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3 ANTECEDENTES FILOSÓFICO-POLÍTICOS DA ACCOUNTABILITY

3.5 Locke, Montesquieu e Rousseau: o federalismo estadunidense

3.5.1 A doutrina dos checks and balances: os cidadãos e o controle dos

Na onda que se seguiu a independência norte-americana e a montagem do sistema representativo, que fundamentaria o poder no Estado a ser erguido, os The Federalist Papers trouxeram à baila debates sobre os mecanismos de freios e contrapesos como instrumentos para conter a crise em torno do controle80 das facções e das disputas entre as instâncias governamentais e seus componentes.

A pura separação de poderes colocava-se como insuficiente para a garantia da preservação da liberdade, em uma conjuntura social que tendia à quebra do status quo, movida pela entrada na política de “novos homens” que passaram a participar da gestão da coisa púbica. Estes agentes ao adentrarem nas assembleias estatais as subverteram – tomaram uma feição menos “aristocrático” (elitista), interferindo nos negócios governamentais e judiciais. Este cenário induziu os federalistas a defenderem a separação de poderes; em um

80 Os mecanismos de controle se colocaram como um dos principais campos de conflito entre federalistas e antifederalistas, com seus contra-argumentos levantados em oposição ao sistema dos checks and balances.

equilíbrio no qual afirmava-se a preservação das competências de cada poder, mas não de forma exclusiva.

No ordenamento político-administrativo as esferas governamentais passariam a ter atribuições específicas: funções de confeccionar a lei, de executá-las e de adjudicá-las. No entanto, muito mais que separar os poderes, construía-se uma composição de poderes, de forma a balanceá-los – doutrina presente no pensamento de Locke e Montesquieu. Afirmava- se com esta organicidade do Estado, dos poderes governamentais, uma espécie de limitação, de controle endógeno, inerente à própria organicidade do governo, criando uma relação de “fiscalização” entre pares (do mesmo nível). Uma esfera do governo poderia exercer alguma influência sobre outra, respeitando a autonomia, com o fim de resistir e prevenir a concentração de poder ou a investida de outros poderes.

Nos argumentos de Madison (HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788]), estabelecia-se um ordenamento que continha tanto a vontade de cumprir a constituição, bem como, esta vontade passaria a fazer parte da própria natureza dos homens enquanto freio à expansão do seu próprio poder. Na esfera pública os mais diversos ramos do governo seriam desencorajados a expandir seu poder ou adentrar no campo de competência do outro, seja por temor de retaliação, sanção ou pelos custos da ação. O equilíbrio passaria a ser assentado no autocontrole, moldando-se o sistema do checks and balances e sua lógica de contenção, mesmo que houvesse a diferenciação dos pesos entre os poderes:

But the great security against a gradual concentration of the several powers in the same department, consists in giving to those who administer each department the necessary constitutional means and personal motives to resist encroachments of the others. The provision for defense must in this, as in all other cases, be made commensurate to the danger of attack. Ambition must be made to counteract ambition. (...) But what is government itself, but the greatest of all reflections on human nature? If men were angels, no government would be necessary. If angels were to govern men, neither external nor internal controls on government would be necessary. In framing a government which is to be administered by men over men, the great difficulty lies in this: you must first enable the government to control the governed; and in the next place oblige it to control itself. (MADISON, in HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788], p. 63).81

A grande inovação do arranjo dos checks and balances foi o estabelecimento do

81 “Mas a grande segurança contra a concentração gradual dos vários poderes no mesmo departamento consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir às invasões dos outros. A provisão para a defesa deve, neste caso, como em todos os outros casos, ser proporcional ao perigo de ataque. Ambição deve ser feita para contrariar a ambição. (...) Mas o que é governo em si, mas a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana? Se homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, nem os controles externos nem internos do governo seriam necessários. Ao enquadrar um governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: primeiro você deve permitir que o governo controle os governados; e, em seguida, obrigá-lo a se controlar.” (Tradução nossa).

mecanismo de resiliência: a tensão entre as forças reativas do sistema impunha, por sanções, que mesmo com a desigualdade de poder (visto que a igualdade é ilusória), o sistema sempre retorna ao estado inicial, ou seja, de equilíbrio, possibilitando a preservação da ordem.

