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Indivíduo singular e multidão: aquém e além da ética na filosofia de Soren Kierkegaard

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Departamento de Pós-Graduação em Filosofia

INDIVÍDUO SINGULAR E MULTIDÃO: AQUÉM E ALÉM DA

ÉTICA NA FILOSOFIA DE SOREN KIERKEGAARD

Jean dos Santos Vargas

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Jean dos Santos Vargas

INDIVÍDUO SINGULAR E MULTIDÃO: AQUÉM E ALÉM DA

ÉTICA NA FILOSOFIA DE SOREN KIERKEGAARD

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de mestre em filosofia no programa de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Linha de Pesquisa: Filosofia Contemporânea. Orientador (a): Prof. Dr. Ivan Domingues.

Coorientador (a): Prof.ª Dra.Cleide Cristina da Silva Scarlatelli.

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Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas

nem das grandes ventanias soltas, pois

eu também sou o escuro da noite”

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AGRADECIMENTOS

Ao prof. Ivan, meu orientador, pela acolhida desde o primeiro encontro, pelos inúmeros direcionamentos, apoio, orientação competente, pelas leituras atentas aos meus textos, pela franqueza, pelas nossas muitas conversas, por me apresentar à prof.ª Cleide, por abrir espaço ao grupo Kierkegaard na UFMG, pelo exemplo de intelectual e, sobretudo, por me abrir novos horizontes de perspectivas filosóficas. Sem o seu apoio esta pesquisa não seria a mesma.

À prof.ª Cleide, minha coorientadora, pela sua infinita gratuidade, pela nossa amizade, por suas orientações tanto sobre os temas desta pesquisa quanto sobre a vida, pela sua acessibilidade e pelo seu exemplo de educadora para além dos muros da academia, por compartilhar comigo minhas primeiras experiências como professor, por me emprestar seus óculos para ver o mundo. Agradeço ainda por me emprestar uma biblioteca inteira de livros raríssimos e se esquecer de tê-los me emprestado, por me encorajar a ser, a maior parte do tempo, mais kierkegaardiano do que mestrando, por me ter em grande estima mesmo quando eu não estava presente, por ter acreditado em mim quando esta pesquisa era só uma ideia vaga, por muitas vezes ter entendido meus textos melhor do que eu mesmo, por ter tomado para si os fardos que eram meus, por ter cedido a mim a honra que era sua. Foi assim que adquiri uma dívida impagável.

Ao prof. Marcio Gimenes de Paula da UNB por me enviar mais de cem livros, por gentilmente ler meu artigo sobre Kierkegaard, pelas muitas conversas, sugestões e orientações. À prof.ª Silvia Saviano Sampaio da PUC SP por prontamente me enviar sua tese de doutorado.

À minha querida Gabriela pelo companheirismo, carinho e amizade, pelo apoio, por seus muitos conselhos, pelos nossos compartilhamentos de angústias, pela cumplicidade silenciosa. Agradeço, também, por me resgatar quando muitas vezes já estava me submergindo nos livros, por ler, corrigir e discutir meus textos de filosofia, por dizer que tudo daria certo quando tudo dava errado, por tolerar minhas elucubrações de originalidade filosófica, por não brigar todos os dias comigo por aqueles muitos livros espalhados pela casa, pelo seu grande amor e, sobretudo, por nunca ter me subestimado.

Ao meu pai pelo apoio, por nossas conversas descontraídas, por me perguntar muitas vezes se eu já era um professor, se eu ainda estava na UFMG, por me perguntar poucas vezes o que era um mestrado.

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entrar na escola formal, por se interessar, ler e discutir meus textos de filosofia, pelo seu exemplo de fé, por suas muitas orações, pelo seu incentivo, por cultivar em mim uma certa angústia condicionante para o exercício do filosofar, por não desestimular minha introspecção, por ter paciência com os muitos por quês que sempre me moviam, por já me achar capaz quando ninguém achava nada ainda.

Às minhas tias Cristina e Adriana e ao tio Marcelo por terem sido os meus pais por mais de doze anos da minha vida, pelos conselhos e orientações, por me apoiar, mesmo franzindo a testa, quando eu vacilantemente tentava responder o que é filosofia e para que serve.

Aos colegas da UFMG pela amizade e as boas conversas filosóficas. Agradeço especialmente ao David pela amizade todos esses anos, por gravar muitas aulas para mim quando precisei, por me sugerir a orientação do prof. Ivan, pelas discussões filosóficas, pela troca de experiências, pelo nosso épico debate sobre Santo Agostinho, por ter me lembrado à época do vestibular que filosofia é coisa para gente séria.

Ao grupo Kierkegaard pelas valiosíssimas sugestões, discussões e compartilhamento de experiências, pela amizade de todos esses anos e por tolerar meus devaneios sobre psicanálise. Ao meu avô José Pereira (in Memoriam) por me introduzir, com sua simplicidade aos problemas de preocupação última, pela sua amizade, desapego e exemplo de caráter, por ter passado a mim a responsabilidade de continuar sua caminhada no mundo dos livros, por sempre supor que eu era melhor do que eu realmente era.

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RESUMO

Considerando a noção dos estádios da existência na filosofia de Soren Kierkegaard, o presente trabalho pretende estabelecer um contraponto entre as categorias da multidão e a do Indivíduo singular. A pesquisa procura acompanhar o movimento dessas categorias com o propósito de pensar o lugar da ética em seu interior. Ao estabelecer a pergunta pelo lugar da ética como fio condutor, a ideia central implica em propor uma leitura alternativa para o embate entre duas linhas de interpretação a partir da literatura secundária. Isto é, o presente trabalho se opõe 1) tanto àqueles que advogam uma conciliação entre o filósofo de Copenhague com os idealistas Kant e Hegel (que são pensadores que transitam na obra kierkegaardiana), 2) quanto àqueles que propõem uma divergência profunda entre Kierkegaard e qualquer tipo de compromisso ético. Em contraposição a ambos os vetores interpretativos na literatura kierkegaardiana, pretende-se mostrar que a ética, para o filósofo dinamarquês, ocupa um lugar necessário, mas insuficiente no que diz respeito à transição do indivíduo massificado, vale dizer aquém da ética, para o Indivíduo singular, além da ética. Para sustentar tal argumento é imprescindível a remissão à distinção kierkegaardiana entre a primeira e a segunda ética.

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ABSTRACT

Regarding the stages of existence in Soren Kierkegaard’s Philosophy, this work wants to counterpoint the singular individual and the crowd categories. This research wants to follow up

these categories’ movements in order to guess the role of ethics inside them. Questioning the

role of ethics as a guide, the main idea implies a proposition of an alternative understanding to the shock between two lines of interpretation from the secondary literature, i.e., the present work opposes: 1) The ones who advocate a conciliation between the Copenhagen Philosopher and the idealists Kant and Hegel (who are thinkers who move in Kierkegaard's work); 2) The ones who propose a deep divergence between Kierkegaard and any kind of ethical commitment.

Counterpointing both points of view of Kierkegaard’s literature, the intention of this study is to

show ethics as having a necessary role, according to the author, but insufficient regarding the transition of the massified individual. It can be said beneath the ethics, to the singular individual,

beyond ethics. It is necessary to refer to the Kierkegaard’s distinction between the first and

second ethics in order to sustain this argument.

