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A morte da morte como condição para o desespero do eu

2- Capítulo 1: Fracasso no processo de tornar-se si mesmo: A categoria da multidão

2.5 A morte da morte como condição para o desespero do eu

Por muitas vezes, como salientado, Kierkegaard se propôs a pensar o problema de tornar-se cristão por meio de pseudônimos que se recusavam a ser identificados como tais. Esse foi o caso, por exemplo, do pseudônimo autor de Temor e Tremor de 1843 e do autor das Migalhas Filosóficas de 1844. Contudo, em 1849, após ter passado pelas inúmeras experiências com os movimentos de massa, a imprensa e a política, e depois de haver encerrado oficialmente o uso de pseudônimos com o Pós-escrito às Migalhas filosóficas de 1846, surpreendentemente, como já dito, Kierkegaard decide retomar a escrita pseudonímica e elabora aquela obra que muitos a considerariam, mais tarde, como sendo o seu texto mais bem escrito. No início ele cogitou escrever este texto como uma obra veronímica, mas nas vésperas de publicá-lo mudou de ideia e criou o pseudônimo Anticlimacus, (mas logo depois mudou a grafia para Anti- Climacus), o autor personagem que daria voz ao texto. Com isso, Kierkegaard está retomando a escrita pseudonímica, mas agora o faz em um segundo percurso, num contexto um tanto quanto distinto.

Em Doença para a Morte, diferentemente dos pseudônimos do primeiro percurso, Anti- Climacus se apresenta como um cristão no mais alto sentido do termo, e é dessa perspectiva que se propõe a fazer filosofia, como chamou atenção Arnald Come82. O público alvo, assim como fora no caso de Temor e Tremor, de novo é a cristandade dinamarquesa e sua práxis no interior da vida cristã. A expressão Doença para Morte, que dá o título à obra, remete ao texto bíblico de João, capítulo 11, onde Jesus fora chamado para curar Lázaro; entretanto, como Jesus demorou-se por quatro dias, o doente veio a falecer. Ao informar a Jesus do ocorrido, obtiveram como resposta a surpreendente afirmação de que não era preciso se preocupar, pois a doença de Lázaro não era para morte. A partir deste contexto, Anti-Climacus, tal como um médico da

82“assim, esforçar-se para alcançar alguma medida de auto atualização, i.e. “tornar-se si mesmo”, é um ato

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alma, ou melhor, como um psicólogo83, se propõe a refletir sobre qual o estatuto então de uma doença mortal, para a qual nem mesmo a morte física seria capaz de sobrepujá-la.

Pois bem, a doença mortal que Anti-Climacus quer discutir não se equivale de maneira alguma à doença pela qual se morre. Se para o cristão a morte não é mais do que uma passagem para a vida, nenhum mal físico pode ser considerado uma doença mortal. Porém, o que Anti- Climacus pretende chamar a atenção é para o fato de que, a rigor, doença mortal aqui é um mal

que termina pela morte, sem todavia morrer. Isto é, a doença mortal é o desespero “porque, bem

longe de se morrer dele, ou de que esse mal acabe com a morte física, a sua tortura, pelo contrário, está em não se poder morrer, como se debate na agonia o moribundo sem poder se

acabar”84. Ou melhor, a doença mortal é o desespero que se desespera inclusive de nem sequer poder morrer85.

O desespero da condição humana está em justamente se morrer a morte86. O que significa que o desespero toma proporções tais que nem mesmo a morte física pode representar um porto seguro para se escapar a ele. Morrer é tudo que o desesperado quer para pôr fim à sua condição, contudo isto lhe é vedado, porque com o desespero, a própria morte física morre enquanto esperança de fazer cessar a sua condição de desesperado. Daí a ideia de morrer a morte, que aponta, neste sentido, para a morte da própria morte enquanto possibilidade de escapar a este desespero mortal.

Entretanto, o desespero enquanto doença para a morte é apenas um efeito colateral de uma causa bem maior. Mas antes mesmo de se ater a esta causa, é preciso dizer, ainda que brevemente, algumas palavras acerca da natureza do desespero. O fato é que, embora o

83 Psicólogo aqui não se refere evidentemente à noção contemporânea pós-freudiana do termo. Mas não há

consenso sobre o significado estrito do termo. Enquanto Álvaro Valls entende o termo com uma acepção próxima do que hoje denominaríamos antropologia filosófica, Merold Westphal o entende como uma espécie de fenomenologia, ainda que antes da fenomenologia propriamente dita. Cf. VALLS, 2013, p. 35. Cf. WESPHAL, IKC 19, p. 40.

