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Kierkegaard e o problema da ética: dois vetores interpretativos

4- Capítulo 3: O problema da ética no interior da relação Individuo singular/

4.1 Kierkegaard e o problema da ética: dois vetores interpretativos

Há o que se possa chamar de uma ética na filosofia de Kierkegaard? Isto é, estaria Kierkegaard disposto a assumir pressupostos normativos e prescritivos de maneira positiva? Dito de outro modo, Kierkegaard estaria interessado no tema da ética, ou apenas o usou, por

assim dizer, como uma “escada que precisava ser abandonada”? Ora, este ponto é da maior

relevância e constitui o cerne de posições profundamente divergentes.

201 A palavra antinomista é empregada aqui no sentido de designar os partidários de uma posição que defende a

interpretação de que a ética é descartável e pode ser saltada.

202 A posição conciliatória é aquela que visa reconciliar a noção de ética em Kierkegaard com os autores idealistas

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De acordo com Gordon Marino, por exemplo, Kierkegaard teria procurado enfatizar o engajamento ético, mas não teria dado nenhum conteúdo efetivamente positivo sobre aquilo a que se deve estar comprometido203. Martin Buber, embora se simpatize com muitos pontos do pensamento kierkegaardiano, é mais contundente em sua crítica e lamenta que do ponto de vista da ética Kierkegaard seja um cego204. Já Brand Blanshard teria, segundo Evans, visto em Temor e Tremor um niilismo moral205.

De fato, uma das leituras que se faz, no que diz respeito ao tema da ética na filosofia de Kierkegaard, sobretudo baseado em conclusões a partir de Temor e Tremor, nota que o Sócrates de Copenhague não está propriamente interessado no tema da moral. Esta posição interpretativa vê no evento da Akedah a chancela para defender que a suspensão teleológica da ética, tal como processada em Temor e Tremor, torna a ética completamente prescindível. Quer dizer, o ato de Abraão se dispor a cumprir o desígnio de Deus faria de Kierkegaard um defensor de uma espécie de voluntarismo divino, pois o livro basearia a moral na vontade de Deus.

Esta posição interpretativa defende que Kierkegaard não teria como bússola a temática da moralidade, mas apenas eventualmente passa por este ponto a fim de superá-la. Desse modo, Kierkegaard seria um antinomista, na medida em que não faz da ética seu objeto norteador de reflexão. Este eixo interpretativo possui nuanças de variações amplas, onde Kierkegaard é chamado de irracionalista, fideísta, niilista moral, amoralista, etc. Todas estas variações, porém, possuem o ponto em comum de negar que o tema da ética tenha a sua devida relevância nos escritos de Kierkegaard, pois a moral, na melhor das hipóteses, não seria mais do que prolegômenos perfeitamente descartáveis para a acessar o estádio religioso da existência.

203 Cf. MARINO, 2001, pp. 51-57. 204 Cf. ZEIGLER, 1960, 80ff. 205 EVANS, IKC vl. 6, 1993, p. 9.

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Por outro lado, uma outra linha interpretativa insiste no fato de que o tema da ética enquanto tal, não só fora bastante significativo para o filósofo de Copenhague, como boa parte de suas reflexões acerca desta temática podem ser assimilados pelos movimentos de Kant e/ou Hegel. Ou ainda, há uma segunda linha interpretativa que se dispõe a responder a pergunta proposta, indicando que Kierkegaard tem considerações importantes a fazer sobre ética, e quando as faz seria em uma linha ora kantiana, ora hegeliana, ora imbricadas, como uma espécie de simbiose entre ambos os idealistas, mas sempre remetendo a eles.

Nesse sentido, alguns comentadores afirmam que a ideia de ética discutida por Kierkegaard remete exclusivamente a Kant como George Schrader206. Outros veem a discussão maior com Hegel como Louis Dupré207. Há ainda os que sustentam que se trata mesmo de uma interlocução com ambos os pensadores, embora haja uma predominância dos conceitos kantianos como sugere Pojman208. Há também outros estudiosos que apesar de admitirem a presença de ambos os idealistas nas problematizações de Temor e Tremor, finalmente concedem uma preponderância maior aos conceitos de Hegel como por exemplo C. Stephen Evans209.