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SUMÁRIO

1-Introdução...11

2- Capítulo 1: Fracasso no processo de tornar-se si mesmo: A categoria da multidão aquém da ética...22

2.1Considerações Preliminares: o contexto de Kierkegaard na Dinamarca...24

2.2Indivíduo singular e multidão: a colocação do problema...34

2.3A categoria da multidão é infraética: verdade e mentira existencial...41

2.4 Política e imprensa: os diretores de massa...48

2.5 A morte da morte como condição para o desespero do eu...61

3- Capítulo 2: Êxito no processo de tornar-se si mesmo: o Indivíduo singular além da ética...72

3.1 Temor e Tremor e o problema do Indivíduo singular...73

3.2 Afinando a Atmosfera: o duplo movimento...82

3.3 Suspensão teleológica da moralidade: o indivíduo frente ao geral...95

3.4A possibilidade do dever absoluto para com Deus: exterioridade e interioridade...102

3.5 O silêncio da fé e a surdez da filosofia: problemas de linguagem...110

4- Capítulo 3: O problema da ética no interior da relação Individuo singular/ multidão...114

4.1 Kierkegaard e o problema da ética: dois vetores interpretativos...116

4.2 A ética é necessária: eis o calcanhar de Aquiles para os antinomistas...120

4.3 É necessária, mas não suficiente: eis o calcanhar de Aquiles para os conciliatórios...132

4.4 O que devemos fazer? Prelúdios de uma segunda ética...139

5- Conclusão...148

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11 1- INTRODUÇÃO:

Tarefa difícil esta de lançar unidade à diversidade kierkegaardiana. Há notadamente dois riscos nesta operação. O primeiro é o de classificar um autor não classificável. Filosófico demais para os teólogos e, teológico demais para os filósofos, Soren Kierkegaard (1813-1855) parece não se enquadrar facilmente, mesmo que se lance mão de um tour de force. O dinamarquês escapa às tentativas de classificação, e escapa de maneira meticulosamente calculada, o que acaba por permitir sua frequentação tanto pelos filósofos e teólogos, como também por artistas, escritores de literatura e até pelos diretores de cinema. Já o segundo risco é, ao evitar a sistematização, perder-se no labirinto kierkegaardiano, fazer o jogo dos pseudônimos, e de resto o do próprio autor dinamarquês. Com outras palavras, o risco que se corre aqui é o de, ao tentar capturá-lo, lançando mão de um ementário acadêmico, acabar por definitivamente permiti-lo, uma vez mais, por assim dizer, “escapar por entre os dedos”.

A tarefa de pesquisar um autor é difícil, sobretudo porque implicitamente os pesquisadores estão no fundo, de maneira arriscada, se propondo a dizer, de uma maneira melhor, o que o autor disse, ou pelo menos de modo mais claro do que o autor em questão fez. Ademais, no caso de Kierkegaard, a dificuldade alia-se ainda, ao fato de que o pensador de Copenhague não cessa de criticar os acadêmicos, tanto por meio dos textos que levam seu próprio nome (isto é, os veronímicos), quanto por meio daqueles escritos por pseudônimos (os pseudonímicos). De fato, é preciso confessar, Kierkegaard não queria ser objeto de pesquisa com finalidades academicistas e, a propósito disso, articula algumas armadilhas para não ser esquematizado. Ou ainda, conforme escreve Johannes de Silentio, um de seus pseudônimos, seria preciso evitar o que ele chamava de “escribas zelosos e glutões de parágrafo”.1

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12 Ora, Kierkegaard não tinha mesmo a pretensão de agradar o seu público, pois dispensa:

“escrever um livro fácil de folhear à hora da sesta e o cuidado de se apresentar com a cortesia

daquele jardineiro do anúncio, que, com o chapéu na mão e o certificado do último a quem servira, se recomenda ao respeitável público”.2 Então, como escrever um livro assim definitivamente não é o caso, os textos de Kierkegaard não são fáceis e acessíveis ao senso comum, mas também não são endereçados à comunidade filosófica. São escritos tendo como horizonte imediato a cristandade dinamarquesa, cujo processo de secularização em curso na Dinamarca do século XIX leva-os a negligenciar a paradoxalidade existencial do tornar-se cristão.

Além da literatura, Kierkegaard deixou a filosofia na companhia da religião e da fé cristã, porém longe da cristandade, termo pejorativo para se referir aos que deturpavam a autêntica experiência religiosa. De fato, o nosso autor estava no contrafluxo do seu tempo que preferia a companhia da ciência. Enquanto todos estavam imbuídos em, por meio da ciência e da técnica, tornar algo mais fácil, Kierkegaard estava preocupado em tornar algo mais difícil, a saber: o ato de tornar-se cristão.

A julgar pelo propósito do filósofo ao escrever, é preciso admitir a impertinência desta pesquisa. Entretanto, reconheceremos tal impertinência desde que aqueles que se propõem a apreciá-la também reconheçam que, de um certo ponto de vista kierkegaardiano também não são bem vindos, já que o próprio Kierkegaard reiteradamente advertia que sua obra seria “... tanto melhor quanto menos leitores tiver”.3 Todavia, já prevendo a frequentação dos docentes, Kierkegaard se incumbe de duramente praguejar contra eles quando esbraveja: “do homem

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13 comum eu gosto... os doutores, eu abomino ...se não existisse o inferno, seria preciso inventar um para punir os docentes, cujo crime é de um gênero difícil de punir”.4

Mas não nos deixemos assustar. Feitas essas considerações prévias é preciso dizer que nem tudo são dificuldades. Kierkegaard é um autor que permite, para além da árdua tarefa de comentá-lo, tomar seus conceitos teóricos como objeto mesmo de reflexão, e assim é permitido ao leitor um espaço para, na extensão do dinamarquês, efetivamente fazer filosofia. Aliás, levar os seus interlocutores à reflexão era o principal projeto de Kierkegaard. Profundamente influenciado pela maiêutica e ironia de Sócrates, Kierkegaard pretendia levar seus leitores, mais do que a uma reflexão abstrata e estéril sobre conceitos, queria levá-los a refletir sobre a existência, pois só assim é possível tornar-se Indivíduo singular.

Os pseudônimos de Kierkegaard constituem, então, parte de um método, a saber, o de comunicar verdades de natureza ético-religiosa de maneira indireta, a fim de tornar o interlocutor atento. Os pseudônimos, por isso, reproduzem, como se sabe, uma didática em voga no romantismo e tratam de temas profundamente entrelaçados, ainda que os tratem de perspectivas distintas, com o objetivo de provocar movimentos existenciais no leitor. Isto é, de levar o leitor a refletir e problematizar seus conceitos. Neste sentido, é preciso ressaltar que se pode aferir nos textos de Kierkegaard uma profunda intertextualidade entre os autores personagens, e alguns, inclusive, ajudam a pensar problemas propostos por outros. Desse modo, ao longo dessa dissertação muitas vezes um mesmo conceito aparecerá em conexão e em coextensão com muitos outros, pois é assim que ocorre no pensamento de Kierkegaard. Por isso, os conceitos sempre surgem e se prestam a finalidades distintas, ainda que complementares em mais de um capítulo.

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14 Estas digressões são absolutamente necessárias, pois não é possível esgotar o alcance de um conceito sem levar em conta outros tantos. E como a tarefa de desembaraçá-los é um exercício puramente artificial, visto que estão imbricados nas múltiplas intertextualidades dos pseudônimos, de uma forma ou de outra voltaremos aos mesmos conceitos sem hesitar, quantas vezes se fizer necessário, com o simples, mas simultaneamente complexo propósito de aferir o que está em jogo em cada ponto a ser problematizado. Portanto, indicaremos quando os conceitos trabalhados serão melhor desenvolvidos adiante, ou ainda indicaremos que já nos detivemos o bastante sobre eles em algum momento anterior, quando este for o caso. Mas, no fim das contas, acaba que precisaremos caminhar em círculos visando nos debruçar sub-repticiamente, mais de uma vez, sobre os mesmos conceitos para tentar abordá-los de um outro ponto de vista.

Porém, que fique claro que Kierkegaard tinha um método para fazer filosofia. Trata-se da relação entre comunicação direta e indireta. Quando ele lança mão dos pseudônimos, é o responsável jurídico pelos textos, mas não necessariamente se adere aos seus discursos. Se com os autores personagens, Kierkegaard pretende influenciar seus interlocutores e levá-los a provocar movimentos existenciais, quer levá-los, portanto, à autorreflexão. É como se os autores personagens fossem um espelho que reflete o próprio interlocutor. O filósofo emprega não apenas um diálogo riquíssimo entre os seus múltiplos pseudônimos, o que torna tudo mais complexo e interessante, como pode se dar ao luxo de propor perguntas sem oferecer respostas definitivas, sem adotar uma postura totalizante frente aos problemas que discute, sem informar as suas fontes, sem fazer citações precisas e sem lançar mão de interpretações rigorosas de outros pensadores.

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Dois discursos edificantes, concluiu que não se tratava de um texto do mesmo autor e reclamou

com o próprio Kierkegaard, que por sua vez, ofereceu ao leitor insatisfeito o reembolso.

