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2 ACCOUNTABILITY: A BUSCA DE UMA CONCEITUAÇÃO

2.3 Accountability e o Brasil: revisitando o artigo de Campos (1990)

Segundo Campos, “A maioria dos estudiosos norte-americanos acredita que o fortalecimento da accountability e o aperfeiçoamento das práticas administrativas andam juntas.” (CAMPOS, 1990, p. 30). No entanto, para a autora, não é possível conceber a

accountability restrita a uma “questão de desenvolvimento organizacional ou de reforma

administrativa. A simples criação de mecanismos de controle burocrático não [...] torna efetiva a responsabilidade dos servidores públicos.” (p. 30-31).

Dessa forma, embora os mecanismos de controle sejam necessários, são insuficientes. A organização burocrática do governo é incapaz de contrabalançar os abusos de poder: “O modelo monocrático de autoridade (toda a autoridade concentrada no topo) somente leva a uma accountability ascendente (upward accountability)” (CAMPOS, 1990, p. 34); e, por sua limitação, tende a ser um instrumento a serviço dos “interesses da minoria detentora do poder ou, quando muito, aos interesses dos burocratas.” (p. 34).

Campos (1990, p. 31) ao ponderar sobre a relação administração pública e recurso público no Brasil, destaca a “atitude de aceitação passiva quanto ao favoritismo”, o “nepotismo”, a “tolerância e passividade” da sociedade brasileira diante da corrupção e a falta de zelo pelos recursos públicos e indaga: “por que as pessoas são tão complacentes? Por que não têm consciência de seus direitos como contribuintes?”.

A fim de responder as suas próprias indagações sobre a falta de accountability no Brasil, Campos (1990, p. 32, grifo nosso), aproximou-se de duas dimensões: linguagem- cultura e desenvolvimento político: “Na tentativa de compreender por que as coisas não eram como deveriam ser [...] A cultura política do Brasil e o nível de desenvolvimento político constituíram a chave capaz de explicar a diferença [...]”: faltava ao Brasil a cultura

democrática19.

Campos (1990, p. 33) assevera, amparada em Frederich Mosher20, que “Quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability. E a

accountability governamental tende a acompanhar o avanço de valores democráticos, tais

como igualdade, dignidade humana, participação, representatividade”. E, ao apresentar a relação sociedade-cidadão com o governo, a autora é enfática ao definir que a democracia e a

accountability dependem da forma que este vínculo/conexão se opera:

O exercício da accountability é determinado pela qualidade das relações entre governo e cidadão, entre burocracia e clientelas. O comportamento (responsável ou não-responsável) dos servidores públicos é conseqüência das atitudes e

comportamento das próprias clientelas. Somente a partir da organização de cidadãos vigilantes e conscientes de seus direitos haverá condição para a

accountability. Não haverá tal condição enquanto o povo se definir como tutelado e o Estado como tutor. [...] O desenvolvimento da consciência popular é a primeira pré-condição para uma democracia verdadeiramente participativa e, portanto, para a accountability [...] A mudança de papel passivo para o de povo guardião [...] há outro pré-requisito: o sentimento de comunidade. (CAMPOS, 1990, p. 35, grifo nosso).

Nessa diversidade de valores/princípios/conceitos/ideias apresentadas por Campos – qualidade das relações, atitudes, comportamentos, cidadãos vigilantes, consciência popular, povo guardião, sentimento de comunidade – pode-se aferir, na perspectiva da autora, o

19 Campos, amparada na obra Pobreza política, de Pedro Demo (São Paulo, Cortez, 1988) constrói uma argumentação problemática para justificar a fragilidade democrática no Brasil. Em nota de rodapé, a autora destaca ser esta fragilidade “mais do que um traço cultural isto é uma imposição da história.” (CAMPOS, 1990, p. 36). Esta interpretação nega, todavia, a dialeticidade da história e/ou afirma uma noção de fatalidade histórica. A ausência ou presença de traços democráticos na sociedade brasileira é fruto das lutas sociais (luta de classes) e da assimetria de forças existentes no país – marcadas pela exclusão social e séculos de escravidão, que lançou a ampla maioria da sociedade a condições de miserabilidade. A questão da fragilidade ou ausência de democracia no país não é uma “imposição da história”, impera uma fragilidade das instâncias democráticas ou um ranço autoritário (fenômenos gerados na materialidade dialética da história). Existe na sociabilidade dos Estados modernos uma luta por hegemonia – um pequeno grupo social (detentores do capital) em detrimento da ampla maioria da sociedade, detém o poder. A autora erra ao naturalizar um comportamento social, ocultando as lutas que marcam a história brasileira – seja manifesta na luta contra a escravidão, na Revolta dos Malês (1835), nas Guerras de Canudos (1896-1897) e do Contestado (1912-1916), na Revolta da Vacina (1904) e Revolta da Chibata (1910), nos movimentos Grevistas do ABC (1979), as lutas no Campo, como as ações do Movimento dos Sem Terra (MST), as tensões urbanas e tantos outros movimentos. Por esta razão, Campos equivoca-se quando assevera que “A falta de base popular faz da democracia brasileira uma democracia formal, cujo traço distintivo é a aceitação passiva do domínio do Estado. [nota de rodapé sobre o pensamento de Pedro Demo].

