ser estético vive no mundo da fantasia, da imediaticidade, ou do idealismo, é necessário uma arte que o reconduza a uma estrada justa. É a mais original vertente kierkegaardiana, pois, sem a retomada de si mesmo, o indivíduo não pode desenvolver as categorias existenciais e é incapaz de um agir ético, incapaz de se tornar o homem que estava destinado a ser. (VALLS, p. 28.)

Ao tornar-se si mesmo, tanto a estética como a ética retornam e se fazem presente o tempo todo, pois embora tenham sido superadas enquanto categorias modais absolutas como télos para a vida, retornam com a sua relatividade, e tal retorno é necessário. O que ocorre na passagem de um estádio para o outro é uma série de suspensões teleológica, onde um estádio se apresenta como absoluto, mas quando o indivíduo percebe a incapacidade de um determinado estádio para ser um télos para a vida, o transfigura e o relativiza, como notou Westphal226. O Indivíduo singular não deixa de ter as dimensões estéticas e éticas da vida. Ele apenas não se relaciona de maneira final e definitiva com a estética e com a ética. Se assim procedesse, ou bem seria massificado (no caso da estética, tal como Kierkegaard denunciou nas Notas sobre o Indivíduo) ou bem seria, (no interior do estádio ético), na melhor das hipóteses, o cavaleiro da infinita resignação.

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Em ambos os casos terminaria por, de acordo com Anti-Climacus, ser um desesperado, visto que ainda estaria aquém do religioso. Há, desse modo, um desespero estético daquele indivíduo na categoria da multidão cujas ações são mesmo infraéticas. Mas há também um desespero do ético como viu Roberts227, na medida em que o ético se apresenta ideal demais para o êxito do esforço humano. E uma vez que o indivíduo não continua seu processo de subjetivação, mesmo tendo assumido a responsabilidade ética e vencendo a categoria desmoralizante da multidão, mesmo assim falha, pois não consegue, no fim das contas, se tornar efetivamente um eu diante de Deus. Neste caso, o indivíduo precisa acessar o tópos supraético, isto é, o tópos da fé. Se não o fizer termina por se desesperar.

De fato, do ponto de vista de Anti-Climacus, até mesmo um estrito cumpridor do dever moral é passível de se desesperar, na medida em que o desespero é universal e permeia tanto a estética quanto a ética. Mesmo que o indivíduo com uma visão moral de mundo, inserido nas convenções sociais e atento às demandas do geral, mesmo este, se não se torna si mesmo se desespera.

Para voltar a Silentio e ao caso de Abraão, quando o personagem bíblico se abre para a suspensão teleológica da ética, ele o faz por um determinado momento. Já o movimento da fé é feito o tempo todo, porque o tempo todo Abraão está no estádio religioso. Porém, como o religioso abarca também a estética e a ética, Abraão pode voltar a agir dentro da esfera ética. A diferença de sua ação para os heróis trágicos, por exemplo, é que para o pai da fé, a ética vale, não enquanto um absoluto, porque se assim fosse ela mesma poderia se constituir uma tentação, mas a ética vale enquanto um télos relativo que pode ser eventualmente suspenso. Conforme Lee notou, o que Kierkegaard está contrapondo, ao que tudo indica, é a diferença entre ética cristã e ética racionalista, a do estádio ético.

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A ética cristã é antiética para uma perspectiva racionalista, seja porque não é imanente, seja porque não é universal, pois diz respeito apenas ao interesse do particular e não ao da comunidade.228 Além disso, por vezes, a ética cristã sequer pode, ao modo da ética racionalista, se tornar manifesta, ou ainda, se tornar pública, pois a linguagem é insuficiente para dar conta dela, para voltar a um ponto já discutido no capítulo precedente. Com efeito, o cavaleiro da fé não pode sequer se explicar para ser reconhecido como um mártir ou para tornar a sua causa conhecida. Sua causa é particular e não poderia sê-lo de outro modo.229 Sua causa é tornar-se si mesmo.

Entretanto, segundo Louis Dupré, há problemas com este isolamento do indivíduo na filosofia de Kierkegaard. O Indivíduo singular de Kierkegaard está infinitamente aberto em um sentido vertical, mas não socialmente, porque ao sair da multidão o indivíduo fica antissocial.230 Além disso, segundo Dupré: “enquanto expressa a responsabilidade ética Kierkegaard parece ter perigosamente perdido os limites através dos quais o indivíduo sozinho se torna eticamente concreto”. 231

Não seguimos Dupré neste aspecto. Segundo nossa leitura este comentador se equivoca. Embora Dupré esteja correto ao notar que o Indivíduo singular esteja infinitamente aberto em um sentido vertical, há também uma abertura horizontal. Quer dizer, para aclarar as coisas, é preciso perceber que, antes de tudo, Kierkegaard queria evitar um grande equívoco, a saber, a absorção do particular pelo geral. Isto é problemático porque não é possível se tornar Indivíduo singular na esfera da moralidade universal. Mas dito isto, de igual modo, um outro equívoco

228 LEE, IKC vl. 6, p. 126.

229 Eis aqui o motivo pelo qual Abraão não é um terrorista, nem está abrindo as portas para o relativismo moral ou

para antinomismos. Uma ação terrorista pode ter por trás o objetivo de se sacrificar em prol de uma causa ou ideologia comunitária, ao passo que não é este o caso de Abraão. Pelo contrário, promover o sacrifício de Isaque não visa atender à generalidade social. O terrorista pode até ser um herói trágico, mas não pode ser o cavaleiro da fé isolado diante de Deus.

230 DUPRÉ, IKC vl. 19, p. 100. 231 IDEM, p. 103.

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seria apelar ao outro extremo. Isto é, ao supor que o particular não pode ser abarcado pela generalidade, daí não se segue que o indivíduo seja antissocial como interpretou Dupré.