Os diferentes campos do Estado e do governo representavam heterogêneas forças sociais a serem contidas em suas pretensões de poder, em vista da estruturação do governo ter sido composto por setores populares e representava a emanação do povo. Segundo Madison (HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788]), fazia-se necessário reordenar o equilíbrio de forças. A Câmara baixa deveria ser contida, pois era a mais forte, em virtude de ser composta por membros do povo, ou por estar mais próxima dos anseios desta massa contava com seu amplo apoio. Era necessário adotar o mecanismo de eleições para esta casa em intervalos de tempo mais curtos e diretamente; diversamente o Senado, mais “aristocrático” (elitista) seria eleito para mandatos mais longos e indiretamente.

Essa concepção dos federalistas acerca da configuração das eleições, leva-os a acreditar que a Câmara seria composta por representantes do povo, os quais adviriam de representantes naturais, como é possível notar na seguinte afirmação de Hamilton: “a representação popular, quer seja mais ou menos numerosa, consistirá quase inteiramente de proprietários rurais, comerciantes e membros das profissões acadêmicas.” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788], p. 157). O Senado, se insere nesse jogo como freio às pretensões absolutistas do povo-rei, criando um contrapeso que obstaculizaria as forças sociais. Era fundamental reorganizar a atuação, composição e a própria razão de ser da Câmara.

Esse projeto dos federalistas foi rebatido pelos anti-federalistas que acusavam a proposta de constituir um Senado com superpoderes, aristocrático e distante do povo. O sistema republicano no equilíbrio Câmera-Senado obstruiria a ampla participação e fiscalização a ser realizada pelo povo – este teria dificuldade para identificar a origem da má administração ou do abuso de poder. (MANIN, 1994)82.

Além disto, esse mecanismo de eleição impunha, evolutivamente, que os membros da Câmara seriam extraídos da classe de cidadãos menos solidária com os anseios populares e com maior tendência a defender a minoria dos cidadãos. Os federalistas com esta

82 De acordo com Manin, esta foi a grande crítica levantada pelos anti-federalistas e que ameaçavam a participação/fiscalização política do cidadão norte-americano: “First, he argues, the Anti-Federalists oppoed the balanced system provided by the constitution on the ground of its complexity. In their opinion, such a complex government hindered democratic accountability: the people would never be able to locate precisely the source of mismanagement or abuse.” (MANIN, 1994, p. 32). (“Primeiro, ele argumenta, os antifederalistas opunham o sistema equilibrado fornecido pela constituição com base em sua complexidade. Na opinião deles, um governo tão complexo dificultou a prestação de contas democrática: as pessoas nunca seriam capazes de localizar precisamente a fonte de má administração ou abuso .” (Tradução nossa)).

reforma deslocaram o poder para o centro, criando instrumentos de filtragem das decisões ou pretensões populares e estabelecendo uma estrutura legislativa nacional elitista.

Com o mecanismo do checks and balances proposto pelos federalistas materializou-se a tentativa de conciliar o direito de voto da maioria – sufrágio universal masculino e não censitário – com a garantia dos direitos de propriedade da minoria. Neste ponto repousava a estrutura sócio-política norte-americana que as elites defensoras do Estado Federal buscavam consolidar: que as classes trabalhadoras e pobres deveriam delegar o poder a outros homens de maior vulto, mais ricos e, geralmente, seus patrões, tendo em vista que estes teriam mais condições de defender seus interesses. Hamilton (In HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788], p. 255) deixa isso claro, quando assinala que:

Mecânicos e manufatores sempre se inclinarão, com poucas exceções, a dar seus votos a comerciantes (...). Sabem que o comerciante é seu benfeitor e amigo natural e percebem que, por mais que possam ter uma justa confiança em seu próprio bom senso, seus interesses serão mais eficazmente promovidos pelo comerciante que por eles próprios. Estas e muitas outras considerações que poderiam ser feitas provam, e a experiência confirma, que artesãos e manufatores estarão em geral dispostos a dar seus votos aos comerciantes e aos indicados por eles. Cabe-nos, portanto, considerar os comerciantes como representantes naturais de todas essas classes da comunidade.