Aceita-se como natural que alguns ‘direitos’ constitucionais sejam negados aos cidadãos (por exemplo,

educação básica gratuita para todos, salário mínimo para os trabalhadores). A desigualdade é também

considerada uma fatalidade e as pessoas se sentem incapazes de lutar contra ela. Pior que isso, a luta pelos

próprios direitos pode até ser encarada, na cultura brasileira, como algo indelicado.” (CAMPOS, 1990, p. 36, grifo nosso).

20 Frederick Camp "Fritz" Mosher (EUA, 1913-1990): professor de governo e relações exteriores na Universidade da Virgínia/EUA. Autor da obra Democracy and the Public Service, publicado pela Oxford University Press em 1968 – aclamado nos Estados Unidos como uma das obras mais influentes na área de administração do século XX. A obra de Mosher reúne uma série de palestras que abordam a natureza evolutiva dos funcionários públicos e como estes podem ser educados/treinados a conciliar seus conhecimentos à governança democrática.

sedimento para a existência de uma accountability: “a accountability governamental tende a acompanhar o avanço de valores democráticos, tais como igualdade, dignidade humana, participação, representatividade.” (CAMPOS, 1990, p. 33).

Na antinomia desses valores, estariam os princípios de papel passivo, povo tutelado e Estado tutor, obstáculos para o “desenvolvimento de instituições na sociedade que favoreçam a recuperação da cidadania e, portanto, a verdadeira vida democrática.” (CAMPOS, 1990, p. 35). Mas, a autora se refere a qual cidadania e democracia? Em que condiz essa verdadeira vida democrática? A autora dá uma pista para estas questões ao afirmar que:

O modelo de democracia liberal e participativa praticado nos EUA favorece a

accountability porque define o papel do cidadão (desde muito cedo) como algo

muito mais amplo do que a mera participação como eleitor no processo de escolha de seus governantes no Executivo e representantes no Legislativo. (CAMPOS, 1990, p. 35, grifo nosso).

É no modelo de democracia liberal que se desenvolve, de forma mais favorável, segundo Campos, a accountability, pois o cidadão tem seu papel social definido desde tenra idade. Em sociedades amadurecidas, como a norte-americana (reitere-se: este é o modelo ideal de sociedade eleito por Campos), os cidadãos participam ativamente mediante as organizações; externam suas sugestões e descontentamentos. “Assim, é “natural’ que a burocracia oficial, nos EUA, se preocupe com a accountability perante o público.” (CAMPOS, 1990, p. 35-36).

Existe uma idealização da democracia americana, por parte de Campos, como que refletisse o ideário do american dream (sonho americano – iniciada no século XVII com os colonos ingleses puritanos e incorporada na Declaração de Independência dos EUA) e do

american way (estilo americano) ou american way of life (estilo americano de vida). Estas

fantasias desconsideram a exclusão social, a segregação racial, o fato da liberdade e igualdade estarem assentadas na propriedade privada, e o próprio imperialismo estadunidense que impõe a supremacia americana a outras nações-exploradas. E, fica claro em Campos uma visão tocquevilleana, sobretudo na concepção de participação e a associação comunitária.

À “textura institucional da sociedade” vincula-se “uma cultura em que a

autoconfiança é um traço muito forte, refletido na postura do cidadão diante do Estado, na

disposição para exigir os próprios direitos, ao invés de pedi-los como favores.” (CAMPOS, 1990, p. 35, grifo nosso).

