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2 ACCOUNTABILITY: A BUSCA DE UMA CONCEITUAÇÃO

2.2 A accountability e o campo jurídico-administrativo: uma leitura

A construção conceitual de accountability está intimamente ligado ao princípio de

processo ativo, à sua inter-relação com os aspectos conjunturais da sociabilidade humana –

como a cultura que envolve o campo jurídico-administrativo de uma sociedade específica. Para Thompson (1998, p. 17) o “processo ativo” (ação/ato pelo qual o ser humano faz sua história) está conectado à dimensão cultura11, sendo que esta não pode ser tomada apenas como um “sistema de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos, artefatos) em que se acham incorporados” (p. 17):

Cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma

troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão

imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um ‘sistema’. E na verdade o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto. (THOMPSON, 1998, p.17, grifo nosso).

Uma cultura jurídico-administrativa está cravada em um espaço-tempo, por exemplo, só pode ser entendida se contextualizada, consideradas as correlações de força, os interesses sociais, a mentalidade da sociedade no momento histórico específico as quais pertencem. Desta forma, a cultura que gesta a accountability¸ no lugar material que lhe corresponde, tanto forma valores como é consequência da luta e consciência de classe.

11 Na teoria thompsoniana a noção de cultura insere-se como uma das condições materiais e de identidade presentes no processo de formação da consciência, das necessidades e dos interesses de classe. Thompson ao mover o cultural e o econômico em uma articulação dialética mais crítica sobre a dinâmica da luta de classe, superando as ortodoxias marxistas presas ao determinismo do econômico sem cair, com isso, nas teias do culturalismo. Segundo Ellen Wood (2006, p. 61), “o que interessa a Thompson são as relações do processo em que as relações de produção – relações de exploração, dominação e apropriação – dão forma a todos os aspectos da vida social em conjunto e o tempo todo, ou exercem pressão sobre eles.” Thompson (1981, 1987, 1998) com sua ideia de simultaneidade da cultura e do econômico enfatiza o trabalho como a característica fundadora, e ontológica, do ser social. Distintamente do culturalismo, que dá ênfase às determinações dos fatores culturais no processo de formação (desenvolvimento) dos sujeitos, da sociedade e dos conflitos sociais. No culturalismo, princípio norteador da pós-modernidade, “a idéia de uma cultura estável, pré-moderna e organizadamente unificada” é estranho, uma vez que impera a concepção do hibridismo e da liquidez intangível da matéria social. (EAGLETON, 2000, p. 29-30). A teoria culturalista pós-moderna se sustenta em “uma alienação peculiarmente moderna do social em relação ao econômico, os meios para a vida material”, o que conduz a “afirmação de uma identidade específica – nacional, sexual, étnica, regional – em detrimento à ‘transcendência’ dessa particularização”. Ocorre, assim, a generalização dos conflitos pontuais (apartados da luta de classes), e se tornam “o próprio léxico do conflito político”, e o “protesto contra as alienações da modernidade” acaba por gerar o isolamento, a individualização (atomização), “reproduzindo em sua própria fragmentação” culturalista. (EAGLETON, 2000, p. 38 e 43). “Para o culturalismo”, afirma Eagleton (2000, p. 92), “não há questão sobre uma dialética entre a natureza e a cultura, uma vez que a natureza é cultural de qualquer forma.” (LIMA, 2008).

A accountability foi moldada na materialidade histórica, em um tempo/espaço imerso em uma cultura e Experiência12 que se entrecruzam, impactada e impactando as transformações jurídico-administrativos da sociedade. Nesse sentido a investigação sobre a

