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Indivíduo singular e multidão: a colocação do problema

2- Capítulo 1: Fracasso no processo de tornar-se si mesmo: A categoria da multidão

2.2 Indivíduo singular e multidão: a colocação do problema

É relevante chamar a atenção, antes de tudo, para a ideia do Indivíduo singular que aparece no pensamento de Kierkegaard como uma categoria crucial, tão própria à sua filosofia. Ele mesmo chama atenção para a importância desse tema ao argumentar:

Se a questão do ‘Indivíduo’ fosse para mim uma futilidade, poderia deixa-la cair, e

até o faria com prazer e vergonha para mim se não estivesse disposto a isso com toda a atenção possível. Mas não é o caso; para mim, como pensador e não pessoalmente, a questão do Indivíduo é decisiva entre todas. (KIERKEGAARD, 1986, p.105).

A temática do Indivíduo singular perpassa todas as obras pseudonímicas de uma maneira ou de outra29, mas é, sobretudo, nas Notas sobre o Indivíduo de 1847 que a questão aparece de uma maneira ainda mais elaborada. Nesses textos Kierkegaard faz um balanço de sua atividade como escritor e discute, com todo seu leque conceitual, suas posições a partir de sua própria perspectiva.

No entanto, a própria tradução do conceito central desta pesquisa, Den Enkelt, se constitui um problema para ser traduzido de maneira acertada, haja vista que não há um sentido unívoco de tradução. Den Enkelt, conforme observou André Clair, pode ser traduzido por: o indivíduo, o único, o isolado, o ser (ou existente) singular30. Clair opta por essa última tradução, mas lembra que Bohlin, Vergote e J. Wahl prefeririam traduções diferentes31. Para os propósitos desta dissertação convencionaremos traduzir Den Enkelt como Indivíduo singular, para se referir à categoria trabalhada por Kierkegaard. Estamos seguindo a linha de Clair. Com o emprego do termo ‘Indivíduo singular’ pretendemos pôr em evidência tanto o caráter individual de cada um no interior da sociedade como seu aspecto bizarro, distinto, simultaneamente solitário diante de Deus. O Indivíduo singular é uma categoria e pode comportar um existente

29“cada uma das minhas obras pseudônimas apresenta de uma ou de outra maneira a questão do ‘Indivíduo’”.

KIERKEGAARD, 1986, p. 106.

30 CLAIR, 1993, p.12. 31 IDEM, p. 12.

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extraordinário, ao passo que também pode ser qualquer um isoladamente, mas não é o indivíduo repetido em meio à multidão. Isto é, optamos por Indivíduo singular por entendermos que esta tradução satisfaz as características, ainda que de maneira não exaustiva, que levaram o filósofo dinamarquês a pensar esta categoria. Com a ideia de Indivíduo singular pretendemos destacar seu contraponto à multidão, e simultaneamente enfatizamos sua condição excepcional, vale dizer, extraordinária na sociedade, na medida em que se diferencia do indivíduo comum.

Por conseguinte, empregaremos de maneira exclusiva a palavra ‘indivíduo’ para

expressar aquilo que Kierkegaard queria dizer com o termo individ, com o propósito de se referir ao sujeito avulso, a cada um isoladamente, dissociado da generalidade e repetido no interior das massas. Embora essas sejam as convenções, doravante adotadas aqui, não pretendemos negligenciar a dificuldade em trazer para nosso idioma conceitos filosóficos tão específicos, e ao mesmo tempo com uma polissemia tão díspar como essas. Nosso ponto,

contudo, é sinalizar de maneira clara que usaremos ‘Indivíduo singular’ para se referir a Den

Enkelt, a categoria cristã, tal como explicitaremos. Usaremos também a palavra ‘indivíduo’ para se referir a individ, ou seja, aquele existente específico sem o aporte das abstrações de classe ou outro tipo de grupo. Este indivíduo pode ou não se tornar o Indivíduo singular, pode ou não se tornar massificado.

