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A categoria da multidão é infraética: verdade e mentira existencial

2- Capítulo 1: Fracasso no processo de tornar-se si mesmo: A categoria da multidão

2.3 A categoria da multidão é infraética: verdade e mentira existencial

47Kierkegaard alerta: “Contudo penso que se notou sobretudo nos ‘Indivíduos’ dos pseudônimos e que, sem mais, me confundiram com esses últimos” KIERKEGAARD, 1986, p.106.

48Assim, na passagem onde Kierkegaard observa: “a causa do cristianismo subsiste ou cai com esta categoria ... a

categoria do Indivíduo Singular é e continua a ser o ponto fixo ... que se deve por no prato da balança”. IBIDEM, 1986, pp. 112-113.

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A expressão “a multidão é a mentira” (Maengde er Usandheden) aparece várias vezes

ao longo das Notas sobre o Indivíduo. Trata-se de um bordão empregado de maneira retórica por Kierkegaard para enfatizar o seu argumento principal de que a multidão não pode ser tribunal ético, pois não acessa a jurisdição da moral e não tem competência para deliberar nesse terreno.

Com esse libelo acusatório o filósofo quer sustentar a ideia de que aqueles que estão na multidão não estão situados no estádio ético da existência, uma vez que este estádio opera sob as bases da consciência e responsabilidade individual. Estar situado na categoria da multidão aparece na reflexão kierkegaardiana como um fracasso na tarefa de tornar-se si mesmo, pois assim como o indivíduo (individ) pode tornar-se Indivíduo singular (Den Enkelt), pode também tornar-se multidão (maengde),50 isto é, pode tornar-se mais um e desaparecer no rebanho.

A expressão, “pode tornar-se”, aqui indica a ideia de possibilidade e sugere a inscrição nas instâncias da existência, não como um processo histórico, fruto de uma mediação (mediation) entre tese e antítese, mas como processo de devir. Desse modo as instâncias da topografia existencial na filosofia de Kierkegaard aparecem como um incisivo ‘ou’, acentuando a disjunção, e não a equivalência, ao modo da perspectiva hegeliana, tal como era lido na Dinamarca do século XIX. Ou seja, para Kierkegaard, a passagem de um estádio existencial para outro não se dá de maneira necessária por meio de uma síntese na esteira de um processo histórico inexorável. Pelo contrário, para o pensador de Copenhague passa-se de um estádio para outro sempre implicando uma ruptura e um salto. Ruptura, não porque se extirpa totalmente as características do estádio anterior mas, sim, porque as subordina e as relativiza. Salto,51 porque a passagem não ocorre de maneira necessária e por transição direta, visto que é

50“A multidão compõe-se, de fato, de indivíduos; deve estar portanto, ao alcance de cada um tornar-se no que é,

um Indivíduo; absolutamente ninguém está excluído de o ser, exceto quem se exclui a si próprio, tornando-se

multidão” IBIDEM, 1986, p. 102.

51A ideia de salto é importantíssima para Kierkegaard. O objetivo dessa expressão é ressaltar o aspecto volitivo da

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possível passar toda uma vida em um mesmo estádio e não galgar nada. Não se trata, portanto, de um processo determinado no qual inexoravelmente perpassa cada fase da vida. A condição de ruptura e de acesso a um novo estádio existencial implica sempre em um salto, seja da estética para a ética, seja da ética para o religioso, dando a ideia de uma novidade ou de uma atualização, mais que uma síntese. Caso não ocorra um salto, não se passa de uma condição para outra e não há devir. Não há outra alternativa: desse modo, ou se salta ou não; ou se dá prosseguimento no processo de tornar-se si mesmo ou fracassa-se. Não há uma síntese que providencie a mediação entre as duas possibilidades aqui. O desenvolvimento não se dá de maneira fatalista, como a leitura de Hegel na Dinamarca do século XIX parecia sugerir52. Por ora estas considerações são suficientes. Contudo, voltaremos ao tema dos estádios da existência de uma maneira mais detida no último capítulo de nossa pesquisa.

Resta notar, porém, que ao se tornar multidão, a julgar pelo que discorremos acima, pode-se dizer que o indivíduo inserido nesta categoria está em um estádio existencial que não é o ético ou o religioso. Se a categoria do Indivíduo singular está situada em um estádio supraético, já que o religioso extrapola os limites da ética, onde estaria situada, do ponto de vista dos estádios da existência, a categoria da multidão? A cristandade massificada está situada em um estádio infraético, na medida em que a multidão é a mentira e está desautorizada enquanto instância de apreciação moral, pois lhe é vedado o status de tribunal da verdade. Como explana Kierkegaard: “Mas nunca li na Escritura este mandamento: amarás a multidão; e menos

ainda este: na vida ética e religiosa, reconhecerás na multidão o tribunal da verdade”.53

A categoria da multidão tem sido reivindicada para deliberar o que é certo e o que é errado. Este é um problema que importa a Kierkegaard denunciar. A multidão é a mentira e, por isso mesmo não possui responsabilidade ética. A multidão carece da autonomia ética para

52 Cf. STEWART, 2003, pp 50-69. 53 KIERKEGAARD, 1986, p.102.

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poder exercer livremente suas escolhas, pois quando delibera o faz anonimamente em número. Assim, ninguém assume as responsabilidades ou ainda, dito de outro modo, a responsabilidade típica do estádio ético é atribuída, no comportamento de massa, a um ninguém.