12 Para Thompson, na tradição marxista (materialista histórica-dialética), a categoria classe social descreve as relações no decurso do tempo e as maneiras “pelas quais se tornam conscientes de suas relações, como se separam, unem, entram em conflito, formam instituições e transmitem valores”. A classe “é uma formação tão ‘econômica’ quanto ‘cultural’.” (THOMPSON, 2001a, p. 260). Para compreender sua constituição, segundo Thompson, é necessário um outro conceito histórico: Experiência, que surge no conjunto das relações produtivas (modo de produção) em conexão com as relações socioculturais de forma não estática. “As pessoas”, na apreensão thompsoniana, “não experimentam sua própria experiência apenas como idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc.”. Além disso, “elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores, ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas”. (Id., 1981, p. 189-190). Essa parcela da cultura corresponde à “consciência afetiva e moral”, sendo que a moral não se refere a “alguma ‘região autônoma’ da escolha e vontades humanas, que surge independentemente do processo histórico”, mas como “contradição [...] um conflito de valor, tanto quanto um conflito de interesse”, já que “toda a luta de classe é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”. (idem, ibidem). Os interesses das pessoas estão em um contínuo movimento, entrelaçadas as condições materiais e as necessidades “face à permanência material da cultura: o modo de vida, e acima de tudo, as relações produtivas e familiares das pessoas” (Id., Ibid., p. 195), que “sentem e articulam a identidade de seus interesses” em oposição aos interesses de outros (opositores). Assim, “a experiência de classe determinada em grande medida pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente.” (Id., 1987, p.10). Para Thompson (1981, p. 112), “é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento”. A experiência, enquanto um conceito de junção, é a mediação pela qual “o modo de produção exerce uma pressão determinante sobre outras atividades”. Por esse conceito de junção, Thompson entende: (1) “necessidade” – norma (antropologia), ou vontades/valores (história); (2) “modo de produção” – “pressão determinante dentro de um complexo processo histórico”; (3) “classe” – “como estruturação de um modo de produção [...] que nunca podem ser predeterminadas”; (4) “determinismo” - “fechamento” ou “pressão”. A “experiência é exatamente aquilo que faz a junção entre a cultura e a não-cultura, estando metade dentro do ser social, metade dentro da consciência social.” (THOMPSON, 1981, p. 405). A “experiência” media o diálogo entre o ser social e a consciência social tendo em vista que “assim como o ser é pensado, também o pensamento é vivido.” (Id., Ibid., p. 17). Nesse sentido, alerta Müller (2002, p. 341): “Thompson observa que as regularidades no interior do ser social, com freqüência resultam de causas materiais que ocorrem de forma independente da consciência ou da intencionalidade. Tais causas inevitavelmente dão ou devem dar origem a experiência vivida, a experiência I, mas não penetram como reflexos na experiência II. No entanto, a pressão dessas causas sobre a totalidades do campo da consciência não pode ser adiada, falsificada ou suprimida indefinidamente pela ideologia [...]”. As experiências são inevitáveis e continuas, exercendo pressão sobre a consciência social, é um contato com dada realidade concreta gerando a construção dos sujeitos conscientes de seus papéis na sociedade de classes. “Dessa forma, a experiência, sem ‘bater na porta’, constitui e nega, opõe e resiste, estabelece mediações, é espaço de prática, intervenção, obstaculização recusa, é processo de formação de identidades de classe, poderíamos acrescentar, de gênero, de geração e etnias [...].” (MÜLLER, 2002, p. 341). Ao analisar os motins provocados pela fome no século XVIII e fins do século XIX, Thompson (1998, p. 150) observa que explicar as reações da sociedade (massa) por um viés interpretativo preso ao “economicismo conduz a reduções e explicações esquemáticas”, muitas vezes restritas a estudos estatísticos, desconsiderando a força e importância de outras motivações, como as socioculturais. Thompson (Ibid., p. 208) afirma que “não há uma única reação simples, ‘animal’ à fome”, por exemplo. Ele continua: “o ‘motim’... não é uma resposta ‘natural’ ou ‘óbvia”, antes de ser uma ação desorganizada/desordeira e irracional, consiste em “um padrão sofisticado de comportamento coletivo, uma alternativa coletiva a estratégias individualistas e familiares de sobrevivência”. Ter fome, complementa, “não impõe que eles devam se rebelar nem determina as formas da revolta”. É a experiência humana com laços socioculturais, construída na sociabilidade contínua dos sujeitos reais, que defini a concretude da ação. Disto resulta que a Experiência, em dada realidade material, como o quadro de fome, ao anunciar “mortes, crises de subsistência” e toda miséria que dizima a sociedade ao impor uma gama de privações conduzem a morte, e independente da ideologia e/ou interpretação os sobreviventes começam a questionar a realidade (contexto sócio-político-econômico) no qual vivem, passando a ter pensamentos diferentes sobre o mercado; se encarceradas, repensam o sistema judiciário; se escravizadas/exploradas questionam a ordem vigente (THOMPSON, 1981, p. 17; LIMA, 2008; SCHUELER, 2014).

accountability deve considerar a forma jurídico-administrativa que influencia sua formação,

resultante da luta (expresso nos modelos civil law13 e conmon law) pela conquista,

consolidação e defesa de interesses e direitos político-sociais e econômicos - presentes nas mais diversas sociedades.