Dito isto é preciso notar que embora tenha passado desapercebidamente tanto de seus contemporâneos quanto de boa parte dos estudiosos de seus temas; segundo Kierkegaard, a primeira vez que a categoria do Indivíduo singular aparece é no chamado Dois discursos edificantes de 1843, cujo propósito era estabelecer a duplicidade dialética com a obra Ou/ou (Enten-Eller)32. Mas o tema sequer foi notado por seus contemporâneos, enquanto a outra ponta da dialética, isto é Ou/ou, fora amplamente lida33. Já o texto Dois discursos edificantes, quando

32 KIERKEGAARD, 1986, p. 34. 33 IBIDEM, 1986, p. 33.

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comparado à recepção de Ou/ou, não teria passado de “uma florzinha à sombra da grande floresta”34 É nesse contexto que o nosso autor faz questão de remeter seus leitores a uma categoria cuja certidão de nascimento fora dada por Sócrates no interior do mundo pagão, mas que seria retomada pelo cristianismo,35 tal como Kierkegaard o entende.36 A noção de Indivíduo singular é tomada “... não no sentido da distinção ou do talento especial, mas no sentido em que todo homem, sem exceção, o pode e deve ser ...”37. A categoria do Indivíduo singular se inscreve na reflexão do pensador de Copenhague como um corretivo religioso pelo qual, segundo expressa Kierkegaard, devem passar a época, a história, a humanidade38. Ou seja, qualquer um, em qualquer momento, em qualquer circunstância histórica, pode e deve se tornar Indivíduo singular, sem que se tenha algum talento especial aparente. Trata-se de uma categoria extensiva a todas em qualquer momento, sem qualquer tipo de distinção. Esta categoria quer, portanto, realocar os indivíduos (individ) diante de sua condição espiritual originária. Quer resgatar sua identidade perdida. O Indivíduo singular é uma categoria destacada por Kierkegaard para pensar o indivíduo excepcional, diferente do anônimo e da série, da padronização e do usual.

Tornar-se Indivíduo singular é um processo em constante vir a ser que procura assumir sua autenticidade existencial. Cabe salientar, não obstante, que a categoria da multidão, por sua vez, aparece no sentido oposto ao dessa referida autenticidade, visto que afasta o indivíduo de sua condição originária. Então, é importante se ater, um pouco mais, ao estatuto desta categoria da multidão e analisá-la por oposição à categoria do Indivíduo singular.

34 IBIDEM, 1986, p. 34.

35Segundo Kierkegaard, a categoria do Indivíduo singular foi utilizada a primeira vez “...por Sócrates para

dissolver o paganismo. Na cristandade, pelo contrário, será empregue pela segunda vez, para fazer dos homens (os cristãos), cristãos. IBIDEM, 1986, p.113.

36 Kierkegaard desenvolveu, no segundo percurso de sua escrita um conceito que ajuda a pensar o autêntico

cristianismo preconizado em seus textos. Trata-se da ideia de Crístico (det Christelige). Assim como Platão falava do bem idealmente, Kierkegaard quer comparar o cristianismo que se vive na Dinamarca de seu tempo com um cristianismo ideal. O Crístico é uma forma filosófica de pensar o problema de tornar-se cristão.

37 IBIDEM, 1986, p. 108. 38 IBIDEM, 1986, p. 109.

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A ideia de multidão, no pensamento kierkegaardiano, não é sustentada a partir de um conjunto de grupos sociais e, também, não pretende se referir a uma determinada classe. Tampouco tem necessariamente relação, segundo a nossa leitura, com a quantidade de pessoas. Trata-se aqui de uma categoria cujo teor é mais qualitativo do que propriamente quantitativo. Indivíduo singular e multidão, por conseguinte, são duas faces de uma mesma moeda, a saber, da tarefa (opgave) de tornar-se si mesmo. A primeira é uma categoria cristã por excelência, enquanto a segunda é anticristã. Mas essas categorias dizem respeito à condição existencial dos indivíduos e não os pensa numericamente. Logo, um único indivíduo isolado pode estar em uma ou em outra categoria, porquanto são categorias da interioridade, não é necessário levar em conta, portanto, a quantidade de pessoas.

Nesse sentido, alguém pode, por exemplo, ser visto no meio de uma multidão, mas pode estar na categoria do Indivíduo singular, enquanto alguém pode, da mesma forma, estar só, isolado, e possuir uma interioridade massificada. Os sinais, porém, que ajudam a identificar um ou outro caso podem ser sinais que são externos e podem se verificar por meio da postura do indivíduo diante da existência. O indivíduo pode, por exemplo, ser iludido e depositar todo o seu anseio em engajamentos puramente temporais. Ou pode ser reconhecido por suspender teleologicamente a ética, como verificaremos no capítulo seguinte. O que pretendemos destacar é que se inserir em uma ou em outra categoria acontece no âmbito da interioridade, mas os sinais podem ser reconhecidos muitas vezes por características da vida cotidiana, por sinais externos, portanto. Se assim não fosse, seria vedado refletir sobre a condição puramente interior de cada um, visto que não é possível o acesso imediato claramente ao que se passa na interioridade.

