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4 OS (DES)CAMINHOS DA DEMOCRACIA: O ESTADO GERENCIAL

4.2 Marx e a democracia verdadeira: a reintegração do humano com o cidadão

O mundo moderno ergueu-se tendo como um de seus paradigmas a cisão humana, entre o particular e o universal – um dualismo abstrato que corrompeu a relação indivíduo- sociedade, gerando a dicotomia entre “indivíduo pessoa” e “indivíduo classe”: antagonismo entre a vida do indivíduo e o desenvolvimento do gênero humano. Mas, este homem não nasce homem, pois, sua singularidade não se resume ao biológico; e, a sociedade não se

resume a um ambiente no qual ele se desenvolve ou mera aglomeração de indivíduos. Em uma concepção histórico-social o homem, em sua singularidade, é um ser social, uma síntese de múltiplas determinações. (MARX, 2008 [1859]).

Na relação de múltiplas determinações entre o indivíduo (o singular) e a sociedade (o particular) – campo de concretização das relações entre o indivíduo (singular) e o gênero humano (o universal) – existe um vir-a-ser. E, é em um contínuo vir-a-ser social e histórico que o homem é criado no homem singular, porquanto “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade.” (MARX, 2010a [1844], p. 145, grifos do autor).

Nessa dialeticidade entre singular-particular-universal tem-se uma relação imersa na universalidade, que se concretiza na singularidade mediante a dinâmica social das particularidades. Em síntese, a universalidade se concretiza social e historicamente por meio da atividade humana, que é social – o trabalho, enquanto categorial fundante do ser social: por meio do trabalho o homem supri suas necessidades indispensáveis à manutenção da vida. (MARX, 2013 [1867]; LUKACS, 2013)

Esse trabalho é social, pois é realizado em um meio social e é atividade natural, pois realiza-se externamente ao homem – é do mundo sensível no qual o homem se encontra. Logo, a essência ontológica do trabalho encontra-se na inter-relação entre o ser humano (particular) e a natureza (tanto inorgânica como orgânica), para a criação de objetos úteis à vida (valor de uso): produto do trabalho útil e condição da existência humana. Tais mediações, operadas pelo trabalho, são transformadoras tanto da natureza como dos homens (sendo que os homens são transformados de forma singular, particular e universal).

Diante dessa compreensão, concebe-se que a objetivação plena do indivíduo (singular) não se opera apenas pela apropriação de uma socialidade concreta (particular). As objetivações genéricas (gênero humano) também devem ser compartilhadas, pois estas são objetivações humanas, concretizadas (criações humanas) por intermédio de várias gerações ao longo da história.

Em outras palavras, as objetivações pertencem à dimensão ontológica da atividade humana, uma vez que o trabalho é social, constituidor do homem, seja: na relação do indivíduo com a produção – a execução da atividade; na relação do indivíduo com o produto – fruto da atividade executada; na relação do indivíduo com o gênero humano – a relação do homem com os demais seres humanos. (MARX, 2010b [1844]). Ao ancorar-se nestes princípios, pode-se afirmar que não há sociedade independente dos indivíduos, ou sociedade autônoma – que exista acima dos indivíduos; bem como não há antagonismo entre o homem

(gênero humano) e a sociedade

Para Marx (2010b [1844]), deve-se evitar uma compreensão abstrata da sociedade, em confronto com o indivíduo, pois este é uma expressão, uma exteriorização, uma confirmação da vida social. A essência humana é um produto histórico-social que deve ser objetivada por cada indivíduo singular no decorrer de sua vida em sociedade. E, o genérico (Gattungswesen) do homem, definidor da humanidade, da universalidade humana, faz-se: “quando [o homem] prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto”; e, quando – em uma relação de nexo com a ação anterior – “se relaciona consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso livre.” (MARX, 2010b [1844], p. 83-84, grifos do autor).