Não bastasse o jogo pseudonímico, Kierkegaard ainda tem muitas outras, por assim dizer, “cartas na manga”, haja vista que desconsiderar o modo como o pensador trilha seu itinerário filosófico pode induzir o leitor a uma exegese, quando não ruim, bastante limitada de seus textos. É preciso estar atento a isto. Kierkegaard emprega muita ironia, abusa das metáforas, das experiências mentais, começa textos sérios com a expressão “era uma vez” e não raras vezes chega a contar piadas para ilustrar seu argumento. De fato, o dinamarquês não adota um estilo academicista com uma erudição sisuda. Não foi sem razão que seu estilo irreverente e pouco comportado na infância o rendeu o epíteto de “garfo”, porque quando perguntado sobre o que seria quando crescer respondeu que escolheria ser este utensílio, pois pretendia espetar as pessoas; e depois, na vida adulta, por ocasião de sua defesa de mestrado na Universidade de Copenhague, ficou conhecido por responder a uma das interpelações dizendo que se não entendiam o que ele disse, o problema não era dele, mas de quem não o compreendeu.

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16 Esta pesquisa será conduzida, então, mediante dois procedimentos com o propósito de coordená-los: Por um lado, deveremos recorrer ao método histórico-contextual5, que é uma ferramenta significativa na tarefa de identificar a posição do filósofo sobre temas, tradições filosóficas e ideologias influentes em seu tempo, e por que ele se debruçou sobre estes pontos. Com este método temos como foco a leitura dos textos, bem como sua correlação com pensadores representantes de correntes com as quais os assuntos estão em pauta de discussão; o uso da bibliografia que abrange a situação histórica na Dinamarca, além da esporádica interlocução com Kant ou com Hegel. Por outro, depois de perceber a recepção de tais influências, o método “sistemático”6 ou estrutural7 será aplicado para notar como o pensador dota de significação e ressignifica os temas trabalhados. Aqui é importante perceber onde o filósofo está sendo original e qual o seu legado para os pontos discutidos, tendo como horizonte imediato a cristandade dinamarquesa, público-alvo de seus textos.

Pode-se também observar com este método, como a estrutura argumentativa é montada, focalizando os conceitos, os problemas internos à obra e a intenção do autor. Para aplicar a análise estrutural nos valeremos dos textos primários, e do apoio oferecido pela literatura secundária8, que se pauta na exegese das obras de Kierkegaard. Contudo, nem sempre

5Procuramos, todavia, não ignorar a tentação historicista, tal como advertiu Ivan Domingues: “... de derivar o

sentido do texto do contexto histórico-cultural que o envolve e em que foi produzido (contexto da produção). Esta

é a tentação de todo exegeta e historiador das ideias...” DOMINGUES, 1995, p. 140.

6Aqui, seguimos a sugestão de A. Valls: “Na Europa atual, os melhores pesquisadores procuram desvelar a

estrutura de sua obra como uma totalidade lendo a lógica de seu jogo de pseudônimos... Tais leituras em nosso idioma ainda não permitiram uma visão, ousemos dizer, mais lógica, mais racional, mais dialética e até mais

“sistemática” da obra de Kierkegaard” VALLS, 2000, p. 14.

7 Procuramos ficar atentos aos riscos do método estrutural, como mostrou Ivan Domingues: “no caso da abordagem

estrutural, além do risco já mencionado, do texto do intérprete ficar no lugar do texto do autor, depois de ter-se revelado que a chamada “estrutura profunda” não pertence de fato ao autor, mas ao intérprete que a levou até ele, há ainda um segundo, ligado, desta feita, à ideia de autonomia da obra e a necessidade de circunscrevê-la tal qual, sem se remeter a um mais além ou a um mais aquém dela (texto absoluto). O perigo, no caso, como bem viu

Ricoeur, é o texto se “enclausurar” dentro de si mesmo, em sua “estrutura profunda”, e, assim, romper toda a

comunicação da obra com o autor, o contexto e o público de seus leitores”. DOMINGUES, 1995, pp. 143-144.

8 Aqui nos apoiamos mais, como sugere Valls, na leitura dos norte-americanos, pois são eles os que se mantêm

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17 recorreremos ao auxílio dos comentadores para nos aliar a eles. Muitas vezes, tais textos serão convocados para enfraquecermos suas hipóteses e reforçarmos a nossa, a fim de sugerir uma rota alternativa em relação a determinados problemas.

Nossa hipótese central é mostrar que para Kierkegaard os indivíduos estão diante de uma tarefa árdua que se constitui, ao mesmo tempo, em um privilégio. Trata-se da tarefa de se autorrealizar, de tornar-se “si mesmo”. Esta tarefa, todavia, pode ser trilhada com êxito ou com fracasso. Alcançar êxito implica em tornar-se Indivíduo singular diante de Deus. Fracassar tem como pano de fundo o desespero, e na pior das hipóteses, pode levar ao processo de massificação da existência. Conforme argumentaremos, só se tem êxito no estádio religioso da existência. Falhar, no mais iminente sentido do termo, significa se prender às correntes do estádio estético da existência. Resta se perguntar - e este é o nosso problema por excelência a ser investigado aqui - pelo lugar da ética no interior da dicotomia Indivíduo singular/ multidão.

A propósito da ética, pretendemos desenvolver e aprofundar a distinção proposta na obra O Conceito de Angústia de 1844 entre a primeira e a segunda ética. A primeira é a ética dos filósofos, especialmente Kant e Hegel. A segunda é a ética cristã genuína. A primeira ética tratada em Temor e Tremor tem como seu exemplo máximo o herói trágico que, para atender as demandas de sua comunidade, submete seus próprios interesses ao geral. A primeira ética é, neste sentido, imanente, universal e pública, de modo que, na reflexão kierkegaardiana, aparece representada como um estádio existencial, qual seja, o estádio ético.

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18 com o próximo, tendo como alicerce o dever de amar. A segunda ética, em determinados momentos, como veremos, não poderá assumir as características de publicidade, imanência e universalidade da primeira. As vezes ela operará nos limites do silêncio religioso, na sua transcendência vertical, na sua heteronomia obediente. Mas a segunda ética não abole a primeira, apenas a subordina e retira-lhe o privilégio de ser um télos para nortear as ações.

A primeira ética, tal como Kierkegaard a concebe, pode retratar os esforços de Kant e/ou de Hegel como discutiremos. O dinamarquês não os confunde e tampouco toma um pelo outro. Ou seja, Kierkegaard, embora não se preste a fazer distinções muito rigorosas, sabe que a moral de Kant e de Hegel não são equivalentes. Todavia, o ponto em comum de ambos, além de fundamentarem a ética na razão, seria o seu excesso de idealização abstrata. Ao pressupor que os agentes são capazes de ações morais porque são dotados de razão, ambos caem, para nosso autor, na ingenuidade de desconsiderar os efeitos noéticos do pecado, condição original do homem, o que inviabiliza o acesso aos altos padrões de moralidade. Tanto Kant quanto Hegel se equivocam por pressupor que os indivíduos são melhores do que efetivamente são. Para os idealistas, a pergunta pela possibilidade de um dever absoluto para com Deus não prospera, pois a moral, antes de tudo, deve ser um télos final para as ações. Nenhuma ação que contraria a universalização das máximas deve ser incentivada.

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19 Se perguntar pela relação entre a primeira e a segunda ética, ou ainda, entre o estádio ético e o estádio religioso, de um lado, e as categorias da multidão e do Indivíduo singular, do outro, constituem os ingredientes das discussões que se seguem. Contrapor estes conceitos estará em nosso horizonte ao longo das investigações desta pesquisa.

Para dar conta desta tarefa nos serviremos de três capítulos que discorrerão sobre os tópicos e assuntos apontados neste trabalho de maneira temática. O primeiro tem como principais referências: as Notas sobre o Indivíduo de 1847, publicadas como apêndice de Ponto

de Vista Explicativo de Minha Obra como Escritor e a primeira parte do texto Doença para a

Morte de 1849. Além destes, mostraremos os pontos de convergência a partir das Obras do

Amor de 1847. Trata-se de um capítulo essencialmente temático, já que o tema da massificação

da existência aparece em momentos distintos sem uma estruturação mais articulada, de modo que cabe ao pesquisador o ônus de juntar as peças para chegar ao núcleo desta categoria da multidão. Neste capítulo procuraremos mostrar como Kierkegaard, depois dos incidentes históricos que marcam o final dos anos 40 na Dinamarca do século XIX, está pensando o processo de massificação da existência. Sua preocupação é com este indivíduo que falha em sua tarefa de tornar-se si mesmo, e falha tão completamente que sequer acessa a responsabilidade ética. Fica submerso, assim, na categoria da multidão, em alguma instância aquém da ética.

