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A ética da transformação social

OS PONTOS COMUNS APRESENTADOS NOS RELATOS.

1. O PSICÓLOGO E SUA FUNÇÃO SOCIAL.

1.1. A ética da transformação social

Em relação ao trabalho do profissional de Psicologia, vários pontos foram descritos pelos sujeitos. Em cada uma dessas descrições é possível observar uma constante preocupação com a construção de um profissional

ético12, inserido cada vez mais nas questões do nosso tempo e

profundamente comprometido com um trabalho que possa promover a saúde da população, ou seja, um profissional buscando dar um sentido político às suas praticas profissionais demarcando mais claramente a sua função social.

12 Na exposição de motivos do Código de Ética Profissional do Psicólogo feita pelo

Conselho Federal de Psicologia (1995), o conceito de ética é definido como a: “ ética

filosófica, que aponta para uma reflexão , para a compreensão das singularidades(...) É está visão de totalidade existencial-filosófica que faz com que o profissional abra as janelas da sua mente para ver o mundo como uma realidade social, política, comunitária e perca a mesquinhez de ver o indivíduo no seu imediatismo, e é esta

Há uma preocupação com questões consideradas importantes, que devem estar presentes na atuação profissional. A questão da ética é citada enquanto um norte fundamental para uma atuação conseqüente. Para (S7) é necessário "discutir a ética em geral e dentro da prática do psicólogo". Esta ética voltada "para perspectiva da transformação social"(S1), através das reflexões sobre a sociedade e suas contradições, "enfim, dos valores sociais que estão postos ali"(S2). Tais reflexões devem ser "iniciadas na Formação" (S3) para possibilitar a construção de valores que apontem para uma perspectiva de trabalho voltada à humanização do indivíduo, na busca "de uma atuação mais comprometida"(S8) com a construção da sua cidadania13. Para podermos compreender o que vem acontecendo hoje em nossa sociedade e como a Psicologia se insere nessa questão da busca da cidadania, é necessário entender a própria constituição e apropriação desse conceito. A cidadania foi sendo conquistada ao longo da história através das lutas travadas no interior de várias organizações sociais, que buscaram a garantia básica dos direitos fundamentais do homem. Os diferentes modos de organização social do Estado, assim como das relações de participação e emancipação, demonstram que a cidadania está indissoluvelmente ligada ao Estado de Direito14.

Torna-se necessário que o profissional de Psicologia tenha claro qual o seu projeto de cidadania e como orientar-se teórica e metodologicamente para um projeto que implique no desenvolvimento coletivo. É preciso tentar

visão que o faz transcender do indivíduo para o grupo, do momento para a história, de soluções precárias para procuras mais globais (p.98)”.

13 Palazzo(1998) utilizando a definição de Hannah Arendt sobre o conceito de cidadania,

aponta que "a cidadania é o direito de ter Direitos, que só é conquistado pelo sujeito

quando o mesmo tem pleno acesso a ordem jurídica"(p.35). Dentro dessa perspectiva,

Santos(1997) descreve a íntima relação entre cidadania e subjetividade. Para ele a subjetividade é constituída através do processo de auto-reflexividade e de auto- responsabilidade, mediada pela relação com a cidadania, esta entendida como deveres e direitos, ampliando a possibilidade de auto-realização do homem.

14 Para aprofundamento das questões sobre Direitos Humanos e Psicologia ver:

- Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. “Psicologia,

Ética e Direitos humanos”. Brasília, Conselho Federal de Psicologia, 1998.

- Dornelles, J. R. "O que são Direitos Humanos" . São Paulo, Ed. Brasiliense, 2ª ed., 1997(Coleção Primeiros Passos:229).

responder a tradicional e sempre atual questão: a quem a Psicologia estará servindo nesse momento?

Tal indagação pode dar início à ruptura com uma postura ingênua, muito presente ainda hoje entre os psicólogos, de que o objeto da Psicologia é um objeto "natural", neutro. Essa visão não ocorre por acaso, ela é uma conseqüência do predomínio de concepções de homem e de mundo, impregnadas pela correntes filosóficas do positivismo e do idealismo. Essas idéias embasam muitas das teorias psicológicas. Para Bock(1997) "(...) a

Psicologia está impregnada de uma visão naturalizante do psiquismo. Essa visão está diretamente relacionada ao positivismo e ao idealismo presentes nas ciências , ao liberalismo como concepção filosófica e política dominante em nossa sociedade, ao próprio desenvolvimento histórico da Psicologia e ao reforço permanente que fazemos a essas concepções em produções e trabalhos"(p.5).

Com isso, as práticas profissionais têm reproduzido , na maioria das vezes, uma postura a-política, contribuindo para uma visão ideológica de ocultamento das determinações sociais e históricas no desenvolvimento do psiquismo humano. A questão que parece ser importante é a do profissional compreender que a função social de uma determinada profissão, não só da Psicologia, estará sempre relacionada com o compromisso ético e político de desenvolver ações que busquem modificar a realidade hoje, ou seja, da transformação social que assegure o estado de Direito por parte das populações excluídas socialmente.

Para alterar tal situação, o compromisso básico da Psicologia será o de colocar integralmente o conhecimento acumulado na área a serviço dos setores majoritariamente excluídos da cidadania. Para tanto, a atuação do psicólogo em todas as áreas deverá priorizar o cotidiano social, a questão ética de respeito ao ser humano, compreendido em sua concretude histórica e social.

Enfim, não há fórmulas prontas; o que se deve buscar é a idéia fundamental de que o sujeito do processo ( a coletividade) precisa certificar- se e aprender a lidar com os mecanismos sociais que dão origem a limites, normas, convenções, leis e regras, que dizem respeito ao seu próprio cotidiano.