Com efeito, a categoria da multidão, se não tem seu lastro nem no estádio religioso nem no estádio da ética, resta-lhe apenas o estádio estético. Acontece que o estádio estético é bastante complexo e rico, o que dificulta o trabalho de exauri-lo enquanto objeto de análise. Mas, mesmo assim, faz-se relevante notar que é justamente no estádio estético que o indivíduo pode ser massificado, na medida em que vive para o momento, na incessante busca de variedades e demanda de prazer, sem, no entanto, se sentir satisfeito.

No estádio estético, o indivíduo pode trocar a repetição dos compromissos éticos pelo instante imediato, pela realização momentânea, pode trocar a continuidade ética pelo presente desconexo e pela maximização do seu prazer. Não há deontologia na estética e o ufanismo da satisfação pode vir tanto en masse quanto individualmente, porque melhor do que tornar-se si mesmo, para o esteta, é tornar-se satisfeito, mesmo que tal satisfação se dê pela adesão aos interesses das multidões. Todavia, seja individualmente seja no interior das multidões o indivíduo no estádio estético tem a sua subjetividade massificada, vazia e tediosa. No estádio estético não está em jogo a alteridade e a universalização de máximas. O que efetivamente importa é o presente, a aceitação nos grupos sociais, a popularidade e, especialmente, a aversão à solidão. Ora, a solidão acentua o tédio, entretanto o esteta quer evitá-lo a todo custo.

O indivíduo preso no estádio estético não levou a cabo o processo de tornar-se si mesmo, o que sinaliza seu fracasso no processo de subjetivação. Sua subjetividade é massificada e seu eu, do ponto de vista da tarefa de tornar-se ele próprio, ainda é um anônimo, um ninguém, um

‘homem zero’. O primeiro passo para romper os limites do estádio estético é dar o salto para o

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ações e para com o outro, e se abrir para a repetição dos instantes. Ao assim proceder, o indivíduo sai da categoria da multidão e inicia o processo de tornar-se si mesmo, mas ainda não o alcança efetivamente. O segundo passo é dar o salto da ética para o religioso, visto que se prender ao estádio ético ainda não é suficiente. A categoria do Indivíduo singular está atrelada ao estádio religioso da existência, de modo que, obter êxito no processo de subjetivação implica em acessá-lo, tal como o exemplo de Abraão ajudará a pensar no capítulo seguinte.

Desse modo, alcançar o ápice do processo de subjetivação (tornar-se Indivíduo singular), implica em vencer os limites da ética e acessar o estádio religioso, ao passo que o ápice do fracasso dessa empreitada consiste, não em se manter inerte no estádio ético da existência. Se manter nos limites da ética já seria fracassar, todavia, pior ainda, na categoria da multidão o problema está em sequer conseguir alcançar a ética, visto que essa categoria está circunscrita pelos limites do estádio estético, onde se sublinha o prazer e o instante, mas não a responsabilidade e a escolha. Na melhor das hipóteses a categoria da multidão talvez alcance até mesmo a ironia54, interface entre a estética e a ética. Contudo, nunca o estádio ético em sentido pleno, quiçá o religioso. A multidão não está interessada na responsabilidade individual nem na autonomia da escolha, características típicas do estádio ético. O indivíduo isolado que precisa efetivar escolhas e se responsabilizar por elas não interessa para as massas e tampouco lhes faz apelo. Nos tempos de Kierkegaard, a multidão, bastante ligada ao poder e influências, a julgar pelo cenário político dinamarquês da primeira metade do século XIX, acaba por descartar o indivíduo isolado e se apressa em denunciar a sua fraqueza. Nos termos do filósofo:

Tornar-se multidão, reunir à sua volta a multidão, é pelo contrário a diversidade da vida... A multidão reencontra então o poder, a influência, a consideração e a soberania – e é também a diferença da vida que, soberana, despreza o indivíduo como sendo fraco e impotente ... (mas) no plano temporal e

54 A ironia é um confinium entre o estádio estético e o estádio ético, assim como o humor está entre o estádio

ético e o religioso. Se a categoria da multidão é infraética, ela pode estar na estética ou na ironia, em algum lugar abaixo da ética portanto.

46 mundano, despreza a verdade eterna que é o Indivíduo. (KIERKEGAARD, 1986, p. 102.)