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20 fracasso na tarefa de tornar-se si mesmo, com Abraão, quatro anos antes, fora pensado o exemplo de êxito no processo. O problema central nesta obra é o movimento do cavaleiro da fé de saltar da ética para o religioso. Neste caso, se é preciso a Abraão fazer o salto para o estádio religioso, então o Indivíduo singular é uma categoria situada em algum nível além da ética.

Por fim, no terceiro e último capítulo, como problema principal situaremos o lugar da ética no interior do processo de “tornar-se si mesmo”. Neste capítulo propomos uma interpretação alternativa para o embate entre duas leituras no pensamento de Kierkegaard. Estamos particularmente interessados em nos contrapor, conforme os denominamos: 1) aos antinomistas, aqueles que sustentam a irrelevância da ética para o processo de tornar-se Indivíduo singular, e 2) aos conciliatórios, que reconhecem a relevância da ética, apenas na medida em que tal temática é pensada à sombra de Kant e/ou de Hegel. O capítulo terceiro procura lançar luz a este debate, visto que aprofunda estas interpretações, mas se opõe a elas. Para além disso, procuramos verificar no capítulo final se Kierkegaard tinha alguma diretriz moral a oferecer, a propósito da segunda pergunta kantiana na Crítica da Razão Pura, isto é: o que devemos fazer? Dois textos ajudam a pensar o lugar da ética aqui: O Conceito de Angústia e, mais uma vez, As Obras do Amor. Com eles adentramos na segunda ética. No terceiro capítulo procuraremos então contribuir para enriquecer o debate e ratificar nossa hipótese de que a primeira ética é necessária, mas não suficiente para o indivíduo tornar-se si mesmo. A primeira ética, outrossim, é relevante se, e somente se, for tomada enquanto uma passagem. A segunda abarca o próprio processo de tornar-se Indivíduo singular.

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21 vez que a aventura de se lançar ao vasto mundo dos textos de Kierkegaard (que escreveu incansavelmente e tinha muito a dizer sobre temas absolutamente distintos, mas que comportam, como dissemos, um entrelaçamento performático entre si), seria uma tarefa incomensurável, sem data para acabar. Além do mais, como não é possível aqui abordar e falar sobre seus conceitos de modo exaustivo, foi preciso inserir delimitações e estabelecer um eixo temático como, diga-se de passagem, os acadêmicos costumam fazer.

Se a tarefa de Kierkegaard era, em última instância, uma tarefa socrática como ele achava que era, a ironia não pode ser ignorada no desenrolar da sua escrita. Procuraremos ficar atentos a este ponto, mesmo cientes de que Kierkegaard não tem como foco exatamente os mesmos problemas do irônico grego nascido há quatrocentos e setenta anos antes de Cristo. Mas Kierkegaard certamente pode retomá-lo para pensar os seus próprios problemas e para fazer frente aos seus próprios sofistas, prefigurados na cristandade dinamarquesa. Tantos séculos depois, com Kierkegaard é como se tivéssemos, e procuramos ter isso em mente ao longo desta pesquisa, um posicionamento comprovadamente socrático, para quem a ética ao seu modo era o centro da filosofia. Aliás era exatamente para Sócrates que Kierkegaard achava que seu tempo precisava apelar:

Sócrates! Sócrates! Sócrates! Tríplice apelo que bem poderia elevar até dez, se fosse de algum socorro. O mundo teria necessidade, segundo se supõe, duma república, supõe-se haver necessidade duma nova ordem social, duma nova religião; mas quem julgará que é de um Sócrates que precisa este mundo perturbado por tanta ciência! Naturalmente, se alguém, se, sobretudo, vários o pensassem, sentir-se-ia menos a sua necessidade. (KIERKEGAARD, 2010a, p. 119.)

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22 desmascarar a cristandade e colocar em xeque os seus pressupostos, de fato temos em Kierkegaard um novo Sócrates, justificando-lhe o epíteto de Sócrates de Copenhague.

2 - Capítulo 1: FRACASSO NO PROCESO DE TORNAR-SE SI MESMO: A CATEGORIA DA MULTIDÃO AQUÉM DA ÉTICA

Quando Kierkegaard escreveu em 1847 suas pequenas Notas sobre o Indivíduo9, (Till Dedicationen “hiin Enkelt”) pretendeu trazer à tona seu horizonte conceitual desenvolvido ao

longo de suas reflexões sobre o problema de tornar-se cristão. Ao assim proceder, Kierkegaard se dedicou amplamente à sua empreitada de estabelecer um contraponto entre o Indivíduo (Den

Enkelt) e a multidão10 (Maengde). Alguns anos depois, mais especificamente em 1855, Kierkegaard revisa e reescreve parte dessas notas, neste segundo momento com a experiência dos incidentes sociais e políticos desembocados tanto no contexto local da Dinamarca, quanto no quadro global que perpassou toda a Europa nesse período. A experiência desses acontecimentos o ajudou a compreender melhor suas perspectivas sobre a dialética entre o Indivíduo11 (doravante denominado como discutiremos em seguida, Indivíduo singular) e a multidão.

Precisamos pontuar ainda, logo de saída, que os tópicos seguintes pretendem analisar o desenvolvimento da referida temática, de resto já presente por toda obra estética de primeiro percurso, mas que após os incidentes sociais e políticos da segunda metade da década de

9 As duas notas sobre o Indivíduo aparecem na versão portuguesa como: NOTA I SOBRE A DEDICATÓRIA ‘AO INDIVÍDUO’ e NOTA II UMA PALAVRA SOBRE A MINHA OBRA DE ESCRITOR CONSIDERADA

EM RELAÇÃO AO ‘INDIVÍDUO’. Elas foram publicadas como apêndice de Ponto de Vista Explicativo da

Minha Obra como Escritor. Aqui nos referiremos a elas como Notas sobre o Indivíduo.

10 A maior parte do tempo Kierkegaard usa a palavra Maengde (multidão), mas às vezes, emprega a palavra massa

(en masse), que aparece grafada em francês.

11 Na edição portuguesa que empregamos, Den Enkelt é traduzido como Indivíduo enquanto o termo individ

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23 quarenta ganharam novos contornos. Desse modo, para além das Notas sobre o Indivíduo de 1847, dirigiremos nosso olhar, ainda que brevemente, para o segundo capítulo do texto veronímico As Obras do Amor (kaerlighedens gerninger) também de 1847, por conter uma intertextualidade imprescindível à discussão travada acerca do problema deste capítulo. Para não nos atermos apenas à escrita veronímica, nos valemos também da primeira parte da obra pseudonímica de segundo percurso, publicada em 1849 sob a pena do autor personagem Anti-Climacus, denominado Doença para a Morte (Sygdommen til Døden), por entender que traz importantes contribuições para pensar o assunto, na medida em que se debruça sobre o mesmo mote temático. Trata-se de uma obra em que o problema do tornar-se si mesmo é levado em conta a partir das considerações sobre o desespero existencial e o esquecimento de si, pontos estes bastantes pertinentes para as discussões suscitadas nesta pesquisa.

Dessa forma, o vetor da nossa investigação nesse capítulo inicial será verificar como Kierkegaard está pensando, após todos os incidentes históricos que se descortinaram no cenário europeu, especialmente no dinamarquês, o problema da relação Indivíduo singular/multidão12. Assim, no primeiro tópico, apresentaremos o contexto histórico de Kierkegaard, base de suas discussões, como veremos. No segundo tópico, apresentaremos a relevância da temática em linhas gerais. No terceiro tópico trataremos da relação entre ambas as categorias, tendo como pano de fundo os estádios da existência. No quarto tópico desenvolveremos dois vetores da categoria da multidão: 1) a imprensa e 2) a política. E finalmente vamos considerar o fracasso da tarefa de tornar-se si mesmo levando em conta as reflexões do pseudônimo Anti-Climacus que introduz como problema estrutural a ideia de desespero. Ao final deste capítulo nosso interesse aqui é perceber, entre outros aspectos: 1) qual a colaboração dos textos supracitados para pensar o recorte temático já presente na reflexão kierkegaardiana desde o início; 2) em que

12 Não se trata de dizer que Kierkegaard tenha sido o primeiro filósofo a contrapor o indivíduo à multidão.

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24 medida a categoria da multidão se encontra na contramão da categoria do Indivíduo singular; e, 3) por que o eu pode falhar ao longo desse processo. Estas são as questões que constituem o nosso fio investigativo, de modo que esperamos elucidá-las e articulá-las a partir das considerações suscitadas a seguir.