Portanto, nota-se a partir desta explanação que o cardápio é variado e tem opções para todo o gosto. Isto, por um lado, chama a atenção para a importância de precisar melhor o lugar da ética no corpus kierkegaardiano, o que de modo algum já está resolvido, mas, por outro lado, mostra a dificuldade em solucionar a questão de maneira amplamente satisfatória e definitiva.

Assim, se este é o caso, trazer este ponto para a discussão é remeter a uma temática antiga, a julgar pela quantidade de comentadores que vem tentando encarar este problema, mas

206Assim interpreta George Schrader em “Kant and Kierkegaard on Duty and Inclination” in Kierkegaard: A

Collection of Critical Essays, ed. Josiah Thompson, 1972, p. 324-25.

207Por exemplo, Louis Dupré, em “Kierkegaard as Theologian” 1973, p. 74.

208 Assim sustenta. Louis P. Pojman in “The logic of subjectivity: Kierkegaard’s Philosophy of Religion”, p. 18. 209 Cf. C. Stephen Evans in “Is the Concept of an Absolute Duty toward God Morally Unintelligible?” in Critical

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é também simultaneamente uma temática nova, na medida em que outros horizontes de elaboração podem e devem ser pensados para ajudar na lida com este ponto. Aqui precisamente se insere o esforço deste capítulo, ou seja, o de pensar em uma leitura refinada para tentar compreender a intenção do autor, além de calibrar o problema levando em conta algumas variáveis que podem ter sido ignoradas nestes cálculos, sem perder de vista a relação estabelecida entre Kierkegaard e seus personagens.

Enquanto o primeiro eixo de interpretação sugere então um antinomismo, a este segundo estamos chamando de conciliatório, na medida em que vê na concepção ética discutida por Kierkegaard uma conciliação com algum dos referidos autores idealistas. A tentativa de conciliar o pensador dinamarquês com os idealistas é, antes de tudo, um reconhecimento da necessidade da ética para a construção do edifício teórico kierkegaardiano, mas é também uma forma de procurar o mapa conceitual da interlocução que o autor da Dinamarca estaria querendo propor.

Dada esta problematização sobre a temática da ética no pensamento de Kierkegaard, faz-se relevante aprofundar um pouco mais em cada uma destas linhas interpretativas a fim de verificar até que ponto são posições bem sucedidas. Como já chamamos atenção, fazer frente a este problema, embora se constitua uma tarefa árdua, porque o próprio Kierkegaard se empenhou bastante em dificultar a vida de seus intérpretes, se constitui uma empreitada crucial para situar a função, se é que há alguma, da ética em seu construto teórico.

Todavia, aqui é oportuno salientar uma vez mais, mesmo sob pena de se parecer repetitivo: como a filosofia kierkegaardiana é composta por uma quantidade de volumes vastíssima, e ainda, levando em conta que não se constitui tarefa simples adentrar pelo labirinto do pensador de Copenhague de maneira exaustiva, nosso esforço se limita a um recorte bem delimitado. Para os propósitos deste capítulo, importa a pergunta pela ética dentro do escopo

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da relação Indivíduo singular/multidão. Isto é, ao fazer frente a este problema estamos particularmente preocupados com as implicações de nossa investigação para se perguntar pelo lugar da ética no interior do processo de tornar-se si mesmo. Então, propomos aqui um objetivo geral que é verificar o que Kierkegaard tinha a dizer sobre ética em um sentido lato. Mas pretendemos, sobretudo, extrair destas consequências suas implicações para o objetivo específico de se perguntar pelo lugar da ética em seu sentido estrito, a saber, no interior da tarefa de tornar-se si mesmo.