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3 ANTECEDENTES FILOSÓFICO-POLÍTICOS DA ACCOUNTABILITY

3.6 Hegel: a lei e a superação do contratualismo

Nas Cidades-estados Gregas, os filósofos pré-socráticos possuíam uma visão cosmológica da realidade – havia uma preocupação com o entendimento da essência do cosmos e não com a natureza humana. Para aqueles pensadores existia uma coincidência entre o mundo antropológico e o cosmológico, entre as leis humanas (Direito positivo) e as leis naturais (Direito Natural – emanações da lei divina): constituiu-se nesta sociedade o

jusnaturalismo antigo (o direito natural, não subordinado à vontade humana, é um preceito

superior, imutável – as coisas são como são – e estável – universalidade).

Sófocles (2011 [427 a.C.]), na obra Antígona, questionou a validade das leis positivas impostas pelos reis ao povo, desqualificando-as, em face da supremacia das leis dos deuses – existia, portanto, um dualismo assimétrico entre o direito natural e o direito positivo. Para Aristóteles (1985 [330-323 a.C]), esse dualismo tinha no direito natural princípio universal (seu valor independia da pólis – era uma "lei universal"); e, no direito positivo seu valor legal, sua validade particular, referia-se à conduta – comportamento que ganha qualidade de bom ou mal à medida que eram estatuídos ("lei particular").

Nessa relação dualista existia, segundo Aristóteles (1985 [330-323 a.C.]), a presença da inscrição justiça na virtú. Embora distintas, a justiça só se aproximava da virtú em comunidade, na relação com o outro, ou seja, a justiça só existia na pólis; fora da pólis o

homem encontrava-se em necessidade. Desta forma, a koinonia politiké – o agregado humano de cidadãos livres e iguais que governavam e eram governados – não se distinguiam da pólis, ou seja, não havia diferenciação entre a comunidade de cidadãos (res pública, para os romanos – modernamente sociedade civil) e pólis, uma vez que, para os gregos, onde havia

pólis existia uma comunidade política.

Com Hobbes, Locke e Rousseau, no avançar da Idade Moderna, passou-se a ter o

jusnaturalismo clássico, pelo qual o Estado seria o produto de um pacto entre os homens,

mediante o estabelecimento de leis e normas constituindo autoridades às quais a sociedade devia submeter-se consensualmente – o contrato social (delineia-se o contratualismo). Os homens, para os contratualistas, não vivem em sociedade por natureza, como defendia Aristóteles: “toda cidade está na natureza e que todo homem é naturalmente feito para a sociedade política.” (ARISTÓTELES, 1985 [330-323 a.C.], p. 4). Seria mediante um contrato social que os homens saem de seu estado de natureza e passam a constituir um corpo político ou estado civil.

Com as noções jusnaturalistas relativas ao estado de natureza e estado civil, que se contrapunham e sucediam-se, tem-se a discussão sobre os princípios político-ideológicos do Estado moderno, seja com: Hobbes – preconizando o Estado máximo, Absolutista, mediante o pacto da submissão do povo ao governante; Locke – idealizando um Estado mínimo, amparado no pacto de concessão, de salvaguarda da propriedade e dos direitos individuais; ou, Rousseau – refletindo sobre o fundamento da ordem e da legitimidade sociopolítica (republicana ou democrática), como desdobramento da suprema direção da vontade geral (o que havia de comum nas vontades individuais, o interesse comum e não a simples soma de vontades particulares ou da maioria).

Nesse percurso, os teóricos contratualistas relacionaram a sociedade civil à noção de civilidade, isto é, o respeito à autonomia individual que se baseava na segurança e na confiança entre as pessoas. Esta civilidade, conforme Kaldor (2003), requeria regularidade de comportamento, bem como, regras de conduta, o respeito à lei e ainda o controle da violência. Assim, sociedade civil era sinônima de sociedade cortês que, objetivando escapar do estado de natureza, deveria adentrar em uma ordem contratual de governo baseada na lei, no contrato.

Com o avanço da sociedade burguesa novos paradigmas analíticos emergiram, principalmente com a tradição ligada ao Iluminismo Escocês representada por David Hume (Edimburgo, Reino Unido, 1711-1776), Adam Smith (Kirkcaldy, Reino Unido, 1723- 1790), Adam Ferguson (Logierait, Reino Unido, 1723-1816), dentre outros. Estes pensadores

trouxeram a lume a economia política e a problemática da divisão do trabalho: a questão não seria a sociabilidade (estado de natureza ou contrato social), mas o porquê e como as sociedades se diferenciam no tempo e no espaço. A história passou a ser interpretada a partir de estágios, de uma progressão cujo motor das mudanças seria a propriedade. (COLÁS, 2002).