2.1 Considerações Preliminares: O contexto de Kierkegaard na Dinamarca

Para se compreender o legado intelectual de Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855) é imperativo levarmos em conta a sua época. É a partir desse pressuposto que nos ocuparemos brevemente do cenário dinamarquês na primeira metade do século XIX. Evidentemente, ao estudar qualquer autor é preciso levar em conta os desdobramentos históricos de seu contexto. Mas, no caso de Kierkegaard, isto parece ser ainda mais significativo, pois a Dinamarca passa por um intenso e breve processo de profundas mudanças, cujos desdobramentos podem ser diretamente conectadas às preocupações do autor nórdico. A pequena Dinamarca rural das interações face a face, durante a vida de Kierkegaard, se transforma em um país amplamente urbano. Os dinamarqueses contemporâneos do filósofo se surpreenderam com a chegada do telégrafo, os navios a vapor, as estradas de ferro que aceleram de maneira revolucionária o transporte, a inovação no transporte público em Copenhague com os novos famigerados13 ônibus, sem falar nas transformações políticas que mudaram definitivamente os rumos do país14.

Kierkegaard vive no contexto da chamada era dourada dinamarquesa, também conhecida como Danish Golden Age.15 Esse período é reconhecido notadamente pela

13 Kierkegaard se surpreendeu muito com a chegada dos novos ônibus no seu país e falou deles com tom

pejorativo em mais de um lugar. Os ônibus, segundo nosso autor, são como o sistema de Hegel por dar um jeito de carregar os mais variados conceitos.

14 KIMMERSE 2013, p. 27.

15 Como Bruce Kirmmese frisou: “Kierkegaard, além de filósofo, era também (e primordialmente) um pensador e

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25 emergência dos grandes nomes de intelectuais na cena dinamarquesa, sobretudo nas áreas das artes, ciências naturais e literatura. A era de ouro na Dinamarca foi, por conseguinte, um movimento sem igual na história dinamarquesa, haja vista a expressão internacional sem precedentes que a cultura do país alcançou na primeira metade do século XIX. No entanto, apesar do reconhecimento internacional se estender a todo o país, a era de ouro na Dinamarca, ao contrário do que se possa pensar, se restringia especialmente aos domínios da cidade de Copenhague16.

Com o objetivo de apresentar, ainda que suscintamente, o pano de fundo em que o pensador dinamarquês propõe as suas reflexões, entendemos ser de grande valia nos determos um pouco sobre este aspecto. Kierkegaard vive em um cenário de transição entre o estabelecido contexto social dinamarquês, com o seu conservadorismo representado especialmente pelo absolutismo monárquico, e a crescente chegada da modernidade no país nórdico. Kierkegaard sabe que o processo de modernização pode ter efeitos nefastos na cultura, mas o pensador dinamarquês se mostra preocupado, via de regra, com o impacto destes eventos na vida da fé17. Este último tema constituiu uma fonte de grande preocupação para Kierkegaard, ao ponto de se mostrar, ao longo das suas reflexões, como sendo o principal problema que perpassa toda sua escrita: o problema de tornar-se cristão. Boa parte das referidas influências se devem à simpatia que intelectuais dinamarqueses como J. Heiberg e Hans L. Martensen nutriam pela filosofia de Hegel. Sendo assim, pretendemos verificar a partir dessas considerações como o contexto da Dinamarca dos anos dourados ajuda a lançar luz à reflexão de Kierkegaard.

que um estudo da obra de Kierkegaard é inescapavelmente também um estudo de sua vida e sua época”. IDEM,

p. 28.

16 Segundo Kirmmese define, trata-se de: “um fenômeno cultural, a saber, uma nova expansão da produtividade

artística, científica, literária, filosófica e teológica no espaço de um período bastante breve de tempo, mais ou

menos de 1800 a 1850, e, em grande parte, dentro dos limites de uma única cidade, Copenhague”. IDEM, 2013,

p. 28.

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26 Entre 1818 e 1828 o contexto social na Dinamarca era formado por um grande número de população rural. Inúmeros camponeses e uns poucos profissionais liberais urbanos constituíam a chamada classe média. A elite social era formada pelos membros da coroa e por aristocratas, conhecidos por serem grandes latifundiários, detentores da maior parte das terras na Dinamarca.

No ano em que Kierkegaard nasceu houve uma ampla falência dos grandes latifundiários, pois tiveram que vender parte das propriedades para ajudar a liquidar as grandes dívidas contraídas. Parte de suas propriedades foram vendidas aos camponeses e chegaram até mesmo a promover cooperativas de crédito para financiar essas compras. Os aristocratas entendiam que somente uma demanda contínua pela compra de terras poderia manter os preços em alta e a valorização de suas terras. Mas com o crescimento econômico a partir de 1828 e a melhoria das condições, os próprios camponeses conseguiram organizar suas cooperativas para aquisição de terras e, desse modo reduziram a influência e sua dependência dos latifundiários.

Em 1830 os camponeses começam a se organizar politicamente e tentam melhorar a qualidade de vida por meio de reivindicações à coroa, pois a situação política ainda se mantinha inalterada18. Entre as reivindicações se destacavam as exigências de melhor educação no âmbito rural e as exigências de que os serviços militares, os quais recaíam apenas para a população camponesa, se estendessem também aos aristocratas.

Todavia, apesar desses esforços iniciais, os camponeses ainda eram fracos politicamente. Boa parte da esperança de melhorias almejada por estes novos proprietários de terras vinha da militância política do reformador social e teólogo Grundtvig (1783- 1872). Além

18 Conforme assinalou Julia Watkin em sua introdução histórica: “Assim, em 1830, embora tenha sido a “Idade de Ouro” da cultura, a consciência política nacional permaneceu inalterada, graças ao controle “paterno” do rei”.

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27 de ser conhecido por introduzir as ideias do romantismo alemão na Dinamarca dos anos de ouro, Grundtvig é também conhecido por sua militância pró-camponês, muito embora, curiosamente, também adotasse uma postura conservadora quanto à monarquia absoluta na Dinamarca do século XIX. Nesse sentido, vale ressaltar que Grundtvig não endossava o coro político dos movimentos liberais urbanos, principais opositores da coroa, sobretudo porque um dos líderes do movimento liberal era o teólogo racionalista H. N. Clausen (1793-1877), um antigo oponente em questões teológicas. Os movimentos liberais fundaram o Partido Nacional Liberal que foi, a rigor, o primeiro partido na Dinamarca.

De sua parte, Clausen tentou, sem êxito, aproximar politicamente os interesses dos liberais e o dos camponeses com o objetivo de obter dos membros dessa nova classe média em ascensão o apoio. No entanto, uma aproximação mais bem sucedida foi feita pelo político liberal e agitador das massas Orla Lehmann (1810-1870) ao discursar para os camponeses em 1838 e conseguir a simpatia de uma parte expressiva deles. Já em 1841, Orla Lehmann propôs, em outro discurso aos camponeses, que se unissem ao partido liberal para se opor ao absolutismo monárquico. A ideia de Lehmann apontava na direção do constitucionalismo e defendia que o absolutismo era responsável pelo atraso do crescimento econômico dos camponeses, com a imposição arbitrária de elevadas taxas e uma carga enorme de deveres. Por esse discurso, que insuflou os camponeses, Orla Lehmann foi visto como um inimigo da coroa, motivo pelo qual foi sentenciado a três meses de prisão e ao martírio. Mas os novos proprietários de terra passaram a simpatizar-se com as ideias liberais, de modo que, o descontentamento com a monarquia ficava cada vez mais forte. Agora, em consonância com as ideias liberais, os camponeses também reivindicam a implantação de um parlamento escolhido pelo povo, a exemplo do já existente em outros países, como a Inglaterra.

