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3 ANTECEDENTES FILOSÓFICO-POLÍTICOS DA ACCOUNTABILITY

3.3 Maquiavel: a ontopositividade da política

O entendimento sobre Estado e sociedade civil no mundo moderno perpassa, inexoravelmente, pela compreensão da cisão entre religião e racionalidade. Estes princípios passam, necessariamente, pelo campo que envolve as questões objetivas e subjetivas de sobrevivência do homem na modernidade. Neste contexto, para conceituar sociedade civil no medievo, o aporte teórico fundamenta-se na tradução latina da Política de Aristóteles, no século XIII, por William von Moerbeke (Inglaterra, 1215-1286) que converteu koinonia

politiké para societas civilis – espaço de atuação política, em oposição ao espaço privado da oikos (família) (ARATO; COHEN, 1995, p. 84-85) – possibilitou novas discussões sobre o

O redelineamento da societas civilis operou-se na tessitura da estrutura político- econômica vinculada ao pensamento teocêntrico, sobremodo com a Escolástica de Tomás de Aquino (Boccasecca/Itália, 1225-1275). Nesse momento a política dominada pela hierocracia, isto é, pelo poder sacerdotal, amparava a Teoria dos Dois Gládios (o poder papal, representante do gládio espiritual, sobrepõe-se ao poder dos reis, gládio temporal) e o

supranacionalismo papal (a autoridade do Papa sobrepõe-se às fronteiras nacionais, pois

primeiramente o indivíduo deve ser cristão, logo, subordinado à Igreja, para só depois ter sua identidade nacional).

Além disso, podia-se identificar a organização societal fundada nos conceitos de

Pecado Original (ideia de que o homem é pecador, logo, necessita ser redimido), Castigo Divino (tendo como um de seus pilares a noção de trabalho relacionado a castigo divino) e Trindade (natureza de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo). Nessa esteira, ordenava-se uma

estrutura social teocêntrica – tripartite (analogia a trindade): os que oram (clero); os que guerreiam (nobres); e, os que trabalham (servos e gleba). (LE GOFF, 1994, 1995, 1995a).

Erguia-se nesse amálgama sócio espiritual uma respublica christiana, uma

societas civilis cristã centrada na fé, no milagre – “O que criou a fé no milagre foi a ideia de

que ali devia haver um milagre” (BLOCH, 1979, p. 278), rescaldo de um mundo cindido entre bárbaros e civilizados, pagãos e cristãos, inferno e céu, que em uma sociedade com elevadas taxas de mortalidade, seja pelas guerras, fome ou pestes encontravam um terreno fértil para germinar. O poder temporal nada mais representava que um preâmbulo da vida eterna, cuja função era ajudar o ser humano a encontrar a morada celestial – crença que predominou até a Modernidade. (LE GOFF, 2014a; DELUMEAU, 2001, 1997).

Os renascimentos econômico-urbano, séculos XII-XIII, e Cultural, séculos XIV- XVI, na Europa Ocidental, convulsionaram esse medievo, bem como, a respublica christiana ao trazerem em seus alforjes todos os embates sócio-político-econômicos de uma nova classe social que emergia: a burguesia. (LE GOFF, 2014, 2013, 2007). O mundo passou, gradativamente, a ser compreendido segundo os princípios da individualidade, da razão em detrimento da fé e, nesse movimento, o saber passou a ser considerado, progressivamente, o instrumento de controle da natureza, separando a ação política da ação religiosa.

A Revolução Comercial, as Grandes Navegações Marítimas, a Reforma Religiosa, dentre outros eventos históricos, decorridos ao longo dos séculos XV-XVII, também revolveram o mundo ocidental, parindo do ventre do capital sua progênie: o capitalismo

mercantilista. As mudanças nas relações socioeconômicas, intimamente vinculadas à

organização política. O Estado e os governos foram redefinidos: nasce o Ancien Régime - o Estado Moderno, Absolutista, Nacional (ANDERSON, 2016, 2016a), embora não se possa falar em um marco temporal objetivo para sua constituição:

Trata-se de saber não a data de nascimento do Estado moderno, seja qual for a

sua descrição tipológica, mas de identificar um movimento histórico bem determinado. Esse movimento ocorre segundo ritmos diferentes em diferentes

locais (na Inglaterra e no continente, para tomar uma distinção bem visível) e os arranjos de poder não se dão da mesma forma em toda parte. No entanto, é

possível mostrar, em todos os casos, características comuns de um processo de

reordenação política. Essa reordenação é constitutiva do que hoje chamamos

“Estado”. (KRITSCH, 2004, p. 104, grifo nosso).