Como exemplos, pode-se elencar os sistemas jurídicos norte-americano e inglês (com origem no conmon law – centrado no direito comum), que se diferenciam dos sistemas brasileiro, francês, italiano e alemão, ligados ao sistema de base romano-germânico (com origem no civil law – que tem como fonte principal o direito legislado).

Esses modelos exercem influência sobre o próprio desenvolvimento e conceituação de accountability14: ao passo que as relações no âmbito da Administração nos EUA e Inglaterra são regidas pelo direito comum (base jurídica assentadas no conmon law) e a organização administrativa é tratada pela Ciência da Administração (ramo da Ciência Política); no Brasil, por exemplo, predomina o campo do Direito Administrativo15 (herança da

13 “O conceito de ‘civil law’ deriva da influência que o Direito Romano exerceu sobre os países da Europa Continental e suas colônias, pois o direito local cedeu passagem quase que integralmente aos princípios do Direito Romano, dando ensejo à elaboração de leis, códigos, constituições [...] A tradição jurídica romano-

germânica tem suas origens no século XII e XIII no período do Renascimento da Europa Ocidental. Neste

momento, em que as cidades e o comércio ganharam nova organização, também se intensificou o ideal de que ‘somente o direito pode assegurar a ordem e a segurança necessárias ao progresso.’ (DAVID, 2002, p. 39) [...] Após a Revolução, com a queda da monarquia absolutista e ascensão da burguesia e do parlamentarismo ao poder, houve o surgimento de um novo direito, alheio às antigas concepções da monarquia e que contrariava os magistrados ainda aliados ao antigo regime. Neste contexto, surgiu a necessidade de controlar a atuação

judicial, limitando o trabalho dos juízes apenas à aplicação literal do texto legal. ‘Para a revolução francesa, a lei seria indispensável para a realização da liberdade e da igualdade. Por este motivo, entendeu-se que a

certeza jurídica seria indispensável diante das decisões judiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes da lei, os propósitos revolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis. A certeza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou melhor dizendo, na própria Lei. Lembre-se que, com a Revolução Francesa, o poder foi transferido ao Parlamento, que não podia confiar no judiciário.’ (MARINONI, 2009, p. 46). [...] Assim, após a Revolução, ganha forças a teoria de Montesquieu para evitar a

concentração de poderes nas mãos de uma só pessoa, que foi combinada com a visão de Rousseau, para afirmar que a lei escrita deveria ser a expressão da vontade da Nação francesa. (WAMBIER, 2009, p. 55) De

tal modo, os juízes passaram a ser meros espectadores do direito, exercendo apenas a função de ‘boca da lei’, pois estavam limitados a afirmar o que já foi dito pelo legislativo, sem qualquer possibilidade de interpretação ou criação. Para Montesquieu ‘o julgamento não poderia ser mais que o texto exato da lei’. (MARINONI, 2010, p. 54). Resumindo, assim, o direito a uma ciência de raciocínio lógico, na qual Wambier demonstra que ‘Lei + fatos = decisão’. (WAMBIER, 2009, p. 55).” (GALIO, 2014, p. 234-236, grifo nosso). Com isso, evidencia-se que a Lei não é um ente neutro, ela é fruto de tensões político-sociais. Os mecanismos de controle do próprio poder se colocam como mecanismos de luta por poder, mediante a restrição de poder de uns em benefício de outros. A ideia de equilíbrio de poder, sempre estará condicionada a possibilidade ou existência de um desequilíbrio de poder. A accountability, portanto, insere-se em um jogo de disputas/controle e/ou afirmação de poder.