Ao contrapor a esfera política e à esfera não-política, a expressão sociedade civil adquire no século XVIII-XIX um sentido mais específico. Ela passa a ser identificada com o espaço privado (não-político) das relações sociais e econômicas da sociedade burguesa. Nesta nova perspectiva histórica, Hegel (2005a [1820]) contribui para a superação da tradição clássica, iniciada na Idade Média que identificava a societas civilis com a civitas. Com Hegel, vincula-se sociedade civil às práticas privadas (civis), sobretudo as de teor econômico que caracterizavam as relações sociais do mundo burguês.

Passa-se a se conceber uma humanitas do homem a partir de sua identificação com o ser livre e com a noção de intersubjetividade: a liberdade só existe para um ser outro e não para si mesmo – o que não advém de uma imediatidade de ser vivo e, tampouco, de um contrato social que lhe garanta a sobrevivência, como concebiam os jusnaturalistas e os contratualistas.

As contingências históricas como a violência – em uma sociedade teorizada no

bellum omnium contra omnes de Hobbes (2003 [1651]), por exemplo – seria simples

elemento fenomenal do Estado e não seu princípio substancial. A vivência humana intersubjetiva de submissão a um senhor, momento fenomenológico de luta por reconhecimento, seria a fomentadora do Estado. A esfera do político, advinda da luta por reconhecimento, passou a se constituir como lugar do consenso por meio da mediação das instituições do Estado. Passa-se a ter um predomínio da universalidade (representado pelo Estado) sobre a particularidade.

Na Filosofia do Direito, Hegel (2005a [1820]) analisa a concretização da liberdade pela mediação do Estado, o qual seria o coroamento da vida ética, da eticidade (Sittlichkeit) – campo de interação entre os indivíduos que se libertam de si para realizarem-se na comunidade por meio de regras, costumes ou leis, nas quais se reconhecem e percebem sua liberdade. A eticidade seria “o conceito da liberdade convertido em mundo real e que adquiriu a natureza da consciência de si” (HEGEL, 2005 [1817], p. 149) e cujo desdobramento apresenta três momentos constitutivos: a Família, a Sociedade Civil e o Estado.

Na leitura hegeliana, a família é classificada como o primeiro campo da eticidade e que em sua interação social constrói relações de reconhecimento mútuo a partir da

afetividade. A família, entendida como esfera intersubjetiva, “determina-se pela sensibilidade que é una, pelo amor, de sorte que a disposição de espírito correspondente é a consciência própria da individualidade nessa unidade.” (HEGEL, 2005a [1820], p. 156).

Essa forma de interação, marcada pela “disposição de espírito”, “consciência” e “individualidade” traz em si o gérmen fragmentador da unidade, uma vez que o despertar da consciência das subjetividades, comumente ligada à educação recebida ao longo da vida, conduz à gradativa dissolvência da família, originando novos campos da eticidade:

A dissolução moral da família provém do fato de os filhos ao assumirem a

personalidade livre, ao atingirem a maioridade, serem reconhecidos como pessoas

jurídicas e tornarem-se capazes [...] de livremente possuírem a sua propriedade

particular. (HEGEL, 2005a [1820], p. 165, grifo nosso).

A consciência da personalidade “livre” e a propriedade “particular” são os princípios que dão origem a “sociedade civil”, esfera da eticidade em que “[...] os indivíduos são pessoas privadas que têm como fim seu próprio interesse” (HEGEL, 2005a [1820], p. 171), na qual suas relações são mediatizadas – limitação e universalização de cada vontade que conduz ao necessário e substancial: as leis do Estado.

O Estado seria a síntese dos momentos do direito abstrato e da moralidade, manifestos na família e na sociedade civil que “constituem os dois momentos, todavia ideias, dos quais surge o estado como seu verdadeiro fundamento” (HEGEL, 2005a [1820], p. 317), assim:

O estado é a realidade efetiva da liberdade concreta. Por sua parte, a liberdade concreta consiste em que a individualidade pessoal e seus interesses particulares, por um lado, tenham seu total desenvolvimento e o reconhecimento de seu direito (no sistema da família e da sociedade civil), e por outro, se convertem por si mesmos em interesse do universal, no qual reconhecem com seu saber e sua vontade como seu próprio espírito substancial e tomam como fim último de sua atividade. (HEGEL, 2005a [1820], p. 318, grifo do autor, negrito nosso).