Assim, o acesso à interioridade é pela postura de cada indivíduo perante a vida, a qual varia. Uns priorizam o prazer, outros a liberdade e ainda outros a fé. Kierkegaard tratou de analisar cada um desses pontos de vista por meio de estádios da existência, respectivamente: o

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estético, o ético e o religioso. Com eles é possível pensar o problema da interioridade e, por extensão, o das modalidades categoriais, ou estádios da existência, em que se pode estar inserido.

Ao pensar sobre essas categorias, isto é, a do Indivíduo singular e a da multidão, a tarefa de Kierkegaard se equivale a ação de um missionário às avessas. Com essa imagem a ideia é notar que enquanto o missionário penetra no paganismo com o intuito de endereçar-lhes uma mensagem, o dinamarquês ilustre também vê sua missão como a de um missionário, mas com propósitos distintos39. Sua missão consistiria em acessar a cristandade dinamarquesa e convocar os homens para tornar-se si mesmos. Faz-se necessário proceder assim porque, segundo Kierkegaard, “‘o Indivíduo singular’ é a categoria cristã decisiva, e sê-lo-á para o futuro do

cristianismo”.40 O que se percebe nesse contexto é a crítica de Kierkegaard à cristandade41 de seu país, preocupada em satisfazer a multidão, o tempo, e a respeitável assembleia de seus adeptos, cuja característica é a de alienação diante do autêntico cristianismo. Ele entende que é preciso reintroduzir o cristianismo na cristandade e uma das formas de fazer isso é por meio da crítica à multidão.

Ademais, Kierkegaard faz questão de dizer que a categoria do Indivíduo singular ainda militava em outra frente, pois segundo ele “foi com a categoria de ‘o Indivíduo’ (Den Enkelt) que os problemas visaram, no seu tempo, o Sistema, quando tudo na Dinamarca era invariavelmente o Sistema...”42. O filósofo pretende se opor aqui à excessiva sistematicidade presente em determinados pensadores do idealismo alemão, entre eles certamente Hegel, que no afã de mostrar o universal, acaba por suprimir o particular, já que o importante era pensar o

39Kierkegaard diz: “não é a categoria do missionário para uso dos pagãos a quem anuncia o cristianismo, mas é a

categoria do missionário no próprio seio da cristandade, onde quer introduzir o cristianismo. Quando ‘o

missionário’ chegar, utilizará esta categoria” IBIDEM, 1986, p. 113. 40 IBIDEM, 1986, p. 111.

41Kierkegaard definiu a cristandade como “... uma caricatura do verdadeiro cristianismo ou um imenso conjunto

de erros e ilusões onde se mistura uma reduzida e fraca dose de cristianismo autêntico”. IBIDEM, 1986, p. 73.

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Sistema (Systemet) e não o indivíduo. Com a categoria do Indivíduo singular, Kierkegaard também pretende trazer à tona uma noção esquecida pela filosofia alemã vigente na Dinamarca de seu tempo, mas que precisa ser recuperada, a saber: o aspecto existencial e subjetivo da vida. O Sistema não pode suprassumir o indivíduo. Por isso, a categoria do Indivíduo singular se opõe à noção idealista de Sistema na medida em que este se esquiva de pensar a existência e se permite divagar em abstrações filosóficas distante da vida efetiva. Para Kierkegaard, importa pensar a efetividade da vida, ou se preferirmos, seu caráter existencial, não a categoria abstrata, ao modo de Hegel, e seu jogo lógico.

Aliás, assumir a condição de Indivíduo singular frente à generalidade é uma tarefa existencial. Isso significa que essa categoria não é dada a priori. Pelo contrário, constitui um processo de interiorização, na medida em que é preciso tornar-se um eu (selv). Acontece que cumprir essa tarefa não é algo que se faça en masse ou no interior da categoria da multidão; e, não é, tampouco, por meio de engajamentos temporais e pela militância na cena pública. Tudo isso, na ótica kierkegaardiana, acaba por escamotear a condição solitária e de autorresponsabilidade do cristão. Desse modo, no interior da mentalidade da multidão o que vinga é a inautenticidade, visto que prevalece o numérico e o anonimato sobre o individual. Antes, porém, cumprir a tarefa de tornar-se si mesmo é constitutivo de um processo solitário e individual de prestação de contas para com Deus43. Ou seja, para se tornar um autêntico eu, os anteparos sociais, o público e a generalidade devem ser relegados ao seu devido lugar, porquanto não podem ter um papel prioritário na vida.