Enquanto nas democracias mais amadurecidas a textura política é caracterizada por uma bem-sedimentada rede de associações, nos países menos desenvolvidos tais estruturas denotam um alto grau de pobreza política. As poucas instituições. [...] A falta de base popular faz da democracia brasileira uma democracia formal, cujo traço distintivo é a aceitação passiva do domínio do Estado. [...] A um super-

Estado corresponde, então, uma subcidadania. [...] O povo brasileiro mostra vocação maior para ser ajudado do que para exibir autoconfiança. Como

conseqüência, abre os braços ao paternalismo, uma forma disfarçada de autoritarismo. [...] O autoritarismo apoiado pela tecnocracia acredita que a participação popular é prejudicial à obtenção de um rápido crescimento econômico. (CAMPOS, 1990, p. 36-37, grifo nosso).

Os aspectos que envolvem a ideia de autoconfiança são emblemáticos, pois em que arcabouço teórico-conceitual este valor se sedimenta? Como mensurar a “autoconfiança”? Campos traz à baila uma perspectiva vinculante ao desenvolvimento da accountability eminentemente subjetivo. Mesmo que a autoconfiança possa ser medida, em alguns de seus pressupostos valorativos, sua manifestação (se é possível utilizar-se este termo), está imerso na singularidade de cada indivíduo - em sua realidade concreta, em vista que os fatores econômicos, por exemplos, deste indivíduo se colocam como determinação. (Como ser autoconfiante na condição de trabalhador escravo em pleno século XXI?).

A relação entre super-Estado e subcidadania além de ser reducionista distorce a compreensão sobre a categoria de paternalismo existente no Brasil. Como medir e diferenciar a autoconfiança, por exemplo, entre um sujeito de origem negra, nascido e habitando nas ruas da periferia, e um sujeito branco, nascido em um lar de classe média alta? Outro aspecto relevante da passagem diz respeito à ideia de “vocação maior para ser ajudado do que para exibir autoconfiança.” (CAMPOS, 1990, p. 37). Como um indivíduo pode ter vocação para

ser ajudado? Questionamentos a parte, o trecho é rico no aspecto simbólico e teórico-

analítico, pois traz à cena questões etno/eurocêntricas que sempre acompanham as nações centrais do Ocidente.

A oposição ao Estado-tutor, cidadão tutelado e a ênfase no valor da

autoconfiança devem ser analisados na conjuntura sociológica das últimas décadas do século

XX, marcadas pelo avanço da Teoria do Capital Humano21 e do neoliberalismo – sistema

21 A Teoria do Capital Humano, sobremaneira a partir da década de 1970, traz para o campo educacional as interconexões entre investimento social (individual) em educação com a produtividade. O conceito de capital humano teorizado por Theodoro Schultz, década de 1950, postulava explicar as desigualdades de desenvolvimento dos Estados-nação e as desigualdades sociais (individuais ou de segmentos sociais). Segundo Frigotto e Ciavatta (2001, p. 7): “Para essa teoria, a vergonhosa e crescente desigualdade que o capitalismo monopolista explicitava, e se tornava cada vez mais difícil de esconder, devia-se fundamentalmente, ao fraco investimento em educação, essa tida como gérmen gerador de capital humano. A fórmula seria simples: maior investimento social ou individual em educação significava maior produtividade e, consequentemente, maior crescimento econômico e desenvolvimento em termos globais e ascensão social do ponto de vista individual.” A Teoria do Capital Humano teve ampla receptividade na América Latina, resultando em políticas educacionais articulando relações entre educação e trabalho, fato perceptível pelo avanço da educação técnica de nível médio

normativo22, ou seja, não apenas político-econômico. Esta leitura é evidenciada ao ler-se uma nota de rodapé do texto de Campos (1990, p. 38, grifo nosso), quando esta fala da crise que assola a vida civil brasileira: “O país atravessa uma crise institucional e ética como nunca antes experimentou. Vive uma crise de anomia23: não apenas a ausência de normas, mas a inobservância de qualquer tipo de norma, sem punição.”

Todavia, mesmo havendo discordância em relação a certas ponderações político- sociais em relação a Campos, deve-se reconhecer que a autora é precisa quando afirma que:

Na história da democracia brasileira, tem havido períodos alternativos de autoritarismo e populismo. Cada um, por sua vez, explica a distância entre o governo e a sociedade civil [...]24. Enquanto o governo ditatorial, apoiado pela

tecnocracia, toma a si a tarefa de definir bem-estar social, o governo populista tenta

estabelecer uma relação direta entre a liderança personalista e os segmentos populares não-governamentais. Ambos mantêm a participação popular em níveis mínimos. O autoritarismo apoiado pela tecnocracia acredita que a participação popular é prejudicial à obtenção de um rápido crescimento econômico. No modelo tecnocrático de crescimento econômico, a distribuição de rendas e riqueza vai sendo

e programas de formação profissional para adultos sem vínculo com as demandas de transformação social: “Essas políticas não incluem uma definição sobre como conseguir que o capital humano, seja algo mais do que um recurso de baixo custo para o capital, e de fato promovem a equidade à custa do empobrecimento dos setores médios urbanos, sem afetar as camadas de alta renda.” (CORAGGIO, 2000, p. 78).