Em outras palavras, para Hegel (2005a [1820]), só há liberdade no Estado. E, o direito seria a efetivação institucional da liberdade concreta – objetiva e subjetiva. Mas, para ocorrer essa efetivação, o sujeito que age (liberdade de ação e de responsabilidade), cidadão, guiado por leis e princípios universais (internalizados na esfera da moralidade), deve ser consciente de sua liberdade – autoconsciência de seu ser, de seu querer (vontade) e de seus atos, junto à comunidade ética. O direito, portanto, é o existir da vontade livre, liberdade autoconsciente: vontade enquanto razão prática que age; livre, pois tem como conteúdo a liberdade; e consciente de si.

outros, a interação social (em que estão compreendidas as diversas esferas da vida, como: a religiosa, a estética, a educacional, a científica, a política, etc.), em que o Estado é essencial: “Todo o valor que o homem tem, toda a sua realidade espiritual, a tem mediante o Estado. [...] Só assim participa nos costumes, na vida jurídica e moral do Estado.” (HEGEL, 1982 [1837], p. 101).

Hegel (1982 [1837]) teoriza a clara distinção entre sociedade civil e Estado. Na leitura hegeliana esta diferença não se opera no plano de sociedade pré-jurídica (direito natural) e sociedade jurídica (direito positivo), como previam os jusnaturalistas, mas apenas no nível de organização jurídica. Fora do todo representado pelo Estado as leis seriam contingentes, em vista que o estado de natureza seria o lugar do irracional.

Segundo Hegel (1982 [1837], p. 104), é enganosa a “tese de que o homem é livre por natureza, porém se vê obrigado a limitar esta liberdade natural na sociedade e no Estado.” A liberdade plena só se efetiva pela construção de uma ordem positiva, de instituições, que não podem ser erguidas amparadas na idealidade grega, por exemplo, uma vez que esta era uma harmonia ingênua.

Hegel (2005a [1820]) afasta-se, portanto, da filosofia do direito natural, muito embora conserve concepções da tradição as quais lhe serviram de escopo para a construção de sua teoria moderna de sociedade civil. Primeiro ele se fundamentou na tradição jusnaturalista e em Kant85 (Königsberg, Prússia, 1724-1804), em relação à universalidade do indivíduo, como sujeito dotado de direitos e agente da consciência moral. (ARATO; COHEN, 1995).

Em segundo, à ênfase hegeliana, de uma administração da justiça, repousa na formulação lockeana que os indivíduos são detentores de direitos – há uma “defesa da propriedade pela justiça”, que constitui a “realidade do elemento universal de liberdade implícito neste sistema.” (HEGEL, 2005a [1820], p.189). Hegel estendeu a distinção iluminista entre Estado e sociedade civil passando a considerar que “sociedade civil” é fruto

85 Emmanuel Kant insere-se no rol dos pensadores modernos um racionalista, oponente do dogmatismo que nega/desconhece a centralidade da razão. Kant teoriza em sua obra Crítica da Razão Pura (1980 [1784]) e Fundamentos da Metafísica dos Costumes (2003 [1797]) a distinção entre direito (norma jurídica) e moral (norma moral), tendo como fundamento o prisma formal, não material. A norma jurídica, para Kant, é externa ao indivíduo, deve ser simplesmente cumprida sem considerar a sua opinião (se é justa ou não). A norma moral é interna, o indivíduo a cumpre por acreditar em sua retidão – o mandamento moral é correto, e deve ser cumprido pois é o certo a ser feito. Logo, a moral legitima o direito, uma vez que o ordenamento jurídico deve ser justo e moral, alinhado aos valores sociais – liberdade individual. Para Kant, distintamente dos jusnaturalistas (defensores do direito natural como preceito indiscutível da natureza) a moral reveste-se de razão, e tem como dimensão básica a liberdade, da qual derivam os demais direitos naturais (igualdade e propriedade). Com isso, o direito positivo kantiano deriva da razão, portanto, não se fundamenta na validade última em si mesmo ou no arbítrio do legislador, ou seja, preocupa-se com o que é justo – o que conduz Kant aos seguintes questionamentos: Quid sit iuris? Quid sit ius? [O que é jurídico? O que é justiça?] – o justo ou injusto, para Kant, no ordenamento jurídico deve amparar-se na razão, a partir do valor/princípio da liberdade. (BOBBIO, 1987).

de uma época histórica, destacando “a precaução contra o resíduo de contingência destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como algo de administração e pela corporação.” (p. 193).

De Adam Ferguson e do Iluminismo escocês, com sua economia política, Hegel apropria-se da ênfase sobre a sociedade civil como o berço da civilização material. (ARATO; COHEN, 1995). Com a teoria do “sistema de necessidades”, ele concebe que as carências materiais do homem concreto não são apenas individuais, mas também universais cujo “fim egoísta é a base de um sistema de dependências recíprocas no qual a subsistência, o bem-estar e a existência jurídica do indivíduo estão ligados à subsistência, ao bem-estar e à existência de todos.” (HEGEL, 2005a [1820], p. 189).

