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2 LINGUAGEM E ATIVIDADE EMANCIPATÓRIA

2.1 A ACD E A LINGUAGEM COMO ATIVIDADE SOCIAL E DISCURSIVA

A ACD configura tanto uma teoria quanto um método de análise de práticas sociais que instanciam discursos em contextos específicos (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999). Em sua essência, essa abordagem dedica-se à investigação do discurso linguisticamente orientado com vistas à mudança social (FAICLOUGH, 1992). Nessa perspectiva, o aporte da ACD estabelece pressupostos valiosos para a elaboração de propostas pedagógicas que levem professores e alunos a refletirem criticamente acerca dos papéis que a linguagem desempenha no/para o funcionamento de suas vidas e atividades diárias e, dessa forma, nos termos de Motta-Roth (2008b, p. 243), desenvolver um projeto de letramento crítico na escola pública capaz de formar cidadãos “analistas do discurso”. O delineamento de nossa proposta pedagógica a partir do desenho de prática social, fundamentado pela ACD, será detalhado no Capítulo 3, ao apresentarmos a perspectiva de ensino ao qual nos afiliamos. Para o momento, enfocamos a discussão acerca do arcabouço teórico e metodológico dessa teoria.

O trabalho com a linguagem dentro de uma perspectiva crítica busca desenvolver, no caso específico desta investigação, no professor e em seus alunos, um processo de conscientização a respeito do mundo em que vivem, construído a partir da problematização das experiências trazidas por esses atores e dos modos de controle da realidade a que estão expostos em seu cotidiano (CLARK; SMITH,

1992). Esse projeto de intervenção pedagógica – e de leitura de mundo – visa promover, em última instância, a transformação social e está diretamente conectado à proposta teórica da ACD, a qual está pautada pelos pressupostos listados a seguir:

1. A linguagem é assumida como uma forma de prática social, o que equivale dizer que nós nos comportamos e agimos por meio da linguagem (CALDAS- COULTHARD, 2008). Assim, os discursos, os textos que produzimos quando nos engajamos em determinadas práticas sociais e as estruturas sociais se influenciam mutuamente (MEURER, 2005).

2. O discurso tem poder para criar, reforçar ou desafiar crenças, relações sociais, identidades e ideologias.

3. Os textos carregam traços e pistas (FAIRCLOUGH, 1992) que tornam possível o estabelecimento de relações entre as estruturas sociais e as escolhas linguísticas de seus produtores.

4. Os textos são perpassados por relações de poder, podendo contribuir para sua manutenção ou transformação. Da mesma forma, tais relações contribuem para o estabelecimento de ideologias, o que justifica a interligação entre poder e ideologia.

5. Textos retomam, remetem, respondem, questionam ou refutam outros textos – intertextualidade.

6. A ACD é uma teoria de caráter emancipatório, pois busca não apenas descrever e explicar, mas expor ideologias e discursos de dominação com vistas à conscientização e transformação daqueles que sofrem mais (WODAK, 2004).

A partir desses fundamentos, é possível compreender o papel fundamental que a linguagem desempenha na pauta da ACD em seu projeto de desenvolvimento de uma teoria social (de uso) da linguagem, como aponta Fairclough (2005). Nesse sentido, como destaca o autor, a análise crítica das questões sociais procura investigar a linguagem (texto) sob dois enfoques centrais: a linguagem como sistema de uso e a linguagem como discurso. Ao nos dedicarmos ao estudo do texto (linguagem) enfocando seu caráter sistêmico, buscamos identificar o papel das estruturas linguísticas em termos de regras ou sistemas de escolhas feitas pelas pessoas para significar suas posições em interações discursivas (FAIRCLOUGH, 2005). Quando tomamos o texto como discurso, nossa atenção está direcionada à

análise das práticas nas quais as pessoas se envolvem/participam e que as inscreve em determinadas “ordens de discurso”, ou seja, práticas discursivas associadas a instituições e domínios de conhecimento, os quais tornam seus discursos mais ou menos hierárquicos, técnicos, especializados, particulares (FAIRCLOUGH, 2005). A combinação desses dois enfoques oferece possibilidades de um trabalho detalhado de reconhecimento dos recursos linguísticos (gramaticais, estruturais) empregados na construção discursiva e a interpretação e o entendimento dos modos como tais recursos constroem e são construídos nas práticas discursivas (FAIRCLOUGH, 2005). Nesses termos, como destaca Meurer (2005, p. 81), a análise de textos criticamente orientada não está interessada “apenas nos textos em si, mas em questões sociais que incluem maneiras de representar a ‘realidade’, manifestação de identidades e relações de poder no mundo contemporâneo”.