Hamilton retrata que as preferências eleitorais não seriam fruto de tensões entre classes sociais; mas, do conflito de interesses de setores que se opunham ou disputavam o poder, como comércio e agricultura, ou a luta por representação de interesses no setor fundiário, perceptível em sua afirmação: “considero que este [o setor fundiário], do ponto de vista político, e particularmente no tocante a impostos, é perfeitamente unido, desde o mais abastado proprietário rural ao mais pobre arrendatário.” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788], p. 255).

Segundo Manin (1994), os federalistas iniciaram uma lenta mais contínua política de superação da visão tradicional de composição dos poderes da União, rompendo com a lógica que os poderes eram representantes de diferentes forças sociais. Os federalistas abandonaram (por aperfeiçoamento/superação) a clássica doutrina constitucionalista Whig83,

83 O Constitucionalismo Whig também é conhecido como “Constitucionalismo Termidoriano” e tem sua origem na Revolução Francesa, em virtude do processo de execução de líderes jacobinos que desencadeou a reação denominada “Golpe do 9 Termidor” (1794), elevando grupos conservadores ao poder encerrou o período do “Terror” que perdurava desde 1793. Já a expressão “Constitucionalismo Whig” remonta ao partido Whig da Inglaterra (século XVIII), que se opunha ao partido Tory. Os Whigs (amantes da liberdade que não abandonam a monarquia - defendiam a origem contratual do governo, sendo que do consentimento dos cidadãos se extraía o estatuto do pacto social) eram a burguesia urbana, liberal e favorável ao poder do Parlamento, enquanto os Tories (defensores da monarquia que não abandonam a liberdade - considerando o governo sempre sagrado, ainda que consistisse em uma tirania) eram a nobreza latifundiária, conservadora e favorável ao poder do Rei. (ASSIS, 2012, p. 201-202). Segundo Costa (2012), “O núcleo do constitucionalismo Whig era marcado por duas ideias: primeiro, a função essencial do governo era proteger os direitos dos indivíduos; segundo, a função essencial de

que os induzia a acreditarem que a Câmara baixa seria representante privilegiada ou exclusiva do povo.

O constitucionalismo norte-americano inicialmente preso a doutrina Whig, à tradição e ao ethos puritano e, ainda, à luta da elite branca e proprietária em defesa de sua manutenção no poder passa a substituir a ideia de processo radical de mudança de regime para o de mudança lenta e evolutiva (SAMPAIO, 2010, 2011), sem radicalismo ou revolução/violência, transformações não-imediatas, mas duradouras e, em sua maioria, negociadas.

Com esta mudança todos os ramos do governo passam a ser considerados agentes do povo. A mudança encerra a noção de distinção (divisão racional e funcional do poder) ligadas a forças sociais, afirmando-se a diferença nas funções por eles exercidas, tal como postulado pela teoria da separação de poderes. Esta mudança abalava a possibilidade de disputas de classe no governo, afirmava a teoria dos checks and balances e expressava a ideia de “neutralidade”, como conduzia para a aceitação de uma visão igualitária de cada esfera do governo reforçando os princípios de proteção equânime dos/entre poderes.

As mudanças operadas a partir do constitucionalismo Whig, com sua nova feição conciliatória/consensual/evolucionista, consubstanciou o mecanismo de checks and balances, instrumento a dificultar o exercício soberano do poder popular - as transformações adviriam de uma lenta evolução, fruto de um processo negocial e de acomodações, sem tensões ou fraturas sociais.

Como se depreende da paradoxal leitura do Federalista nº 63, que volta a opor Câmara-Senado, mesmo com as mudanças de percepção relativas à doutrina Whig, Madison argumenta sobre a imperiosa necessidade de restringir o poder popular e o controle exercido pelo Senado, a fim de refrear as paixões da Câmara:

As the cool and deliberate sense of the community ought, in all governments, and actually will, in all free governments, ultimately prevail over the views of its rulers; so there are particular moments in public affairs when the people, stimulated by some irregular passion, or some illicit advantage, or misled by the artful misrepresentations of interested men, may call for measures which they themselves will afterwards be the most ready to lament and condemn. In these critical moments, how salutary will be the interference of some temperate and respectable body of citizens, in order to check the misguided career, and to suspend the blow meditated by the people against themselves, until reason, justice, and truth can regain their authority over the public mind? (MADISON, in HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788], p. 371).84

uma constituição era limitar ou controlar o poder governamental que, inevitavelmente, teria uma tendência a ameaçar os direitos individuais, cuja proteção foi justamente o motivo de instituição do governo”.