Esse princípio pode ser entendido a partir da negação da ideia de universalidade

em si e por si de uma substância/elemento/coisa/ser qualquer, como Marx e Engels retratam

na obra Sagrada Família, ao chamar a atenção para o fato que na relação entre o singular- particular-universal: a universalidade é uma abstração que tem lastro na realidade concreta, ela não pode ser compreendida por si mesma, como uma “significação mística mais alta, frutas que brotam do éter de teu próprio cérebro e não do solo material, que são encarnações ‘da fruta’, do sujeito absoluto.” (MARX; ENGELS, 2011 [1845], p. 74, grifos do autor).

Nessa dependência coisal, os indivíduos estão subordinados ao poder das coisas, enfeitiçados por uma força desumana – o Capital, que semelhante a um atol, habitado por sereias, atrai os corpos famintos (por necessidades que não existem, mas, são levados pela ordem do capital a acreditarem que existem). São atraídos à negação de sua própria natureza singular, de sua individualidade. O capital faz emergir um mundo enfeitiçado, desumanizado, que desagrega os indivíduos, lançando-os em uma luta concorrencial entre si: “Se o dinheiro [...] ‘vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces’, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés.” (MARX, 2013 [1867], p. 829-830).

A nova ordem social passa a atribuir ao indivíduo a ideia de liberdade: sujeito de vontades individuais, senhor de seu próprio destino, tendo o mercado como lócus de sua realização. São trabalhadores livres das amarras da servidão medieval – “não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos, os servos etc.” (MARX, 2013 [1867], p. 786). Passam a pertencer ao mundo sob os auspícios do capitalismo – decantado por uma doutrina panglossiana que afirmava ter a humanidade atingido o melhor dos mundos possíveis.

Liberdade, Igualdade e Propriedade: eis a tríade das abstrações: Bentham, Tocqueville e Stuart Mill; utilitarismo, democracia e individualismo: a tríade teórica da modernidade. Eis a fórmula jurídica da modernidade, o Éden dos direitos humanos. No novo

Paraíso o trabalhador passa a ser considerado como autônomo, pois “nem os meios de

produção lhes pertencem, [...] estando, pelo contrário, livres, soltos e desprovidos deles. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista.” (MARX, 2013 [1867], p. 786).

Mas, se agora os indivíduos estão livres da servidão medieval, da escravidão, também ficaram nus, pois foram despidos dos meios de produção: a liberdade que se firmou, sob os agouros do capital, entrelaçou-se com a nudez. Constituiu-se uma liberdade crivada pela individuação do homem, que agora “aparece como ‘átomo’, como ‘unidade monádica’, fechado em si mesmo, solitário, como um mundo à parte, que se basta a si mesmo, independente, isto é, como singularidade negativa, isolada.” (CHAGAS, 2012, p.1).

O que se eleva, a partir dessa nudez, é uma liberdade ilusória, na qual os indivíduos nus, efetivam uma liberdade e uma igualdade anómalas, em um reino encantado – o mercado. No reino encantado, a partir das novas relações de produção, passam a se estruturar relações indivíduo-Estado na forma sujeito de direito – direito que existe vinculado a um modo de organização da subjetividade e objetividade humana – em um circuito de trocas. Sujeitos que, nas palavras de Marx (2008 [1859], p. 209-210, grifo nosso):

[...] devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As

pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias.