84 KIERKEGAARD, 2010a, p. 31. 85 IDEM, p. 31.

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desespero constitua, por um lado, a desvantagem de ser a nossa pior miséria, paradoxalmente é, por outro, uma vantagem que nos diferencia dos animais; sinalizando a nossa verticalidade infinita, bem como a nossa espiritualidade sublime, o que aliás nos diferencia muito mais do que o andar de pé87. Assim, o desespero é dialeticamente desvantagem e vantagem. Ora, é uma grande desvantagem, visto que desesperar denuncia uma condição de discordância elevada no mais alto grau com o criador. Mas é também uma vantagem, na medida em que a capacidade de desesperar-se, elevada ao mais alto grau, se aproxima da possibilidade de poder salvar-se. Expliquemos melhor esta dialética: para retomar o fio condutor do nosso argumento, desesperar-se aponta, como assinalamos, para um outro problema, de resto ainda mais profundo. Trata-se do fracasso do indivíduo em se tornar um eu. Ora, mas o que exatamente é o eu? Anti-Climacus explica:

O homem é espírito. Mas o que é o espírito? É o eu. E o eu? O eu é uma relação que não se estabelece com qualquer coisa de alheia a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se desta relação para a própria interioridade. (KIERKEGAARD, 2010a, p. 25.)

Para Anti-Climacus o homem “é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de

eterno, de liberdade e de necessidade, é em suma, uma síntese”88. Mas se o homem é uma síntese isso implica dizer, e isso é importante, que há uma relação entre dois termos. A própria relação entre os elementos da síntese constitui, ela mesma, um terceiro termo que, ou foi estabelecido por si mesmo, ou por um outro. Anti-Climacus não discute a primeira opção e se apressa em observar que “se é por um outro, a própria relação é também uma relação com quem

a estabeleceu”89. Ora, a esta relação, com este outro que a estabeleceu, ele define como o eu do homem90. Dito de outro modo, o eu do homem é a relação entre os termos da síntese, relação essa, que se constitui ela mesma em um outro termo, e que por sua vez se relaciona com o seu

87 IDEM, pp. 27- 28. 88 IDEM, p. 25. 89 IDEM, p. 26. 90 IDEM, p. 26.

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autor. Desse modo, o desespero é um sintoma que denuncia um fracasso na síntese. Desesperar é, portanto, falhar na tarefa de se tornar um eu diante de seu autor, a saber, diante de Deus91. Vejamos mais de perto como convida Anti-Climacus92.

Quando o homem se desespera quer libertar-se do seu eu, daquilo que efetivamente é,

“para se tornar um eu da sua própria invenção”.93 Ao tentar, porém, se inventar enquanto indivíduo, o que a rigor se está tentando fazer é fugir ao desespero de não se ter tornado um eu autêntico. Mas o próprio ato de se poder desesperar revela a presença da eternidade no homem, o que impede o desespero de destruir o eu. Então, pode-se dizer que, para Anti-Climacus “sem a eternidade em nós próprios não poderíamos desesperar, mas caso ele pudesse destruir o eu,

também não haveria desespero”94.

Com efeito, por mais que o desesperado possa insistir em sua empreitada de fracassar no projeto de tornar-se si mesmo95, de se reinventar e de fracassar tão completamente que não fique sequer vestígios de seu eu, a eternidade presente em cada indivíduo acabará por revelar o seu estado desesperado96. A eternidade presente no homem é bastante permissiva, na medida em que deixa o indivíduo ter e ser dentro de um leque bastante amplo, ainda que preserve uma única condição, qual seja, a sua garantia sobre ele, de retê-lo no seu eu e de, por fim, lembrá-lo

91 Como esclarece Merold Wesphal, a tarefa de se tornar um eu é essencialmente diante de Deus, embora também

tenha uma dimensão social da autorrealização do eu. Trata-se de um aspecto vertical e essencial, mas também de

um aspecto horizontal e relativo, ou secundário de subjetivação, que não pode ser massificada: “o eu é

essencialmente e absolutamente relacionado a uma outra pessoa, Deus, e em algum sentido essencialmente, ainda que relativamente, relacionado a muitas outras pessoas, a sociedade, cuja interação constitui o estádio ético que a vida religiosa procurou eliminar ou excluir (mais do que meramente relativizar) mas é assim apenas quando ela se equivoca em relação a si mesmo” WAPHAL, IKC 19, p. 48 e 49.