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28 aliavam seus discursos19 à agenda do reavivamento religioso-político, tais como Peter Hansen, Ramus Sorensen e J.A. Hansen. Suas pregações estavam cada vez mais preocupadas com a causa camponesa e temas políticos. Sorensen e Hansen, com a ajuda econômica de Orla Lehmann, foram coeditores de um novo jornal camponês denominado Almuevennen. Hansen20 foi, segundo Kimmerse, o primeiro político camponês moderno e foi conhecido como um grande pregador de temas sócio-religiosos no início dos anos 3021. Hansen criticou o que ele

denominava de ‘aristocracia de burocratas reais’ (Embedsaristokrati) e posteriormente, na

década de 1840, juntamente com outros simpatizantes, Hansen deu caráter revolucionário às suas questões, o que causou grandes desconfortos ao rei Cristian VIII e aos aristocratas.

Hansen e outros agitadores, ao defenderem suas ideias liberais contra o absolutismo e pró reforma tributária, conseguiram reunir grandes aglomerações em seus movimentos. Em 1845 estima-se que entre 7 e 8 mil camponeses estiveram presentes em Copenhague e ouviram com entusiasmo os discursos de Hansen e Sorensen. Este episódio trouxe receio aos grandes proprietários de terra e a políticos monarquistas.

No entanto, eram outras as questões que preocupavam o rei dinamarquês Christian VIII. Tratava-se do problema internacional da querela entre Dinamarca e Alemanha pela posse dos ducados de Slesvig e Holstein, cujos desentendimentos culminaram na guerra dos três anos em 1848, com expressiva derrota dos dinamarqueses. Antes, porém, de nos estendermos nesta importante disputa entre alemães e dinamarqueses, é preciso reconhecer que Christian VIII, por ser extremamente pressionado pelos aristocratas, deu uma resposta oficial ao movimento camponês por meio daquilo que ficou conhecido como ‘portaria camponesa’ (Bondecirkulaer)

19 Kierkegaard critica o pressuposto nuclear da ideologia político-religiosa quando ironiza: “no mundo, na

temporalidade, na agitação, na sociedade e na amizade diz-se: “Que absurdo que um único atinja a meta; é muito mais provável que vários a atinjam conjuntamente; e se somos muitos, a coisa será mais certa e ao mesmo tempo

mais fácil para cada um” KIERKEGAARD, 1986, p. 97.

20 Por sua oposição ao absolutismo monárquico, teve frustradas as suas expectativas de se tornar professor

universitário. Cf. KIRMMESE, 1990, p. 56.

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29 de novembro de 1845. A ‘portaria camponesa’ exigia que todas as reuniões para discutir os problemas dos camponeses deveriam solicitar prévia autorização das autoridades policiais e estava proibida a aglomeração com pessoas que não fossem imediatamente afetadas pelas questões discutidas. As autoridades foram instruídas a ficar atentas aos agitadores sociais que inflamavam os camponeses22.

Essas medidas recomendadas pela portaria de Christian VIII foram decisivas para selar de vez a união política entre liberais e camponeses. O jornal editado por Hansen criticou maciçamente a coroa e, dentro de duas semanas uma delegação de camponeses apresentou a Christian VIII uma petição assinada por dez mil camponeses. Contudo, o rei recusou-se a recebê-los. Assim, em 25 de Novembro de 1845, liberais e camponeses fizeram uma imensa reunião de massas na capital Copenhague, como forma de protesto à indiferença da monarquia23.

Em 1846 foi fundada a nova Aliança Liberal-Camponesa após mais um movimento de massas no distrito de Holbaek. Nesse mesmo ano foi fundado também a Sociedade dos Amigos

Camponeses, cujo objetivo era se associar para reivindicar causas comuns a liberais e aos novos

proprietários de terra. A Sociedade dos Amigos Camponeses ficou conhecida como sendo um amplo movimento de massas, cujos programas refletiam as demandas camponesas, mas com soluções da ideologia político-liberal. Entre as reivindicações que estavam na ordem do dia destacam-se: a transição de todas as fazendas para os regimes de auto propriedade, a responsabilidade universal para o serviço militar, da qual os aristocratas eram isentos, a criação de comissões para discutir as questões camponesas, a liberdade de comércio, tanto no campo

22 IDEM, pp. 55-58.

23 A todo este movimento Kierkegaard, já com seus 32 anos assistiu bem de perto. Em 1845 ele já havia escrito

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30 quanto na cidade, melhor educação popular e a confecção de uma livre constituição representativa. O ano de 1846, portanto, marca a ruptura entre os militantes rurais e a monarquia absoluta. Além dessa ruptura, o sucesso do nacionalismo alemão em Slesvig e Holstein e o simultâneo aumento do nacionalismo dinamarquês, especialmente entre a classe média liberal de Copenhague, acabariam por destruir as bases tradicionais do absolutismo real e lançar as bases para a sociedade de massa, ao se focalizar o plano social mais do que o político. Estes dois incidentes juntos foram os maiores responsáveis pelos movimentos de massa na Dinamarca, sobretudo na capital Copenhague, como nunca se havia visto.

Quanto a Slesvig e Holstein, havia um movimento no sentido de unir as referidas províncias à confederação alemã. A população do Slesvig, de maioria dinamarquesa, exigia uma proteção maior para o estatuto da língua dinamarquesa, que embora representasse a maioria, fora relegada a um status de segunda classe, como se fosse uma linguagem de camponês. Já a língua alemã era reconhecida como a língua oficial do Estado e era usada na maioria das escolas e igrejas conforme relata Kirmmese24. Liberais como Orla Lehmann e Clausen, e mesmo intelectuais como Grundtvig e Goldschmidt, além do conservador Heiberg, figuras proeminentes na Dinamarca, se sentiram atraídos pelos problemas que ocorriam nos ducados e pressionavam o rei para oferecer uma solução. Como a Dinamarca já havia perdido a região da Noruega no ano seguinte ao do nascimento de Kierkegaard, como lembrou Julia Watkin, em sua introdução histórica,25 os dinamarqueses se sentiam frágeis e não admitiam perder mais terras. O monarca se mostrava fraco e relativamente alheio aos movimentos nacionalistas. Se Christian VIII, por um lado, não queria perder territórios para a Alemanha, por outro, também não estava disposto a ceder às pressões dos liberais que se valiam sempre dos movimentos de massa para reivindicar a adoção da constituição representativa.

24 IDEM, p. 59.

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31 Acontece que, em pleno auge dos problemas internos representados com a união política entre liberais e camponeses, e a questão da possível perda dos ducados de Slesvige Holstein para a Alemanha, o rei Christian VIII falece justamente em 20 de Janeiro de 1848, no ápice dos problemas políticos. Quem assumiria seu lugar é o rei Frederico VII, menos estrategista que o pai e, politicamente mais fraco, segundo os estudiosos26.

Assim que morreu Christian VIII, os liberais, por meio de panfletos e publicações na imprensa insistiam em uma constituição representativa. Era a grande oportunidade do movimento liberal. Na mesma noite de 20 de janeiro de 1848 Clausen convoca em sua casa alguns militantes e organiza mais um movimento de massa para forçar o sucessor do falecido rei a ceder à constituição. Apenas oito dias depois, o novo rei Frederick VII cedeu às exigências e apresentou uma proposta constitucional. Mas os liberais não ficaram satisfeitos, pois o novo rei reservou para si a prerrogativa de escolher os representantes dos ducados, não ofereceu uma solução para a questão nacionalista de Slesvig-Holstein e ainda introduziu na constituição dispositivos que o permitiriam controlar a cena política nos bastidores27.

Neste quadro, em 21 de março de 1848, uma multidão de aproximadamente quinze mil pessoas foram recebidas pelo novo monarca. Elas reivindicavam que o povo elegesse representantes para votar a questão constitucional. O rei Frederico VII, temendo não se manter no poder, além de estar receoso quanto ao cenário de movimentos de massa pró-democracia que se alastravam como uma onda por toda a Europa, foi forçado a ceder e demitir seus ministros, inclusive o grande físico H. C. Orsted (1777-1851), figura expoente dos anos de ouro. Dessa forma a revolução de 1848 na Dinamarca ocorreu de maneira pacífica.

Entretanto, quanto à questão dos ducados Slesvig-Holtein, o rei Frederico VII optou por não ceder a quaisquer reivindicações, pois havia ficado extremamente irritado com o tom das

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32 exigências. Assim, a população dos ducados, diante da recusa do rei, elegeu um governo provisório e entrou em guerra civil contra a região da Jutlandia, de onde era a família de Kierkegaard. Essa guerra foi conhecida como guerra dos três anos. Com o apoio da Alemanha e Prússia aos ducados, a Jutlândia amargou expressivas derrotas. Somente em 1851, quando a Prússia assinou um acordo de paz com a Dinamarca, essa situação foi resolvida e as forças militares de Slesvig e Holstein entraram em colapso e se renderam.