84 “Como o sentido frio e deliberado da comunidade deve, em todos os governos, e na verdade prevalecerá, em todos os governos livres, em última análise, sobre as opiniões de seus governantes; assim, há momentos

A adoção dos checks and balances estabeleceu freios à concretização dos desejos impetuosos do momento. Mecanismos de sanção, freios, controle e pesos impediam arroubos de mudança ou transformações radicais. Sua execução condicionou-se a uma racionalidade não apenas amparada na necessidade, mas nas condições e na realidade preservadora do direito inalienável e natural do homem. Para isso os checks and balances foram desenhados – filtrar os desejos racionais dos irracionais.

Os checks and balances inseriam-se como mecanismo de filtros, muito mais que filtrar as demandas das lutas travadas pelas forças sociais inseriam-se no debate da garantia a separação e a independência das esferas do governo. Mas, além de buscarem evitar a tirania, o que está por detrás deste mecanismo é a contenção social e que se evite qualquer radicalismo.

A ideia de filtragem pressupõe a existência de homens distintos, “cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse de seu país e cujo patriotismo e amor à justiça serão menos propensos a sacrificá-lo a considerações temporárias e parciais” (MADISON, in HAMILTON; MADISON; JAY, 1993 [1787-1788], p. 137). O que se buscou construir com o Estado federal e a própria adoção dos checks and balances foi estruturar uma organização política que mantivesse a ordem social-política-econômica, uma vez que “o objetivo de toda organização política é (...) obter como governantes os homens dotados da maior sabedoria para discernir o bem comum e da maior virtude para promovê-lo” (p. 376).

O caráter universal e não censitário do sufrágio que, em tese, permitiria a eleição de qualquer representante do povo, independente da classe ou categoria de cidadãos, ocultava seu caráter excludente. Se na eleição de representantes primava-se pela escolha dos mais capacitados/qualificados, os indivíduos escolhidos pertenciam quase sempre à “aristocracia” (elite) – considerando-se a ideia de homens distintos. Por esta razão os antifederalistas criticavam a Constituição, afirmando que ela seria um plano para “aumentar as fortunas e a respeitabilidade dos poucos bem-nascidos e oprimir os plebeus.” (KRAMNICK, 1993, p. 61).

Diante desse quadro, a república norte-americana com seus mecanismos de checks

and balances e correlações de força nas esferas sociais definiram um modelo de Estado, de

nação e de governo. Este modelo foi fortemente marcado pela luta contínua em torno dos ideários liberais de direito à vida, segurança e os propalados direitos inalienáveis do homem -

particulares nos assuntos públicos quando o povo, estimulado por alguma paixão irregular, ou alguma vantagem ilícita, ou enganado pelas deturpações engenhosas de homens interessados, pode pedir medidas que eles mesmos mais tarde serão os mais preparados para lamentar e condenar. Nestes momentos críticos, quão salutar será a interferência de algum corpo temperado e respeitável dos cidadãos, a fim de verificar a carreira equivocada, e suspender o golpe meditado pelo povo contra si mesmo, até que a razão, a justiça e a verdade possam recuperar suas vidas, e autoridade sobre a mente do público?” (Tradução nossa).

liberdade, felicidade e propriedade privada.

A estrutura política republicana norte-americana foi erguida amparada nos valores de igualdade e liberdade, sem cair nos braços da “democracia pura”, mas, em uma democracia subsumida à república, estabelecendo os limites e abrangências da participação política. Com o republicanismo norte-americano amplia-se o debate sobre os limites do Estado Moderno e o papel dos cidadãos nas estruturas de poder.

Foi com Hegel que esse debate se adensou, ao teorizar a separação entre Estado e Sociedade Civil, concebendo que só há liberdade no Estado: o sujeito só pode agir (liberdade de ação e de responsabilidade) guiado por leis – o direito é o existir da vontade livre. Em sua obra, Princípios da Filosofia do Direito, Hegel (2005a [1820]) desenvolve a ideia de liberdade enquanto valor absoluto. Trabalhando com conceitos filosóficos de moralidade, eticidade, liberdade, dentre outros, ele concebia o Estado como o fundamento da liberdade: é no Estado que a liberdade se realiza plenamente. Desta forma, Hegel sedimentou as bases do Estado de Direito.