Sendo a circulação de mercadorias anterior ao direito, tem-se que a ordem jurídica só se desenvolve a posteriori, como resultado da troca; muito embora, essa forma não produza a troca nem a consubstanciação das relações entre as partes envolvidas na troca. Esta é uma ordem de reciprocidade vis-à-vis, cujos sujeitos de direito, na lógica do Capital (em seu reino encantado), se posiciona em uma relação jurídica de igualdade (relação entre sujeitos iguais no contrato). E, essa igualdade só pode ser compreendida em sua externalidade – no valor da igualdade dentro de uma relação de troca, na qual as relações jurídicas (formais) entre os sujeitos são iguais:

De fato, como a mercadoria e o trabalho estão determinados tão somente como valor de troca (...) os indivíduos, os sujeitos, entre os quais esse processo transcorre, são

determinados simplesmente como trocadores. Entre eles não existe absolutamente nenhuma diferença, considerada a determinação formal, e essa determinação é econômica, a determinação em que se encontram reciprocamente na relação de intercâmbio, o indicador de sua função social ou de sua função social mútua. Cada

um dos sujeitos é um trocador, i. e., cada um tem a mesma relação social com o

outro que o outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por isso, a

relação de igualdade. (MARX, 2011a [1858 / 1939], p. 184, grifo nosso).

O indivíduo passa a existir, nessa ordem social, à medida de produtor de valor de troca, e suas relações no processo de troca de mesmo valor são pautadas pela reciprocidade e equivalência, “como sujeitos que atestam a sua equivalência”. Na troca das suas mercadorias (das suas propriedades), “como sujeitos de igual valor eles são indiferentes as suas outras peculiaridades individuais” (MARX, 2011a [1858 / 1939], p. 187), o que implica na negação de sua existência natural, configurando a desnaturação do indivíduo, como destaca Chagas: “esse indivíduo egoísta, coisificado, como mercadoria está divorciado dos meios de produção que não lhe pertence, uma riqueza que lhe é estranha, que se volta contra ele e o desumaniza e, portanto, não a serviço dele e das condições de sua existência.” (CHAGAS, 2012, p. 3).

Embora a sociedade (o particular) seja produto dos indivíduos humanos (o singular), mediante relações sociais, e que nesta reciprocidade (determinação social) o indivíduo seja constituído enquanto gênero humano (o universal), na sociedade capitalista este indivíduo tem suas relações humanas, sua vida humana esvaziada. Isto resulta em uma individualidade negada, esvaziada: o indivíduo é reduzido a um caráter econômico, determinado pelas relações de mercado, pelo valor de troca.

Ao ser reduzido à personificação do mundo da produção, o indivíduo é convertido a trabalhador (vendedor da força de trabalho) e consumidor – um portador e agente de valor, que tem no dinheiro o mediador de suas relações sociais. Muito mais que comprador de mercadorias e vendedor de força de trabalho, na ordem econômico-social regida pelo valor de troca, o indivíduo (trabalhador) também “tornou-se uma mercadoria e é sorte para ele conseguir chegar ao homem [burguês] que se interesse por ele” e “longe de poder comprar tudo, tem de vender-se a si próprio e a sua humanidade.” ((MARX, 2010b [1844], p. 24, 28).

As revoluções burguesas ao reestruturarem as bases econômicas, políticas, sociais e culturais na modernidade, mostraram que é possível manter a desigualdade socioeconômica prescindindo da desigualdade jurídica. É possível, portanto, construir um ordenamento social com liberdade política e igualdade jurídica preservando a estrutura de classes sociais, de exploração social, de diferenciação social. E isto é possível porque esta diferenciação é mascarada pelo direito igualitário, pois este constrói a ideia de livre escolha, que todos são iguais para escolher seus destinos: cabe-lhes escolherem entre serem ou não serem

proprietários de bens/mercadorias.

Nesse movimento único, o direito e o Estado moderno se locupletam e estão ligados de forma indissociáveis ao modo de produção capitalista, porquanto, consolidou-se a cisão entre Estado e sociedade civil. Esta cisão política, por seu turno, materializou na separação entre o direito público e o direito privado a separação entre o homem e o cidadão: o homem passa a ser definido pelo direito, que lhe outorga existência jurídica, passando a haver uma inversão de papéis – o criador passa a ser criatura e a criatura o criador.