A partir de 24 de Março de 1848 o ministério parlamentar dinamarquês, fortemente influenciado pelos liberais, proporcionou ampla liberdade de imprensa. Essa liberdade foi útil aos liberais para propagar suas ideologias, agora com uma nova missão. Tratava-se de manipular e alijar do processo político a multidão de camponeses. Bastou os liberais ascenderem ao poder para que ficasse claro que a gestão proposta por eles atendia apenas aos seus próprios interesses. Os camponeses teriam se sentido, por assim dizer, como uma espécie de “massa de manobra”.

Desse modo, como eles não se sentiam mais representados e perceberam a tentativa de excluí-los da cena pública, rompem a aliança e a sociedade anteriormente firmada com os liberais e começam a lançar seus próprios candidatos. Os camponeses conseguiram, assim, eleger muitos homens comuns e derrotaram nas eleições figuras bastantes cotadas para a vitória, como o teólogo liberal Clausen. A versão final da constituição foi amplamente aprovada e assinada por Frederico VII em 05 de julho de 1849, data em que a Dinamarca se tornou uma monarquia constitucional com sufrágio universal masculino, e ano em que Kierkegaard publica sua obra Doença para a Morte. Essa mudança revolucionária do absolutismo monárquico para o poder dos homens comuns se estabilizaria e se manteria nos anos subsequentes.

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33 no cenário político e religioso eram amplamente conhecidos por todos, inclusive pelo nosso autor. Foi notadamente à luz dos fatos da década de quarenta que Kierkegaard lançou, exceção feita a uns poucos textos do final da década de 30, seus primeiros diagnósticos da cultura e os ratificou a partir de 1848, mesmo ano em que na Alemanha Karl Marx escrevera boa parte de sua filosofia política com um programa expressivamente distinto daquele do filósofo dinamarquês, como percebeu Malantchuk28.

Os movimentos de massa, os engajamentos em causas políticas e a perseguição à imprensa que acabara de surgir em Copenhague constituem a atmosfera da Dinamarca de Kierkegaard. O filósofo presenciou inúmeros movimentos políticos que contavam com as mobilizações das massas. A multidão de pessoas era composta, em sua maioria, pelos camponeses, cuja religião oficial professada era o protestantismo de confissão luterana. Para Kierkegaard, esta cristandade envolvida com os assuntos mundanos despreza o indivíduo e tende a valorizar enormemente a quantidade de pessoas. Ao assim proceder, deixam de se preocupar com a própria decadência de sua religiosidade, subvertem o caráter individual da prestação de contas para com Deus e desconhecem a necessidade de tornar-se si mesmos. Trata-se de uma religião do rito e de uma igreja deTrata-sencaminhada.

Os tópicos seguintes, a julgar pela dinâmica deste contexto aqui brevemente enunciado, pretendem oferecer uma análise das ideias fundamentais que permeiam a temática da multidão e do Indivíduo singular, bem como a problematização sobre o lugar da ética no interior deste processo, tal como refletido por Kierkegaard. Este pano de fundo histórico, portanto, se presta à tarefa de apresentar o contexto de sua produção intelectual e de situar sua interlocução com os eventos locais refletidos nos textos a serem trabalhados nos desenvolvimentos subsequentes.

28 Malantschuk nota que Kierkegaard, no mesmo ano em que Marx publica o Manifesto Comunista, estabelece um

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2.2Indivíduo singular e Multidão: A colocação do problema.

É relevante chamar a atenção, antes de tudo, para a ideia do Indivíduo singular que aparece no pensamento de Kierkegaard como uma categoria crucial, tão própria à sua filosofia. Ele mesmo chama atenção para a importância desse tema ao argumentar:

Se a questão do ‘Indivíduo’ fosse para mim uma futilidade, poderia deixa-la cair, e

até o faria com prazer e vergonha para mim se não estivesse disposto a isso com toda a atenção possível. Mas não é o caso; para mim, como pensador e não pessoalmente, a questão do Indivíduo é decisiva entre todas. (KIERKEGAARD, 1986, p.105).

A temática do Indivíduo singular perpassa todas as obras pseudonímicas de uma maneira ou de outra29, mas é, sobretudo, nas Notas sobre o Indivíduo de 1847 que a questão aparece de uma maneira ainda mais elaborada. Nesses textos Kierkegaard faz um balanço de sua atividade como escritor e discute, com todo seu leque conceitual, suas posições a partir de sua própria perspectiva.

No entanto, a própria tradução do conceito central desta pesquisa, Den Enkelt, se constitui um problema para ser traduzido de maneira acertada, haja vista que não há um sentido unívoco de tradução. Den Enkelt, conforme observou André Clair, pode ser traduzido por: o indivíduo, o único, o isolado, o ser (ou existente) singular30. Clair opta por essa última tradução, mas lembra que Bohlin, Vergote e J. Wahl prefeririam traduções diferentes31. Para os propósitos desta dissertação convencionaremos traduzir Den Enkelt como Indivíduo singular, para se referir à categoria trabalhada por Kierkegaard. Estamos seguindo a linha de Clair. Com o emprego do termo ‘Indivíduo singular’ pretendemos pôr em evidência tanto o caráter individual de cada um no interior da sociedade como seu aspecto bizarro, distinto, simultaneamente solitário diante de Deus. O Indivíduo singular é uma categoria e pode comportar um existente

29“cada uma das minhas obras pseudônimas apresenta de uma ou de outra maneira a questão do ‘Indivíduo’”.

KIERKEGAARD, 1986, p. 106.

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35 extraordinário, ao passo que também pode ser qualquer um isoladamente, mas não é o indivíduo repetido em meio à multidão. Isto é, optamos por Indivíduo singular por entendermos que esta tradução satisfaz as características, ainda que de maneira não exaustiva, que levaram o filósofo dinamarquês a pensar esta categoria. Com a ideia de Indivíduo singular pretendemos destacar seu contraponto à multidão, e simultaneamente enfatizamos sua condição excepcional, vale dizer, extraordinária na sociedade, na medida em que se diferencia do indivíduo comum.

Por conseguinte, empregaremos de maneira exclusiva a palavra ‘indivíduo’ para

expressar aquilo que Kierkegaard queria dizer com o termo individ, com o propósito de se referir ao sujeito avulso, a cada um isoladamente, dissociado da generalidade e repetido no interior das massas. Embora essas sejam as convenções, doravante adotadas aqui, não pretendemos negligenciar a dificuldade em trazer para nosso idioma conceitos filosóficos tão específicos, e ao mesmo tempo com uma polissemia tão díspar como essas. Nosso ponto,

contudo, é sinalizar de maneira clara que usaremos ‘Indivíduo singular’ para se referir a Den

Enkelt, a categoria cristã, tal como explicitaremos. Usaremos também a palavra ‘indivíduo’

para se referir a individ, ou seja, aquele existente específico sem o aporte das abstrações de classe ou outro tipo de grupo. Este indivíduo pode ou não se tornar o Indivíduo singular, pode ou não se tornar massificado.

Dito isto é preciso notar que embora tenha passado desapercebidamente tanto de seus contemporâneos quanto de boa parte dos estudiosos de seus temas; segundo Kierkegaard, a primeira vez que a categoria do Indivíduo singular aparece é no chamado Dois discursos

edificantes de 1843, cujo propósito era estabelecer a duplicidade dialética com a obra Ou/ou

(Enten-Eller)32. Mas o tema sequer foi notado por seus contemporâneos, enquanto a outra ponta da dialética, isto é Ou/ou, fora amplamente lida33. Já o texto Dois discursos edificantes, quando

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36 comparado à recepção de Ou/ou, não teria passado de “uma florzinha à sombra da grande floresta”34 É nesse contexto que o nosso autor faz questão de remeter seus leitores a uma categoria cuja certidão de nascimento fora dada por Sócrates no interior do mundo pagão, mas que seria retomada pelo cristianismo,35 tal como Kierkegaard o entende.36 A noção de Indivíduo singular é tomada “... não no sentido da distinção ou do talento especial, mas no sentido em que todo homem, sem exceção, o pode e deve ser ...”37. A categoria do Indivíduo singular se inscreve na reflexão do pensador de Copenhague como um corretivo religioso pelo qual, segundo expressa Kierkegaard, devem passar a época, a história, a humanidade38. Ou seja,

qualquer um, em qualquer momento, em qualquer circunstância histórica, pode e deve se tornar Indivíduo singular, sem que se tenha algum talento especial aparente. Trata-se de uma categoria extensiva a todas em qualquer momento, sem qualquer tipo de distinção. Esta categoria quer, portanto, realocar os indivíduos (individ) diante de sua condição espiritual originária. Quer resgatar sua identidade perdida. O Indivíduo singular é uma categoria destacada por Kierkegaard para pensar o indivíduo excepcional, diferente do anônimo e da série, da padronização e do usual.