92 Anti-Climacus, em uma dinâmica que lembra a Fenomenologia do Espírito de Hegel, sempre faz este movimento

de analisar o desesperado de seu próprio ponto de vista e, em ato contínuo convida o leitor a olhar mais de perto. Assim, o autor pretende fazer uma análise mais aprofundada onde o verdadeiro problema de fundo vem à tona, problema que o desesperado ignora, mas que Anti-Climacus se incumbe de providenciar o real diagnóstico.

93 KIERKEGAARD, 2010a, p. 34. 94 IDEM, p. 34.

95 A definição do eu que não conseguiu se tornar ele próprio enquanto ‘falha’ é fundamental como notou John Glenn: “Esta definição é fundamental para a completa exploração da individualidade através de todo o trabalho. A ‘Doença para a Morte’ – que Kierkegaard identifica como desespero, e também mais tarde como pecado – é

uma doença que afeta toda a dimensão do eu. Ela é uma falha da vontade em se tornar o eu que verdadeiramente

se é” GLENN JR. IKC 19, p. 5

96 A propósito disso Kierkegaard diz “Quem desespera não pode morrer; assim como um punhal não serve para

matar pensamentos, assim também o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade do eu,

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da sua condição de desesperado.97 Esta condição de desespero é universal e se aplica aos indivíduos quase que sem exceção, visto que “não é ser desesperado que é raro, o raro,

raríssimo, é realmente não o ser”98.

E para aqueles que acham que não são desesperados, como supõem milhares de milhões de homens, é preciso lembrar que, não ter consciência de o ser, é precisamente uma forma de desespero99. Com efeito, ser desesperado tem a ver com a inconsciência que a multidão tem de seu destino espiritual100. É bem verdade que “... a maior parte das pessoas vivem sem grande consciência do seu destino espiritual... e daí toda essa falsa despreocupação, essa falsa satisfação em viver, etc., que é o próprio desespero”.101 Acontece que esta ignorância acerca do destino espiritual e da condição eterna se deve, em grande parte, à responsabilidade, ou melhor, à não responsabilidade daqueles que se propõem a conduzir as multidões. Anti- Climacus está denunciando estes que finalmente deveriam dizer:

...ai de nós! – que nos encontremos e que se entretemos as multidões com tudo, exceto com aquilo que importa! Que as arrastam a desperdiçar a sua vida no palco da vida sem nunca lhes recordar essa beatitude! Que as conduzem em rebanhos... enganando- as em vez de as dispersar, de isolar cada indivíduo, a fim de que sozinho se consagre a atingir o fim supremo; o único que vale que se viva e que tem com que alimentar toda uma vida eterna. KIERKEGAARD, 2010a, p. 43.

O que leva as multidões a se alienar de seu destino espiritual e, vale dizer, de seu quadro de desespero é, em grande medida, a ação destes diretores de massa, tais como já haviam sido denunciados nas Notas sobre o Indivíduo, que conduzem as pessoas na categoria da multidão como rebanhos. Estes que são massificados102 não só desconhecem sua condição de desespero, como não conseguem se isolar para finalmente atingir o fim supremo de se tornar um eu. Ora,

97 IDEM, pp. 34 - 35. 98 IDEM, p. 38. 99 IDEM, p. 38. 100 IDEM, p. 41. 101 IDEM, p. 42.

102 “O problema da cultura de massa constantemente preocupou a Kierkegaard durante o período que

imediatamente precedeu a escrita de Doença para a Morte e finalmente emergiu também do conjunto da segunda

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é bem verdade que o eu “não é dessas coisas que o mundo dê importância...”103. Mas ser ou não desesperado é algo extremamente relevante. Para ser mais exato, no fim das contas, somente importará saber quem foi ou não desesperado. Daí o engano da multidão, pois:

... esvaziada a ampulheta, a ampulheta terrestre, reduzidos a silêncio todos os ruídos do século, acabada a nossa agitação febril e estéril, quando em redor tudo for silêncio, como na eternidade – homem ou mulher, rico ou pobre, subalterno ou senhor, feliz ou mal aventurado, quer a tua cabeça tenha suportado o brilho da coroa ou que, perdido entre os humildes, não tenhas tido mais do que as penas e os suores dos dias, quer a tua glória seja celebrada enquanto durar o mundo ou esquecido sem nome, anonimamente sigas a multidão inumerável; quer o esplendor que te rodeou tenha ultrapassado qualquer descrição humana, ou os homens te tenham aplicado a mais dura, a mais aviltante das condenações, quem quer tenhas sido, a ti como a cada um dos milhões dos teus semelhantes, a eternidade de uma só coisa inquirirá: se a tua vida foi oi não de desespero. (KIERKEGAARD, 2010a, pp. 43- 44.)

Se a vida foi ou não de desespero é crucial, visto que todo resto é secundário. O mundo dá um valor infinito a coisas absolutamente indiferentes104. Não obstante, o que está em jogo aqui são os problemas existenciais mais significativos que podem ocupar o interesse de alguém. Trata- se de colocar em evidência (para uma vez mais remeter ao que dirá mais tarde Tillich), aos problemas de preocupação última, agora refletidos em Doença para a Morte. Porque, conforme prossegue Anti-Climacus: “... se a tua vida não foi senão desespero, que pode então importar o resto! Vitórias ou derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te conhece como seu, ela não te conheceu, ou, pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu de desespero!”105

Por isso, seja como for, o eu que não se torna si mesmo acaba por permanecer, sabendo- o ou não, vítima da doença mortal. As ocupações humanas prendem o indivíduo na temporalidade e, ao tentar compreender os rumos do mundo, se prende à categoria da multidão, já que é muito mais simples ser como os outros do que ousar ser si próprio106. Nesse sentido, muitos desesperados são absolutamente bem sucedidos e são extremamente bem vistos pela

103 KIERKEGAARD, 2010a, p. 49. 104 IDEM, p. 50.

105 IDEM, p. 44. 106 IDEM, pp. 50- 51.

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sociedade, pois se apresentam de forma tal que se encaixam perfeitamente naquilo que o corpus social espera deles. Alguns gravam seus nomes na história, sem, contudo, se tornarem um eu autêntico diante de Deus107.

Já o desesperado, de seu ponto de vista, pensa se desesperar por causa das adversidades externas a si. O desesperado pensa que conhece o real motivo de seu desespero. Ele poderia, por exemplo, achar que se desespera por não ter se tornado César. No entanto, o verdadeiro motivo de sua condição não é por não ter se tornado César. Quando não se alcança o objeto de seu desejo, o desesperado quer libertar-se de seu eu a todo custo, uma vez que “não pode suportar ser um eu que não deveio”108. Então, a rigor, não é exatamente pelo fato de não se ter tornado César a razão de seu desespero. Antes, o desespero é o motivo de fundo pelo qual lhe é insuportável não poder libertar-se do seu eu109. Isso porque, ainda que sem o saber completamente, o desesperado pretende, ao fim e ao cabo, falhar na tarefa de tornar se si mesmo e se separar da relação com seu autor, ainda que o faça, como enfatizamos, sem consciência de o fazer. Nas palavras de Anti-Climacus:

este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele não é... o que ele quer, com efeito, é separar o seu eu de seu Autor. Mas aqui ele falha, não obstante desesperar, e apesar de todos os seus esforços do desespero, este Autor permanece o mais forte e constrange-o a ser o que ele não quer ser. KIERKEGAARD, 2010a, pp. 33- 34.

É, por isso, que ao tentar libertar-se de si, o homem quer inventar um novo eu. Daí a falha no processo de subjetivação. Todavia, tais tentativas nem sempre são conscientes. Muitos não se considerariam desesperados, mas saiba-o ou não, permanecem com o mesmo

107 Assim, na passagem onde Anti-Climacus diz: “Porque o século, como é costume dizer-se, não se compõe afinal

senão de pessoas desta espécie, isto é, devotadas às coisas do mundo, sabendo usar os seus talentos, acumulando dinheiro, hábeis em prever etc., o seu nome talvez passe à história, mas terão sido na verdade eles próprios? Não, porque espiritualmente não tiveram um eu...”. IDEM, p. 52.