De maneira mais específica a sociedade civil era constituída por associações, corporações, comunidades com forte papel normativo e desempenhando função fulcral na mediação entre os indivíduos e o Estado, além de contribuir na consubstanciação de uma vida ética. Ou seja, em Hegel, “a sociedade civil constitui o momento intermediário entre a família e o Estado [...].” (BOBBIO, 1987, p. 30). Esta sociedade circunscreve, para Hegel, segundo Ramos (2000), a produção econômica e a do trabalho, ou seja, o interesse privado do

bourgeois (burguesia), do bürger (burguês).

A preocupação de Hegel com as relações da economia e sociedade resultaram no que ele chamou de sociedade civil-burguesa (bürgerliche Gesellschaft): constituída na superação da determinação imediata da família, bem como, o caráter burguês desta sociedade se constitui na organização social e econômica. (RAMOS, 2000). Esse movimento teórico hegeliano constitui uma mudança de paradigma sobre a sociedade civil fundamental para o pensamento moderno.

A sociedade civil-burguesa seria, portanto, consequência da progressiva complexificação da sociedade, posterior à divisão da “família numa multiplicidade de famílias que em geral se comportam como pessoas concretas independentes e tem, por conseguinte, uma relação extrínseca entre si.” (HEGEL, 2005a [1820], p. 188). Marcadas por uma diferenciação entre os indivíduos abstratos esta relação confere a determinação à particularidade que tem, mantenedora de uma relação com o universal que conduz a realização da liberdade ou como a moralidade objetiva materializa-se de modo universal. Esta relação, no entanto, é apenas aparência, ela constitui a região fenomênica da moralidade, ou seja, a sociedade civil. (HEGEL, 2005a [1820], p. 188).

Dessa forma, pode-se dizer que em Hegel (2005a [1820]) é o Estado que funda a sociedade civil, mas como sociedade política regida pelo princípio de universalidade. Este

processo conduz à liberdade a qual está destinado o gênero humano, a realização do espírito universal na história: a razão, libertando o homem do estado de guerra. O sujeito livre passa a ser respeitado na sua subjetividade, onde o carecimento individual incorpora-se num sujeito que tem o reconhecimento dos outros, logo, tem-se uma sociedade civil-burguesa crivada na vida social (política e econômica).

Em suma, a importância atribuída às dimensões comunais da existência humana faz com que os indivíduos conscientes ocupem posição central na construção da sociedade civil moderna. O Estado representaria o princípio superior de ordenamento racional, da existência social, onde o interesse geral prevalece sobre os interesses particulares; os indivíduos tornam-se livres mediante a mediação do Estado, pois é este que possibilita a liberdade concreta, na qual o indivíduo tem reconhecido os seus direitos.

A construção desse Estado se desenvolveu, tendo como principal modelo de governo, a democracia liberal, que ao longo do século XX-XXI passou por uma série de transformações em virtude de suas relações com o sistema do capital e seus modos de produções hegemônicos, o capitalismo. Será nas tessituras das crises e mudanças no capital que o Estado adotou novas feições e a democracia, contemporânea, ficou, gradativamente, mais subsumida à lógica capitalista (neoliberal - que a redefine, gerando uma democracia concorrencialista e de representação pautada em uma cidadania meramente formal).

Entretanto, para atingir tal estágio as relações entre sociedade civil, Estado e democracia passaram por processos de acomodação e tensão, que afetaram a experiência e a própria concepção de participação, igualdade e liberdade. Se com Hegel operou-se a cisão entre Estado e sociedade civil, foi com Alexis de Tocqueville que a sociedade civil é pensada em uma relação intrínseca com a democracia; e, com Marx, passou-se a questionar a relação Estado e Sociedade Civil, reverberando na questão das bases que constituem a democracia.

Além disso, no século XX, com o avanço das interpretações neoliberais em torno da democracia as noções de participação e representatividade vão adquirindo novos tons, o que afetou o próprio desenvolvimento da accountability. Pensar democracia no século XXI é compreender as próprias tensões que mergulharam a liberdade, igualdade e a fraternidade em um trem conceitual, tendo o Mercado como condutor, influenciando a própria organicidade do Estado.

Os princípios democráticos liberais, no século XX resultaram em movimentos (contra) reformistas no Estado (retrocedendo nas conquistas de direitos das camadas populares) e a accountability espraiou-se no contexto desse reordenamento político e administrativo. Os retrocessos, sinônimo do (des)caminho democrático neoliberal,

materializaram-se na estruturação do Estado Gerencial, com sua incorporação dos princípios da New Public Management.