No que diz respeito à condição existencial do eu, Kierkegaard insiste que somente um único atinge a meta44. Com esta metáfora que remete ao corpus paulino45, o pensador pretende sustentar que a meta da tarefa de se tornar um eu só pode ser atingida por essa única pessoa de

43 IBIDEM, 1986, p. 113. 44 IBIDEM, 1986, p. 97.

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maneira solitária, sem o apanágio da sua inscrição nos grupos sociais; portanto, sem o auxílio da multidão. Aqui é inevitável a alusão a duas obras de Kierkegaard que ajudam a compreender os contornos dessa temática dentro do quadro geral de seus objetivos. A primeira é Temor e Tremor de 1843, onde o personagem bíblico Abraão, solitário em sua empreitada, apareceu como exemplo bem sucedido de êxito no processo de subjetivação. Tal êxito se deu por meio de um salto (Spring) do estádio ético para o estádio religioso da existência, quando Abraão se tornou Indivíduo singular diante de Deus. A segunda obra é, como também já chamamos a atenção, Doença para a Morte de 1849, escrita durante os incidentes históricos de 1848, por meio da qual o tema da solidão será retomado. Com isso Kierkegaard pretende pensar o fracasso no processo de tornar-se um eu e por meio da linguagem rebuscada do pseudônimo Anti- Climacus, apresenta uma fisionomia complexa, cujo objetivo é dar conta de abarcar o processo de alienação e massificação existencial. O eu em Doença para Morte é visto como uma possibilidade que pode ou não atualizar-se46.

O capítulo seguinte desenvolve e aprofunda um dos desdobramentos dessa temática e traz como problema a condição de Indivíduo singular a partir de Temor e Tremor. Já o tema da massificação da existência aparecem no último tópico deste capítulo por se inscrever, como já assinalamos - ainda que do ponto de vista de um pseudônimo -, no mesmo mote temático cujo enfoque sublinha o fracasso do processo de tornar-se si mesmo. Mais que isso, a temática de Doença para Morte será aqui aproximada das Notas sobre o Indivíduo e do texto As Obras do Amor, pois abarca o mesmo contexto e desdobramentos históricos. Então, visto que em 1848 os eixos temáticos, que ocuparam o Kierkegaard veronímico, ainda estão na ordem do dia, e também integram a pauta de Anti-Climacus, justifica-se cotejá-las neste capítulo, porque juntas essas obras constituem peças diferentes, mas complementares do mesmo quebra-cabeça conceitual.

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Embora os pseudônimos não possam ser tomados como porta-vozes que se expressam em nome do autor das Notas sobre o Indivíduo,47 é plenamente possível sustentar que as teses tratadas por esses autores personagens sobre a dialética do Indivíduo singular e da multidão estão fortemente amalgamadas na própria perspectiva do filósofo dinamarquês,48 guardadas as nuanças literárias que diferenciam cada pseudônimo, e evidentemente o próprio Kierkegaard. Este é o pressuposto no qual o primeiro capítulo pretende ratificar, por meio da análise das referidas obras veronímicas, bem como do espectro temático proposto por Doença para a Morte. Com isso em mente, pretendemos estar em condições de refletir sobre a grande relevância desta categoria para Kierkegaard, a ponto dele dizer: “se tivesse que pedir para que

me pusessem uma inscrição no túmulo, não queria outra, senão esta: ‘foi o Indivíduo’ se esta

palavra ainda não foi compreendida sê-lo-á verdadeiramente um dia”.49

Com essas considerações prévias podemos estabelecer, então, um quadro geral cujo corolário aponta para a relevância desta pauta no pensamento kierkegaardiano, assim como sua relação com o problema da ética no interior desse mosaico. Nossa tese nesse capítulo é que a multidão não acessa a responsabilidade ética porque tem sua força motriz no anonimato e, vale dizer, no invólucro estético que valoriza o instante e o prazer momentâneo sem que se tenha sentido o peso da responsabilidade nas escolhas ecoado pelo estádio ético. O tópico seguinte procura adentrar mais detalhadamente nesta discussão.