Marx e Engels relacionam a existência da sociedade aos fenômenos históricos. Não é possível entender as condições sociais, políticas e econômicas que alteram a realidade concreta da socialidade humana sem levar em consideração as lutas presentes nas próprias relações sociais: “essa sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que descuidava das relações reais, limitando-se às pomposas ações dos príncipes e dos Estados.” (MARX; ENGELS, 2007 [1845 / 1932], p. 39).

O aparato estatal e seu ordenamento jurídico se fundamentam na sociedade civil, são dependentes do modo como se produz e reproduz a vida social. A existência da sociedade civil, portanto, é condição de existência do aparato estatal, do Estado; é produto das contradições e das lutas de classe presentes na sociedade civil: “o Estado, a ordem política, é o subordinado; a sociedade civil [bürgerliche Gesellschaft], o reino das ligações econômicas, é o elemento decisivo.” (ENGELS, 1975 [1886 / 1888], p. 30).

Para Marx e Engels (2007 [1845 / 1932]), portanto, diferentemente de Hegel, o Estado ascende, organiza-se, emerge das relações de produção, e não como representação da busca do bem comum, mas como expressão da estrutura de classes inerente ao mundo da produção. A sociedade civil seria a “aparência real” – a sociedade das trocas e da livre concorrência (e como tal constitui-se como sociedade burguesa, como formação social que produz e reproduz os valores burgueses, independentes de sua vontade):

A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de seu arbítrio. (MARX; ENGELS, 2007 [1845 / 1932], p. 93).

É nessa dialeticidade entre o trabalho e o capital que a sociedade civil molda o Estado, pois aquela tem primazia ontológica em relação a este, o que lhe impinge identificação na ordem social. Mas a sociedade civil também é moldada por essa relação, em vista que, o Estado, ao concentrar funções outrora dispersas na sociedade civil, cria outras,

retornando sobre a sociedade civil, alterando-a. Marx (2008 [1859], p. 47), no Prefácio à

Contribuição à crítica da economia política, esclarece esta relação, entre Estado e sociedade

civil:

Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução do espírito humano; estas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais da existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel [...] compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Chequei também à conclusão que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na economia Política. [...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.

Na obra de Marx, todavia, é possível identificar uma leitura mais complexa da dicotomia entre Estado e sociedade civil, tendo em vista que a leitura marxiana desta relação não se restringe ao momento da estrutura. Marx indica ao discorrer sobre a revolução política decorrida na França de 1789, que ela “decompôs a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, ou seja, nos indivíduos, por um lado, e, por outro, nos elementos materiais e

espirituais que compõem o teor vital, a situação burguesa desses indivíduos.” (MARX, 2010d

[1844], p. 41, grifos do autor).

À medida que o capitalismo se complexifica mais invisíveis ficam os nexos causais internos às relações sociais. A reificação cinde a relação singular-particular-universal em uma dicotomia entre a esfera particular (o indivíduo) e a esfera do coletivo (tomada como universal, mas desprovida de universalidade, em virtude que é compreendida como massa, compostas de múltiplas identidades e não unidades/indivíduos).

No domínio da sociedade capitalista, o indivíduo alienado vê seu trabalho tornar- se estranhado: as forças e os produtos de seu trabalho lhe são subtraídas, sua generidade é negada, seu ser genérico é convertido em um ser alheio a ele próprio, concorrencial, egoísta, unilateral. Sua generidade passa a ser realizada de forma falsa, ilusória por um Estado considerado como um poder arbitrário que domina de fora a sociedade, gerando um outro estranhamento: a cidadania – “Como mercadoria, ele é cidadão do mundo” (MARX, 2013 [1867], p. 139) –, uma idealidade universal irreal que reforça a fragmentação de sua vida real, de sua unidade singular.

É a negação, segundo Marx (2010b [1844]), do zoon politikon, da definição de homem que não é apenas um animal social, mas, um animal que só pode desenvolver-se

plenamente como indivíduo na sociedade. Diante disto, o Estado – que só reconhece o indivíduo como cidadão, cuja existência está condicionada à propriedade, ao mercado e ao valor de troca – não tem condições de romper com a fragmentação singularidade- particularidade-universalidade, antes a reproduz.