Para além disso, como “a multidão é a mentira”, isso implica em dizer que ela está na

contramão da verdade (sandheden). Mas Kierkegaard não está interessado aqui em alguma modalidade epistêmica de verdade. Ao se referir à verdade, quer destacar o seu aspecto existencial, como já chamamos a atenção. Já a mentira que caracteriza a multidão, escamoteia a verdadeira condição humana capaz de obter êxito em sua tarefa de se tornar um autêntico eu diante de Deus. Kierkegaard pretende lançar mão do caráter existencial da fé para solapar as bases de uma cristandade convencional e estéril que se empregam a observância dos rituais, a coisificação da vida, e sobretudo a massificação da existência. Aqui convém insistir no argumento de não adotar essa temática kierkegaardiana de maneira desvinculada de sua temática religiosa como fariam mais tarde pensadores existencialistas do século XX. Sobre este ponto é Francesc T. Roselló quem ajuda a esclarecer que Kierkegaard:

...não pretende convencer nem reclamar a adesão do leitor, mas tão somente expressar um modo muito concreto e específico de conceber a vida e a relação do indivíduo com os outros, com o anônimo. Esta concepção existencial somente é compreensível a partir da radicalidade cristã de seu autor, a partir de sua visão fundamentalmente religiosa ou ético-religiosa da vida e da morte. Toda reflexão das Notas estão sustentadas em cima desde subsolo cristão e somente a partir dele é possível ver sua coerência. (ROSELLÓ, pp. 42 - 43.)

Se a crítica do homem inserido na massa é feita de modo a denunciá-lo na mentira, agir sob os auspícios da multidão constitui uma atitude, não amoral, mas sim imoral, haja vista que estar na mentira não pode ser uma ação destituída de implicações morais. A ética nesse contexto não pode ser tomada como tribunal da verdade, não é porque se exclui com sua indiferença, mas porque se exclui por sua oposição. Com outros termos, o quadro da falha no processo de subjetivação apresentado por Kierkegaard não vem à tona apenas por não alcançar a verdade, no sentido ético-religioso, mas está em franca contraposição à verdade, na medida em que é a mentira. Portanto, um dos aspectos da crítica ao homem massa é que ele é imoral, visto que é

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partícipe da mentira interior, pois contribui para a inautenticidade e irresponsabilidade ética55 que se exerce por meio do anonimato, da abstração e da agitação social cujo propósito é tão somente agradar ao “respeitável público”. Eis aqui um problema que interessa a Kierkegaard denunciar.

Com efeito, enquanto a verdade na qual Kierkegaard quer destacar aparece em franca oposição ao comportamento de massa, “... é eternamente verdade que cada um pode ser o único. Isto é a verdade”56. A verdade, neste sentido, não está nas agitações da temporalidade, não está na multidão abstrata, cujas características são: não possuir mãos, ser constituída por anônimos e por ninguéns. A verdade, portanto, não é externa e tampouco pode ser encontrada no processo histórico ao modo dos hegelianos. Verdade, para Kierkegaard é subjetividade. Isto é, verdade diz respeito à interioridade, à condição existencial, àquilo para o qual se está disposto a viver e morrer. Trata-se da verdade eterna. Este único no qual todos podem se tornar é paradoxalmente superior à multidão, haja vista que se relaciona absolutamente com o Absoluto e, ao modo de Cristo, recusa o auxílio da multidão para se tornar si mesmo. Escreve o filósofo:

A multidão é a mentira. Cristo foi crucificado por que, embora se tivesse dirigido expressamente a todos, não quis enfrentar-se com a multidão, não quis o seu auxílio, evitou-a a este respeito incondicionalmente, não quis fundar partido, não autorizou o voto, mas quis ser o que era, a Verdade que se relaciona com o Indivíduo. (KIERKEGAARD, 1986, pp. 99- 100.)

O auxílio da multidão leva à irresponsabilidade ética e foi a massa dos judeus a quem se dirigiu Pilatos que condenou Cristo. De fato, Cristo se dirigiu a todos, mas não se dirigiu as massas. Se dirigiu a cada um isoladamente, mesmo que cada um possa ser tomado como um conjunto. Acontece que o interesse de Cristo, conforme nota Kierkegaard, não era com este todo. Era com

55 Kierkegaard os denuncia: “... a multidão é a mentira; porque ou ela provoca uma total ausência de

arrependimento e de responsabilidade, ou, pelo menos atenua a responsabilidade do indivíduo, friccionando-a”. IBIDEM, 1986, p. 98.

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o indivíduo que pode tornar-se si mesmo ou pode fracassar nesta empreitada. A pior forma de fracassar, entretanto, é se prender na multidão. Quem se perde nela não possui responsabilidade ética, porque a multidão não pode ser tribunal de verdade. Os indivíduos que se pautam por ela estão presos à mentira existencial, se jogam para a plateia e estão situados em alguma instância infraética, seja na estética seja na ironia. Este ponto é fundamental, mas por ora não nos estenderemos mais neste tópico. Voltaremos a ele, bem como a discussão sobre os estádios da existência, no último capítulo.