108 IDEM, p. 32. 109 IDEM, p. 32.

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diagnóstico110. O desespero será tanto maior quanto maior for a sua consciência de o ser. Mas ser mais desesperado, neste caso, pode apontar para o caminho adequado para deixar de sê-lo, porquanto está a um passo de perceber o seu estado.

Já aqueles que ignoram completamente sua condição de desespero são os chamados por Anti-Climacus como “filisteus” que sempre “vivem no curso habitual das coisas em uma certa soma banal de experiências (e nesse caso) que importa que seja negociante de vinhos ou primeiro-ministro?”111. Mas tanto aqueles que têm consciência de seu desespero quanto os que o ignoram, colocam em curso o próprio esquecimento de si. Uma das formas de se esquecer a si próprio é se tornar um indivíduo inserido na categoria da multidão, se tornar um número a mais, alguém confundido em um rebanho, tal como denuncia Anti-Climacus:

A comtemplar as multidões à sua volta, a encher-se com ocupações humanas, a tentar compreender os rumos do mundo, este desesperado esquece-se a si próprio, esquece o seu nome divino, não ousa crer em si próprio e acha demasiado ousado sê-lo e muito mais simples e seguro assemelhar-se aos outros, ser uma imitação servil, um número, confundido no rebanho. (KIERKEGAARD, 2010a,pp. 50-51.)

Perder-se no interior do rebanho, assemelhando-se aos outros e não passar de um mero número, revela uma subjetividade que está presa à categoria da multidão e esqueceu-se a si mesma. Nota-se aqui, uma vez mais, como Kierkegaard, por meio deste pseudônimo, está disposto a pensar o fracasso do processo de se tornar um Indivíduo singular, fracasso este que se dá pela falha na relação entre o eu desesperado e o seu Autor. Isso não significa que o desesperado não seja um cristão. Mas o problema é que ele é cristão na cristandade tal como seria pagão no paganismo e holandês na Holanda112. Dito de outro modo, são cristãos tranquilizados pelos pastores quanto à sua salvação113. Com efeito, esses desesperados no interior da cristandade cometem a loucura de supor que “a fé e o bom senso nos podem nascer

110 IDEM, p. 46. 111 IDEM, p. 59. 112 IDEM, p. 77. 113 IDEM, p. 78.

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tão naturalmente como os dentes, a barba e o resto”114. Trata-se, nesse sentido, de cristãos no interior na cristandade massificada, que não fazem mais do que “construir castelos no ar e bater-

se sempre contra moinhos de vento”,115 na medida em que não identificam o problema real que dá causa à sua condição.

O desesperado pode ser inclusive um “homem cultivado, casado, pai de família, um funcionário com futuro, um pai respeitável, de comércio agradável, muito terno para com a sua mulher e seus filhos, a solicitude em pessoa para com eles. E também cristão? Mas certamente,

a seu modo...”116 mesmo assim, muitas vezes é tomado por uma necessidade estranha de

solidão, “tão vital para ele como respirar e dormir”117. Embora este indivíduo desesperado possa, por conseguinte, ficar confuso em um primeiro momento com tal demanda de seu espírito, visto que vive em uma época de sociabilidade que criminaliza a solidão, mesmo assim sente que precisa praticá-la. Por outro lado, há aqueles indivíduos que, por mais que percebam a necessidade de solidão, se receiam em se aventurar por ela, porquanto estão habituados à sua condição de rebanho. Assim, Anti-Climacus esclarece:

a necessidade da solidão revela sempre a nossa espiritualidade, e serve para dar a sua medida. Essa espécie estouvada de homens “... esse rebanho de inseparáveis” sentem- no tão pouco que, como os periquitos, morrem mal se veem sozinhos; como criancinhas que não adormece sem uma canção... o trauteio tranquilizador da sociabilidade (KIERKEGAARD, 2010a, p. 86.)

O problema da massificação da existência, que ora aparece como o numérico, ora como a ideia de rebanho, constitui o problema crucial a ser denunciado em Doença para a Morte, assim como já ocorrera nas Notas sobre o Indivíduo. A massificação existencial ignora a

114 IDEM, p 79. 115 IDEM, p. 92. 116 IDEM, p. 85. 117 IDEM, P, 86.