Tornar-se Indivíduo singular é um processo em constante vir a ser que procura assumir sua autenticidade existencial. Cabe salientar, não obstante, que a categoria da multidão, por sua vez, aparece no sentido oposto ao dessa referida autenticidade, visto que afasta o indivíduo de sua condição originária. Então, é importante se ater, um pouco mais, ao estatuto desta categoria da multidão e analisá-la por oposição à categoria do Indivíduo singular.

34 IBIDEM, 1986, p. 34.

35Segundo Kierkegaard, a categoria do Indivíduo singular foi utilizada a primeira vez “...por Sócrates para

dissolver o paganismo. Na cristandade, pelo contrário, será empregue pela segunda vez, para fazer dos homens (os cristãos), cristãos. IBIDEM, 1986, p.113.

36 Kierkegaard desenvolveu, no segundo percurso de sua escrita um conceito que ajuda a pensar o autêntico

cristianismo preconizado em seus textos. Trata-se da ideia de Crístico (det Christelige). Assim como Platão falava do bem idealmente, Kierkegaard quer comparar o cristianismo que se vive na Dinamarca de seu tempo com um cristianismo ideal. O Crístico é uma forma filosófica de pensar o problema de tornar-se cristão.

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37 A ideia de multidão, no pensamento kierkegaardiano, não é sustentada a partir de um conjunto de grupos sociais e, também, não pretende se referir a uma determinada classe. Tampouco tem necessariamente relação, segundo a nossa leitura, com a quantidade de pessoas. Trata-se aqui de uma categoria cujo teor é mais qualitativo do que propriamente quantitativo. Indivíduo singular e multidão, por conseguinte, são duas faces de uma mesma moeda, a saber, da tarefa (opgave) de tornar-se si mesmo. A primeira é uma categoria cristã por excelência, enquanto a segunda é anticristã. Mas essas categorias dizem respeito à condição existencial dos indivíduos e não os pensa numericamente. Logo, um único indivíduo isolado pode estar em uma ou em outra categoria, porquanto são categorias da interioridade, não é necessário levar em conta, portanto, a quantidade de pessoas.

Nesse sentido, alguém pode, por exemplo, ser visto no meio de uma multidão, mas pode estar na categoria do Indivíduo singular, enquanto alguém pode, da mesma forma, estar só, isolado, e possuir uma interioridade massificada. Os sinais, porém, que ajudam a identificar um ou outro caso podem ser sinais que são externos e podem se verificar por meio da postura do indivíduo diante da existência. O indivíduo pode, por exemplo, ser iludido e depositar todo o seu anseio em engajamentos puramente temporais. Ou pode ser reconhecido por suspender teleologicamente a ética, como verificaremos no capítulo seguinte. O que pretendemos destacar é que se inserir em uma ou em outra categoria acontece no âmbito da interioridade, mas os sinais podem ser reconhecidos muitas vezes por características da vida cotidiana, por sinais externos, portanto. Se assim não fosse, seria vedado refletir sobre a condição puramente interior de cada um, visto que não é possível o acesso imediato claramente ao que se passa na interioridade.

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38 estético, o ético e o religioso. Com eles é possível pensar o problema da interioridade e, por extensão, o das modalidades categoriais, ou estádios da existência, em que se pode estar inserido.

Ao pensar sobre essas categorias, isto é, a do Indivíduo singular e a da multidão, a tarefa de Kierkegaard se equivale a ação de um missionário às avessas. Com essa imagem a ideia é notar que enquanto o missionário penetra no paganismo com o intuito de endereçar-lhes uma mensagem, o dinamarquês ilustre também vê sua missão como a de um missionário, mas com propósitos distintos39. Sua missão consistiria em acessar a cristandade dinamarquesa e convocar

os homens para tornar-se si mesmos. Faz-se necessário proceder assim porque, segundo Kierkegaard, “‘o Indivíduo singular’ é a categoria cristã decisiva, e sê-lo-á para o futuro do

cristianismo”.40 O que se percebe nesse contexto é a crítica de Kierkegaard à cristandade41 de

seu país, preocupada em satisfazer a multidão, o tempo, e a respeitável assembleia de seus adeptos, cuja característica é a de alienação diante do autêntico cristianismo. Ele entende que é preciso reintroduzir o cristianismo na cristandade e uma das formas de fazer isso é por meio da crítica à multidão.

Ademais, Kierkegaard faz questão de dizer que a categoria do Indivíduo singular ainda militava em outra frente, pois segundo ele “foi com a categoria de ‘o Indivíduo’ (Den Enkelt) que os problemas visaram, no seu tempo, o Sistema, quando tudo na Dinamarca era invariavelmente o Sistema...”42. O filósofo pretende se opor aqui à excessiva sistematicidade presente em determinados pensadores do idealismo alemão, entre eles certamente Hegel, que no afã de mostrar o universal, acaba por suprimir o particular, já que o importante era pensar o

39Kierkegaard diz: “não é a categoria do missionário para uso dos pagãos a quem anuncia o cristianismo, mas é a

categoria do missionário no próprio seio da cristandade, onde quer introduzir o cristianismo. Quando ‘o

missionário’ chegar, utilizará esta categoria” IBIDEM, 1986, p. 113. 40 IBIDEM, 1986, p. 111.

41Kierkegaard definiu a cristandade como “... uma caricatura do verdadeiro cristianismo ou um imenso conjunto

de erros e ilusões onde se mistura uma reduzida e fraca dose de cristianismo autêntico”. IBIDEM, 1986, p. 73.

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39 Sistema (Systemet) e não o indivíduo. Com a categoria do Indivíduo singular, Kierkegaard também pretende trazer à tona uma noção esquecida pela filosofia alemã vigente na Dinamarca de seu tempo, mas que precisa ser recuperada, a saber: o aspecto existencial e subjetivo da vida. O Sistema não pode suprassumir o indivíduo. Por isso, a categoria do Indivíduo singular se opõe à noção idealista de Sistema na medida em que este se esquiva de pensar a existência e se permite divagar em abstrações filosóficas distante da vida efetiva. Para Kierkegaard, importa pensar a efetividade da vida, ou se preferirmos, seu caráter existencial, não a categoria abstrata, ao modo de Hegel, e seu jogo lógico.

Aliás, assumir a condição de Indivíduo singular frente à generalidade é uma tarefa existencial. Isso significa que essa categoria não é dada a priori. Pelo contrário, constitui um processo de interiorização, na medida em que é preciso tornar-se um eu (selv). Acontece que cumprir essa tarefa não é algo que se faça en masse ou no interior da categoria da multidão; e, não é, tampouco, por meio de engajamentos temporais e pela militância na cena pública. Tudo isso, na ótica kierkegaardiana, acaba por escamotear a condição solitária e de autorresponsabilidade do cristão. Desse modo, no interior da mentalidade da multidão o que vinga é a inautenticidade, visto que prevalece o numérico e o anonimato sobre o individual. Antes, porém, cumprir a tarefa de tornar-se si mesmo é constitutivo de um processo solitário e individual de prestação de contas para com Deus43. Ou seja, para se tornar um autêntico eu, os anteparos sociais, o público e a generalidade devem ser relegados ao seu devido lugar, porquanto não podem ter um papel prioritário na vida.

No que diz respeito à condição existencial do eu, Kierkegaard insiste que somente um único atinge a meta44. Com esta metáfora que remete ao corpus paulino45, o pensador pretende sustentar que a meta da tarefa de se tornar um eu só pode ser atingida por essa única pessoa de

43 IBIDEM, 1986, p. 113. 44 IBIDEM, 1986, p. 97.

Referências

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