No entendimento que o nascimento do Estado moderno não pode ser datado e nem enquadrado a um único referencial espacial ou teórico concorda-se com Gruppi, quando este afirma que não há uma teoria consistente sobre o Estado, entre os séculos XIV-XVIII, seja com Maquiavel (Florença, 1469-1527), Hobbes (Inglaterra, 1588-1679), Locke (Inglaterra, 1632-1704) ou Rousseau (Suíça, 1712-1778). Existem “tratados volumosos em que se descreve toda a vida do Estado [...]. Mas não há uma teoria [...]. Temos, sim, uma justificação ideológica (isto é, não crítica, não consciente) do Estado existente.” (GRUPPI, 1995, p. 25).

Em Maquiavel e nos contratualistas, havia uma preocupação em justificar as ações e atitudes dos grupos sociais que detinham o domínio do Estado e dos meios de produção. Essa escolha epistemológica foi resultado da constituição histórico-social de cada um daqueles pensadores. Por comporem os quadros das classes sociais privilegiadas, suas análises não adentraram no conteúdo de classes da existência do Estado e sua essência, ficando uma análise centrada no plano das aparências.

No rol dos pensadores da modernidade que refletiram sobre o Estado Maquiavel ergue-se como o ente da ruptura, pois, ele tem como objeto de estudo a política concreta, distanciando-se do normativismo ético-moral: “Maquiavel é, simultaneamente, um pensador da república e do absolutismo, ou em termos mais precisos, o último pensador da república antiga e o primeiro do absolutismo moderno.” (CHASIN, 2000, p. 202, grifo nosso). Ao idealizar uma Itália unificada, superando a fragmentação dos principados, Maquiavel (2000 [1513/1532]) retratou em sua obra o Príncipe, os anseios que marcavam a sociedade no alvorecer do mundo moderno: paz e ordem social.

Para Maquiavel (2000 [1513/1532]) o Príncipe era o modelo a ser seguido para a superação da desunião. Nesse princípio, fazia-se necessário educar o povo, possibilitar-lhe uma educação que o convencesse da existência de apenas uma política, a realista, produtora

de objetivos desejados: uma nação unificada e forte, aliando os interesses privados com os da comunidade, do próprio Estado. Mas, essa educação não seria formal. Ela deveria ser centrada no princípio de pertença, uma educação social construtora de identidades políticas nacionais.

Nesse Estado, o governante deveria ser a expressão, o modelo educativo como no

espelho dos príncipes: gênero literário medieval do início da modernidade pelo qual se

apresentavam modelos ideais de governança, a partir da descrição de comportamentos morais e da vida política de homens do passado reconhecidos como virtuosos. Desse objetivo o

Príncipe/Estado deveria ter a função de ensinar o indivíduo a espelhar-se nesse dirigente

modelar.

Maquiavel, seja com o Príncipe (2000 [1513/1532]) ou no Discursos sobre a

primeira década de Tito Lívio (2007 [1531]), considera a história e a sociedade como

fenômenos humanos e naturais (as instituições políticas são fundadas, desenvolvidas, perseveram e decaem). Maquiavel desvencilhou-se dos paradigmas religiosos e morais do medievo: ele percebeu o Estado como um fato social, pelo qual as relações humanas são modificadas a partir das relações sociais de cada tempo histórico, concebendo a política como o ato fundador da sociabilidade – a política emerge como instância ontopositiva, necessária para a própria existência da sociedade civil e refreadora dos choques sociais. (CHASIN, 2000, 2000a; MAQUIAVEL, 2000 [1513/1532], 2007 [1531]).68

A ontopositividade da política como demiurgo da sociabilidade ampara-se, para Maquiavel (2000 [1513/1532], 2007 [1531]), na relação indissociável da lei (legislador) e do exército (força, coerção), mecanismos condutores e mantenedores do consenso. Com a crise ideológica da ordem medieval em razão da cisão com o modelo político da hierocracia, o

Príncipe e, mais especialmente, o Estado, passaram a ter que desenvolver “qualidades” que

lhes garantissem legitimidade, agora não mais fundamentada na teocracia.69

68 A política converte-se no espaço da mudança, da transformação, o que posteriormente, ao longo da Idade Moderna, materializou-se no Estado de Direito.