14 Este fato pode ser percebido quando das interpretações em torno do desenvolvimento da democracia, bem como, dos checkes and balance e sua influência ou relação na constituição dos mecanismos da accountability, ou das concepções presentes entre os Federalistas estadunidenses que marcaram a própria noção de responsabilidade, participação, sociabilidade e prestação de contas presentes na cultura americana, como se depreende de Madison (in HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788]) e de Tocqueville (1977 [1835]). 15 Em sua exposição, Mello (2012, p. 38, grifo nosso), ensina que: “O que hoje conhecemos por ‘Direito

Administrativo’ nasceu na França. [...] foi sendo construído por obra da jurisprudência de um órgão -

Conselho de Estado - encarregado de dirimir as contendas que surgissem entre as duas partes [administradores e administrados]. Tal órgão, diga-se de passagem, é alheio o Poder Judiciário. Estava e está integrado no próprio

tradição jurídica assentada na civil law), regendo as relações em torno da Administração Pública16. (DI PIETRO, 2013).

O caráter legicêntrico positivado no ordenamento jurídico definido na Carta Magna brasileira de 1988, em seu artigo 5º, II, ao estabelecer que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, referenda a forte tradição do

civil law, no direito brasileiro. (RAMIRES, 2010, p. 61). Este traço jurídico-social reverbera

na própria sociabilidade, em vista que a vinculação do civil law à produção do legislativo resulta na produção continua de leis, muitas que entram e saem de vigor sem o conhecimento da sociedade ou ficam no universo das legislações desconhecidas (em um país marcado pela baixa escolaridade o que dificulta a compreensão jurídica - princípios comumente escritos,

Poder Executivo, a despeito de ter natureza jurisdicional, isto é, de decidir com força de coisa julgada. O Direito Administrativo e o Conselho de Estado tiveram origem quando, sobrevindo a Revolução Francesa, inexistiam disposições que subjugassem ao Direito a conduta soberana do Estado em suas relações com os administrados.

Era preciso aplicar um Direito ‘novo’, ainda não legislado. As normas do Direito até então existentes

disciplinavam as relações entre particulares, inadaptadas, pois, para reger vínculos de outra índole, ou seja: os intercorrentes entre o Poder Público e os administrados, já agora submissos todos a uma ordem jurídica. Tais vínculos, consoante se entendia, demandavam uma disciplina específica, animada por outros princípios, que teriam que se traduzir em normas que viriam a ser qualificadas como ‘exorbitantes’, porque exorbitavam dos quadros do Direito até então conhecido, o ‘Direito Comum’. Foi o referido Conselho de Estado que, com suas decisões, forjou estes princípios e as concepções que se converteram no que se chama ‘Direito Administrativo’. Quanto à formação do Direito Administrativo explica Di Pietro (2013, p. 2): ‘Teve início juntamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público, a partir do momento em que começou a desenvolver-se – já na fase do Estado Moderno – o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade (em decorrência do qual até mesmo os governantes se submetem à lei, em especial à lei fundamental que é a Constituição) e sobre o princípio da separação de poderes, que tem por objetivo assegurar a proteção dos direitos individuais, não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o Estado. Daí a afirmação de que o Direito Administrativo nasceu das Revoluções que acabaram com o velho regime absolutista que vinha da Idade Média. ‘Constitui disciplina própria do Estado Moderno, ou melhor, do chamado Estado de Direito, porque só então se cogitou de normas delimitadoras da organização do Estado-poder e da sua ação, estabelecendo balizas às prerrogativas dos governantes, nas suas relações recíprocas, e, outrossim, nas relações com os governados. Na verdade, o Direito Administrativo só se plasmou como disciplina autônoma quando se prescreveu processo jurídico para atuação do Estado-poder, através de programas e comportas na realização das suas funções.’” Diante da evolução do Direito Administrativo e sua incorporação à dinâmica de funcionamento do Estado, no âmbito da gestão e do direito, evidencia-se que suas relações intrínsecas com os princípios de transparência, controle da coisa pública, responsabilidade, dentre outros elementos que o constitui, criou peculiaridades impares com a noção de accountability, em sua relação com a dimensão pública-governamental. A accountability desenvolveu-se imersa em uma lógica que acompanhou a própria organicidade do Estado, com seus pressupostos de ordem e progresso, liberdade e igualdade, todos ideários subsumidos ao mundo burguês e seus valores/ideias de Direito.