O trabalho da Psicologia direcionado para a cidadania deve buscar um conjunto de procedimentos que coloquem à disposição da população conhecimentos que poderão ajudá-la a entender as contradições presentes

no seu cotidiano e na construção do processo de humanização15 desses

sujeitos sociais.

O processo de humanização é também uma preocupação central dentro do projeto de promover saúde, apontada pelos sujeitos da pesquisa, e esta tem uma significação especial sendo compreendida como parte integrante da construção da “condição humana” 16. Bock(1997), ao discutir o conceito de condição humana, descreve: “(...) na condição humana, nada

no homem está aprioristicamente concebido. Não há nada em termos de habilidades, faculdades, valores, aptidões ou tendências que nasçam com o ser humano. As condições biológicas, hereditárias do homem são a sustentação de um desenvolvimento sócio-histórico, que lhe imprimirá possibilidades, habilidades, aptidões, valores, tendências historicamente conquistadas pela humanidade e que se encontram condensadas nas formas culturais desenvolvidas pelos homens em sociedade” (p.23)

15O processo de humanização é compreendido por Vygotsky(apud Fontana,1997) como um

processo que envolve a natureza social e histórica da experiência humana, no desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores, portanto, "(...) a natureza

psicológica do homem é a totalidade das relações sociais"(p.51).

16 O conceito de condição humana apoia-se nas proposições teóricas da Psicologia Sócio-

Histórica. Baseando-se no Materialismo Histórico de Marx, esta corrente teórica aponta, a partir de Vygotsky(1984), uma nova configuração ao fenômeno psicológico, analisando a

constituição da condição humana a partir do seu contexto histórico, político e social. Para

Kusolin(1994), Vygotsky considerava que "(...) el hombre no utiliza sólo la experiencia

herdada físicamente. Toda nuestra vida, nuestro trabajo y nostra conducta están baseada en una utilización más extensa de la experiencia de las generaciones anteriores, experiencia que no se transmite del padre al hijo durante el nacimiento. Convencionalmente la denominamos experiência histórica"(p.85).

O processo de humanização, dentro dessa perspectiva teórica, insere o próprio homem, mediado pelas suas relações sociais, como construtor da sua própria condição humana. As ações que valorizam as relações humanas através das mediações sociais tornam-se, portanto, um importante espaço de promoção de saúde.

A intervenção psicológica, de acordo com essa proposta aparentemente ampla, não deve perder a especificidade do trabalho psicológico e essa especificidade é a de ser um profissional que promove saúde, atuando nas questões da subjetividade humana (intra-psíquicas) concretizada nas relações sociais (inter-psíquicas).

Rey(1997), em sua construção teórica acerca do conceito de subjetividade descreve “(...) La subjetividad es la constitucíon de la

psiquis en el sujeito individual, e integra también los procesos y estados característicos a este sujeito en cada uno de sus momentos de accíon social, los cuales son inseparábles del sentido subjetivo que dichos momentos tendrán para él”(p.83). Dessa forma, a subjetividade

nessa conceituação é compreendida como uma complexa interpenetração entre a singularidade do sujeito inserido numa determinada organização social e histórica e a constituição dos próprios eventos sociais, transformada em subjetividade social. Constituído e constituinte, essa é a dinâmica presente na construção do sujeito psicológico e será esse sujeito o objeto de estudo da Psicologia e da atuação do próprio psicólogo. Como desenvolver ações específicas na dinâmica institucional? Como compreender esse sujeito psicológico presente nas relações institucionalizadas? Enfim, como promover saúde dentro desse contexto?

Nos relatos apresentados neste trabalho, tais indagações se fazem presente. O psicólogo, segundo os entrevistados, deve fazer intervenções junto às questões psicológicas presentes na instituição educacional. Para S4 "o psicólogo tem um conhecimento específico" que deverá ser utilizado no trabalho das relações e das subjetividades. Para S2 o profissional de

Psicologia tem condições e instrumentalização técnica para atuar junto às "relações dentro das instituição educacional", promovendo melhorias nas situações de aprendizagem e de ensino, considerando que a promoção de saúde irá possibilitar uma outra qualidade na intervenção do psicólogo. S3 amplia tal participação apontando a necessidade do psicólogo participar mais ativamente dos "debates sobre as instituições educacionais", para compreender os mecanismos de exclusão e participação presentes nessa dinâmica, atuando sempre na direção da construção de uma postura que busque a cidadania dos envolvidos em tais contextos.

Parece que a preocupação deve ser de uma atuação que, sem perder a especificidade do psicólogo, especificidade esta entendida por S4 como a do profissional que, "em qualquer lugar que ele estiver, ele vai estar trabalhando com a saúde" e com a subjetividade, compreenda, também, as relações sociais que compõem tais instituições enquanto parte constitutiva da subjetividade dos seus componentes.

Enfim, é possível observar que os sujeitos desta pesquisa buscam a construção de um profissional ético, preocupado com práticas profissionais mais comprometidas com as transformações sociais. Este processo avança na medida em que os profissionais tenham uma clareza maior da estreita relação entre Ciência Psicológica e Sociedade. Para Camino(1998)"(...) as

diversas teorias e práticas psicológicas cooperam diferentemente na construção da cidadania e no destino da humanidade(...) por sua natureza, todo conjunto de conhecimentos e práticas da Psicologia refere-se, de alguma maneira, à concepção do que é o Indivíduo e a Sociedade e portanto relaciona-se também com o processo de construção da cosnciência coletiva dos direitos da humanidade"(p.47-

48). Portanto, para os sujeitos, não existe uma prática profissional "neutra" ou "ingênua", existe sim, um projeto de sociedade que sustenta determinadas ações dentro de um contexto histórico.