22 Em sua obra A nova razão do Mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal, Dardot e Laval (2016, p. 7, 34, grifo nosso) descrevem o significado teórico do neoliberalismo: “Assim, é errado dizer que estamos lidando com o ‘capitalismo’, sempre igual a ele mesmo, e com suas contradições, que inevitavelmente levariam à ruína final. [...] O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus descarrilamentos, das lutas que o transformaram, das estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformou profundamente a sociedade. Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um

tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo

a lógica a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida. [...] O neoliberalismo, portanto, não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é o seu extravio nem sua traição. Não retoma a questão dos limites do governo do ponto em que ficou. O neoliberalismo não se pergunta mais sobre que tipo de limite dar ao governo político, ao mercado (Adam Smith), aos direitos (John Locke) ou ao cálculo da utilidade (Jeremy Bentham), mas, sim, sobre como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si (Parte I). Considerado uma racionalidade governamental, e não uma doutrina mais ou menos heteróclita, o

neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como a lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade (Parte II).”

23 O conceito de anomia está delineado em O Suicídio, de Durkheim (Épinal/França, 1858-1917). Segundo ele, “qualquer ser vivo só pode ser feliz ou até só pode viver se suas necessidades têm uma relação suficiente com seus meios”, porém a natureza humana por si só não “pode atribuir às necessidades o limite variável que lhes seria obrigatório”, tendo em vista que o desejo dos homens não possui um limite facilmente determinado. Assim, “é próprio da atividade humana desenvolver-se sem termo determinável e propor-se fins que não pode atingir.” Logo, “é preciso, [...] que as paixões sejam limitadas”, mas o limite “deve necessariamente vir de alguma força exterior ao indivíduo.” (DURKHEIM, 2000 1895], p. 311). No caso, essa “força exterior” é a força moral da sociedade, que, por constitui parte do indivíduo, tanto a ele se impõe, como regula suas paixões e ações. Para Durkheim “enquanto as forças sociais, assim libertadas, não reencontram o equilíbrio, seu valor respectivo permanece indeterminado e, por conseguinte, por um tempo inexistindo qualquer regulamentação. Já não se sabe o que é possível e o que não o é, o que é justo e o que é injusto”. Quando a crise sobrevém sem ser debelada “O estado de desregramento ou anomia [...] é reforçado pelo fato de as paixões estarem menos disciplinadas no próprio momento em que teriam necessidade de uma disciplina mais vigorosa”. (Id., Ibid., p. 321-322).

24 Foi suprimida da citação a seguinte passagem: “já que ambos dispensam as instituições” (CAMPO, 1999, p. 37), pois esta compreensão é equivocada. Como asseveram Gramsci (2000) e Bourdieu (2002) a dominação está envolta da forma como dominados e dominadores veem o mundo e a si mesmos; e a dominação não se restringe ao campo da força, uma vez que nenhuma autoridade consegue perdurar apenas com o uso da coerção.

protelada até o país atingir determinado nível de acumulação. (CAMPOS, 1999, p. 37).

Diante do exposto, depreende-se que não é possível traduzir a palavra

accountability para a língua portuguesa ou compreender seu significado sem sua devida

contextualização. O processo de definição/conceituação passa pelo entendimento das múltiplas determinações que envolvem as relações em uma sociedade. Conceitos, definições e categorias não são elementos neutros, também estão imersos no campo de tensionamentos social-científico-teóricos e a compreensão desta realidade torna-se fundamental para se entender a própria formulação e desenvolvimento da accountability.

Nesta perspectiva, Mainwaring (2003, p. 3) é esclarecedor:

Accountability is a key concept in the social sciences, yet its meaning varies widely from one author to the next [...] although we cannot claim consensus in our understanding of this concept, we believe that the direct confrontation of ideas will advance the debate.25

Assim, cabe identificar o que se tem compreendido por accountability a fim de adotar-se um conceito capaz de servir de baliza categorial, e tal ação só pode ser operacionalizada compreendendo-se que aspectos teóricos envolvem a definição/formulação de um conceito, uma categoria. Pensar accountability, portanto, perpassa pela noção dos elementos que a constituem – um conceito em formação histórico-social.