69 Em texto seminal, Maturscelli (2008), Gramsci e Althusser como críticos de Maquiavel, analisa a visão cíclica da história, presente no pensamento maquiaveliano com sua crença em uma determinada natureza humana. A compreensão desta dimensão do pensamento de Maquiavel, auxilia no entendimento da ontopositividade da política e sua negação por Marx, na valorização da ontopositividade humana. Gramsci, destaca Maturscelli (2008, p. 27), “recusava qualquer tipo de natureza inata, embora possuísse uma visão teleológica da história, e Althusser, concordando com Gramsci quanto à ausência de uma natureza humana inata, discordava deste último quanto à concepção teleológica, preferindo uma concepção pluricausal, enraizada na concepção de coexistência de modos de produção e na coexistência de mais de duas classes sociais.”. Após resumir o âmago do debate, Maturscelli (Ibid., p. 27-28) assevera: “Maquiavel compreende a história como um movimento cíclico, que varia entre a ordem e a desordem, ou melhor, varia em termos de tempos de duração das formas de convívio entre os homens, uma vez que não haveria como transformar o caráter imutável de certos atributos humanos. É certo que Maquiavel não sistematiza teoricamente o que consideraria como um ‘estado de natureza’ humano, à moda de Hobbes, Locke ou Rousseau, mas deixa bastante explícita a sua concepção de natureza humana ao longo de todo O príncipe. De maneira que, para Maquiavel (2004, p. 106), ‘os homens costumam ser ingratos, volúveis,

Essa legitimação, na concepção maquiaveliana, constrói-se mediante o consenso a partir da ordem (coerção) e da suposta garantia (legitimação) da liberdade individual, ambas garantidas pela política e, especialmente, pelo Estado. A maximização do poder político, como conditio sine qua non da civilização, passa a aferir como uma instância negativa a própria ética humana – o princípio da maldade natural humana – em vista que a política assume a missão do controle social, pois, a ética humana é incapaz de realizá-la, reverberando na essencialidade do Estado e, um século depois de Maquiavel, na teoria do bellum omnium

contra omnes de Hobbes (2003 [1651]).

Na concepção maquiaveliana, o Estado era personificado no Príncipe (distintamente da concepção moderna, para a qual o Estado é pensado como instituição impessoal). Para o pensador florentino, o Estado é necessário, pois, sem ele os homens estariam entregues a sua própria sorte; e, sem freios que regrem suas vidas eles, dilacerar-se- iam como feras irracionais. Nessa percepção o Estado preservaria a lei, o dever, a glória e o castigo:

De fato, que é um governo senão o meio de conter os cidadãos de modo que eles não se injuriem mutuamente? Meio que consiste em dar completa segurança à população ou em reduzi-la a impossibilidade de praticar o mal; ou ainda em fazer

dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro’. Assim, na tentativa de estabilizar os conflitos gerados por essa natureza humana, Maquiavel lança-se ao desafio de refletir sobre o tipo de ação que um Príncipe deve tomar em diferentes circunstâncias políticas, a fim de garantir a manutenção de seu poder. Gramsci e Althusser rompem completamente com essa perspectiva cíclica da história e, conseqüentemente, com a idéia de natureza humana fixa e imutável, uma vez que não concebem a existência das sociedades de classes e as relações de poder delas decorrentes como algo natural. Isso, no entanto, não quer dizer que Gramsci e Althusser cheguem aos mesmos resultados no processo de atualização e assimilação do pensamento de Maquiavel. [...]”. Após o desenrolar das discussões, que conduzem a interpretações concordantes e dissonantes entre Gramsci e Althusser sobre o pensamento maquiaveliano do ciclo da história, Maturscelli (2008, p. 40) conclui: “Enfim, em Gramsci predomina a visão teleológica da história, uma vez que a própria teoria da política subsume-se à sua função prática de construção do momento ético-político. Althusser, ao contrário, refuta a visão teleológica da história, pois ao dar centralidade ao conceito de luta de classes, considera que o processo de transformação social não pode ser tomado como final preestabelecido, mas como produto ou resultado ativo das circunstâncias em que se inscrevem as lutas de classes nas diferentes formações sociais que se desenvolvem desigualmente. [...] Observamos, no entanto, que mesmo concordando quanto ao caráter relativo da distinção entre teoria da história e política, as análises de Gramsci e de Althusser chegam a resultados distintos. Parece-nos possível afirmar que, em Gramsci, essa distinção possui um sentido subjetivo (o que não significa arbitrário), enquanto em Althusser possui um sentido objetivo (o que não é sinônimo de teoria ‘pura’). Entendemos, assim, que, em Gramsci, a distinção entre teoria da história e política encontra-se em estado prático, ou melhor, não é elaborada teoricamente, uma vez que está subordinada à proposta de ação prática de construção do momento ético-político. Já Althusser toma as reflexões de Gramsci como instrumento teórico que ‘opera’ ou ‘trabalha’ sobre a obra de Maquiavel. Consideramos que o resultado desse processo de elaboração teórica é a construção de uma teoria da história ancorada na ausência de sujeito – o que é sintetizado, por Althusser, na expressão ‘processo sem sujeito’. Isso não significa que a prática política seja despojada de importância, mas que os problemas a serem enfrentados pela prática teórica e pela prática política são distintos. Quanto ao primeiro caso, para o marxismo, coloca-se como imperativo criticar, desconstruir e desvelar as ideologias existentes, inclusive as formuladas em seu próprio arcabouço teórico. Quanto à prática política, apresenta-se um objetivo diferente: o de destruir o Estado e, portanto, o aparelho reprodutor da coesão social. Em nenhum dos dois casos as práticas restringem-se a desconstruir a ideologia e a política dominantes, podendo assumir a função de meras reprodutoras da ideologia e da política dominantes.”