16 Administração Pública, segundo Di Pietro (2013, p.58), em sentido subjetivo, pode-se definir como: “o conjunto de órgãos e de pessoas jurídicas aos quais a lei atribui o exercício da função administrativa do Estado”. Neste sentido, o estudo da Administração Pública deve partir do conceito de Estado, com suas responsabilidades junto a sociedade. Para Meirelles (2014, p. 62): “Esse é o Estado de Direito, ou seja, o Estado juridicamente organizado e obediente às suas próprias leis, o que significa dizer que Estado de Direito é a limitação do poder e o exercício do poder dentro da lei”. Na organização da administração, segundo o próprio Meirelles (Ibid.,, p. 65), “Após a organização soberana do Estado, com a instituição constitucional dos três Poderes que compõem o Governo, e a divisão política do território nacional, segue-se a organização da Administração, ou seja, a estruturação legal das entidades e órgãos que irão desempenhar as funções através de agentes públicos (pessoas físicas)”. Já Administração Pública, segundo o mesmo autor, “em sentido formal, é o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do Governo; e em sentido material, é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral; em acepção operacional, é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços próprios do Estado ou por ele assumidos em benefício da coletividade.”

porém não inculcados) ou pelo descompasso entre a lei escrita e os costumes da sociedade. A influência das práticas civil law no Brasil, no caso da administração pública reverbera na ação: deve-se agir sem deixar opções (ato vinculado), embora existam dimensões que a lei não regula (momento em que o administrador público pode optar entre as várias soluções – ato discricionário), o que exige o estabelecimento de instrumentos de controle capazes de preservar a transparência e a publicidade das opções políticas, como ensina Mello (1998, p. 53): a liberdade conferida ao agente público, oriunda do poder discricionário, é relativa “no sentido de que a liberdade deferida por lei só existe na extensão, medida ou

modalidade que dela resultem.”

Nesse caso, a atividade administrativa deve amparar-se na honestidade, lealdade, sinceridade e boa-fé (princípios da moralidade administrativa17), sendo o Judiciário (como

17 Gonçalves (2011, p.21, grifo nosso), em texto extenso, mas que se opta por transcrevê-lo por sua riqueza teórica e por auxiliar na compreensão de alguns aspectos deste estudo, diz que: “definir o que seja moralidade

não é tarefa fácil, ‘O princípio da moralidade administrativa é de difícil expressão verbal. A doutrina busca

apreendê-lo, ligando-o a termos e noções que propiciem seu entendimento e aplicação’ (Medauar, 2002, p. 153). De toda sorte, falar em moral é sempre complicado, mesmo quando assumimos licitude e honestidade como os critérios diferenciadores entre direito e moral, nem sempre é fácil estabelecer o que é honesto e quais são os

valores de uma sociedade plural, igualmente difícil separar os campos da moral e o da religião, ou melhor, os

das várias religiões. Os administrativistas, pelo menos desde Hauriou, vem distinguindo a moral comum da moral administrativa, aquela ligada à distinção que se faz – e ao que se entende como sendo – bem e mal e está relacionada à distinção entre boa e má administração (cf. Meirelles, 2006, p. 89, Moreira Neto, 2005, p. 96). [...] Em sua origem, a moralidade administrativa parece ter surgido e se desenvolvido associada à ideia de desvio

de poder, no direito brasileiro, entretanto, tendo o desvio de poder se tornado causa de ilegalidade dos atos

administrativos, ‘a moralidade administrativa teve seu campo reduzido’ (Di Pietro, 2000, p. 79), e consequentemente a legalidade passou a reger um campo mais amplo. O que não significa, entretanto, que a legalidade tenha absorvido a moralidade nem que elas se identifiquem, ‘porque a lei pode ser imoral e a moral

pode ultrapassar o âmbito da lei’ (Di Pietro, 2000, p. 79), de qualquer forma, mesmo que o desvio e o excesso

de poder possam representar condutas ilícitas, dependendo do caso criminoso; é possível que pequenos excessos no exercício do poder de polícia ou no da discricionariedade não sejam considerados ilegais, no âmbito administrativo ou judicial, ainda assim, não se pode dizer que eles são morais. A partir das lições de Carlos Alberto Tolovi (2007), chegamos à conclusão que uma possibilidade adequada para compreensão da moralidade

administrativa seria com base na ética kantiana, a partir do imperativo prático ‘age de tal maneira que possas