O Estado e sua organização política – sedimentado em uma ordem democrática liberal – no âmbito da sociedade civil burguesa, para Marx, não pode encontrar as soluções para os males que afligem a humanidade, pois o Estado e a sociedade civil burguesa buscam soluções que lhes são externas: “Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de uma falta de assistência, agora se faz derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos pobres e, desse modo, neles punida” (MARX, 2010c [1844], p. 54); ou, na ordem política: “nenhum dos partidos encontra a causa na política geral; ao contrário, cada um deles a encontra na política do partido adversário, porém, ambos os partidos sequer sonham com uma reforma da sociedade.” (p. 48).

As soluções, na perspectiva da democracia burguesa, são operadas por reformas do Estado, em medidas burocráticas ou ações paliativas, uma vez que: “O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição.” (MARX, 2010c [1844], p. 60). Desta feita, os problemas sociais, para Marx, não podem ser resolvidos pelo Estado (este está a serviço do Capital), nem pela administração, nem pela política, sobremodo pela política burguesa, porque estas não abalam e, tampouco, questionam as bases das desigualdades.

Na sociedade moderna, apenas com a verdadeira democracia tem-se a experiência humana se reencontrando com suas bases ontológicas – o humano deixa de ser definido pela abstração jurídica, uma vez que o indivíduo-singular se reconecta com a particularidade, em simbiose com o universal: rompe-se a cisão entre o “social” e o “político”, pois a democracia se materializa na realidade concreta – com a “vida”, na indissociabilidade entre a comunidade (forma em movimento que integra o Estado e a sociedade civil), como afirma Marx: “na democracia, o princípio formal é idêntico ao princípio material” (MARX, 2010a [1844], p. 88), o que equivale a dizer que “a democracia é ao mesmo tempo forma e conteúdo.” (p. 87).

Nessa confluência teórica tem-se, com Marx, a evidenciação ontonegativa da política democrática burguesa. A superação da reificação que cindiu a relação singular- particular-universal, gerando a dicotomia entre a esfera particular e a esfera do coletivo, deve ser superada, mas não o será pela via exclusiva da ação política. Marx afirma que “A

definitiva da emancipação humana em geral, mas, constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui.” (MARX, 2010d [1844], p. 41).

Mas, na modernidade, o indivíduo atomizou-se, individualizou-se (homem egoísta), transmudou-se em mercadoria (cidadania burguesa). Estranhado de suas relações com a totalidade social, o sujeito adentrou no campo da representação política, convertido em um cidadão, cuja existência ilusória é dada pelo Estado/direito: o dinheiro é o mediador entre o homem e sua generidade; mas, o Estado coloca-se como mediador entre o homem e sua liberdade política – uma emancipação política, fruto da cisão entre o homem e o cidadão.

Por isso, a crítica de Marx à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, uma vez que esta não considera como autêntico o homem-singular senão o cidadão, e apenas enquanto cidadão burguês, emancipado politicamente: “os assim chamados direitos

humanos, os droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os

direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade.” (MARX, 2010d [1844], p. 48, grifos do autor).

Marx (2010d [1844]) critica o caráter abstrato do homem defendido pela

Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: o homem está distante de sua generalidade;

sua individualidade esta atomizada em uma existência meramente formal e centrada no valor de troca; a sociedade civil apresenta-se como externa ao indivíduo, apenas ligado a este em virtude da preservação da propriedade e da existência (vida biológica) do próprio sujeito egoísta, ou seja, preservar o cidadão.

Deve-se, segundo Marx (2010d [1844]), romper com a abstração da cidadania burguesa, construir uma sociabilidade que finde com as mediações do dinheiro (salário) e do