tantos benefícios ao povo que este não tenha razão para procurar mudar seu destino. (MAQUIAVEL, 2007 [1531], p. 23, grifo nosso).

Em Maquiavel (2007 [1513]), os complexos ontológicos – política e natureza humana – exemplificados na figura mitológica do centauro Quíron estão polarizados e funcionalmente indissociáveis. Estes complexos se revelam na organização do Estado moderno e delineiam a ação do Príncipe, por meio de seu projeto de preservação do poder. Em sua dupla natureza – uma ferina (política – força coercitiva) e outra humana (leis) – a metade fera deve desenvolver dois atributos: a astúcia da raposa para desvencilhar-se das armadilhas; e, a simulação do uso da força, mais eficiente que seu uso real. Nas palavras de Maquiavel, o Príncipe:

Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se servirem exclusivamente dos leões não serão bem-sucedidos. Por esse motivo, um príncipe prudente não pode nem deve manter a palavra dada quando isso lhe é nocivo e quando aquilo que a determinou não mais exista. Fossem os homens todos bons, esse preceito seria mau. Mas, uma vez que são pérfidos e que não a manteriam a teu respeito, também não te vejas obrigado a cumpri-la para com eles. [...] É preciso, todavia, disfarçar muito bem tal qualidade, e ser bom simulador

e dissimulador. E tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades

presentes, que aquele que engana sempre achará a quem enganar. (2000 [1513/1532], p. 110, grifo nosso).

Segundo Bignotto (2007), a ação política na visão maquiaveliana é um confronto entre a virtú (o empenho) e a fortuna (o acaso), porém, esta não é uma atitude passiva de fatalismo, antes uma ação de prudência que aproveita a sorte, e se possível, sem desviar-se do que é bom. Muitas vezes, segundo Maquiavel (2007 [1531]), deve-se praticar o mal, com sabedoria, ou seja, nem sempre é possível manter-se no campo do vir virtutis – o homem verdadeiramente viril – uma vez que há um abismo entre o modo como se vive e como se deveria viver. A segurança do Estado deve ser um dever para o governante, do qual este não pode se desvencilhar:

Quando é necessário deliberar sobre uma decisão da qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por consideração de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, glória ou ignomínia. Deve-se seguir o caminho que leva

a salvação do Estado e manutenção da sua liberdade, rejeitando-se tudo mais.

(MAQUIAVEL, 2007 [1531], p. 25, grifo nosso).

Para conservar o Estado, nessas condições, o Príncipe não deve ser odiado por seus súditos, pois, “os povos, como diz Túlio, mesmo sendo ignorantes, são capazes de entender a verdade e facilmente cedem, quando a verdade lhes é dita por homem digno de fé” (MAQUIAVEL, 2007 [1531], p. 23). Se ele não puder ser virtuoso, “basta que aparente [...] à vista e ao ouvido, ser todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião. [...] porque o vulgo

se deixa conduzir por aparências e por aquilo que resulta dos fatos consumados” (p. 110-111). O Príncipe deve suscitar nos súditos o amor à “pátria”, e, somente se necessário, usar a violência por sua causa, pois este comportamento é elemento necessário à virtú do legítimo cidadão, uma vez que não se pode estar à mercê da fortuna para exercer o governo.

Como superar o caos sociopolítico, controlar as disputas entre os homens e regular suas vidas em sociedade? Esse dilema assinalado, inicialmente, por Maquiavel (que adota como resposta a ação do Príncipe, sob os auspícios da virtú, da fortuna e da

necessidade) passou a ser, também, o problema dos pensadores subsequentes, principalmente

com Hobbes e Locke, sendo um tema recorrente séculos depois com a Revolução Francesa, nos debates promovidos por Sieyès, em torno do controle do poder mediante o constitucionalismo.