Nessa perspectiva, inúmeras pesquisas têm se dedicado à abordagem de questões que envolvem o trabalho com a linguagem em sala de aula dentro de um paradigma crítico, tendo como aporte a ACD (CLARK; SMITH, 1992; LANCASTER; TAYLOR, 1992; MOTTA-ROTH, 2008b; FIGUEREDO, 2008; entre outros). Nesses estudos, o trabalho com a ACD busca colocar os usos concretos da linguagem em foco com vistas a descortinar diferentes visões de mundo, diferentes realidades que, muitas vezes, passam despercebidas ao serem tratadas no contexto de sala de aula como senso comum, seja pela ingenuidade do olhar ou pelo direcionamento essencialmente gramatical do trabalho didático. Em contrapartida, abordagens subsidiadas pela ACD propõem possibilidades de reorganizar o contexto de sala de aula e as dinâmicas de ensino e aprendizagem na escola, levando professores e alunos a repensarem seus papéis nesse contexto e o poder que a reflexão sobre a linguagem oferece para a manutenção ou transformação da realidade social.

Clark e Smith (1992), ao se dedicarem à observação das práticas utilizadas por professores de séries iniciais de escolas americanas, sugerem que o desenvolvimento de práticas de conscientização crítica de professores e alunos a respeito dos papéis que a linguagem desempenha na construção de sentidos de suas experiências de ser, fazer e transformar/controlar a realidade vivida deve considerar não apenas a observação do contexto e suas necessidades como também avaliar a disponibilidade de recursos e empenho dos envolvidos para a viabilização da proposta (CLARK; SMITH, 1992). Da mesma forma, Lancaster e Taylor (1992) apontam a abordagem crítica da linguagem como possibilidade de

conscientizar professores e alunos de sua competência como usuários do discurso na vida social. Nesses termos, destacam, a abordagem pedagógica da ACD ancora- se: 1) no pressuposto de que uma visada crítica busca não apenas descrever, mas explicar as formas de discurso que constituem a sociedade, e 2) nas experiências e nos saberes linguísticos do professor e dos alunos, os quais constituem ponto central do processo de aprendizagem (LANCASTER; TAYLOR, 1992).

Nesta investigação, assumo2 as considerações feitas por Clark e Smith e Lancaster e Taylor como orientações essenciais para o desenvolvimento de um programa de conscientização crítica com meus alunos na escola pública. Acredito que um trabalho de empoderamento social e político só será possível pela tomada de consciência, por parte de professor e alunos, do poder que temos para controlar e transformar o nosso fazer. Esse fazer ao qual nos referimos, e que está associado a todas as dinâmicas de uso da linguagem no contexto escolar, é essencialmente construído e constituído por textos, por isso, outra preocupação dos estudos de abordagem crítica diz respeito às formas de trabalhar com textos em sala de aula.

Segundo Figueredo (2008) e Motta-Roth (2008b), a utilização da ACD em sala de aula está relacionada a um projeto de letramento, dentro do qual ler textos criticamente significa ser capaz de “analisar discursos” (MOTTA-ROTH, 2008b) e, por conseguinte, “analisar a linguagem” (FAIRCLOUGH, 1992; MOTTA-ROTH, 2008b). Nesse sentido, ao analisarmos discursos, buscamos, como propõe Fairclough (2003), desnaturalizar as maneiras de representar aspectos do mundo a partir de três ângulos: o material, a partir de processos, relações e estruturas; o mental, por meio de pensamentos, sentimentos, crenças; e o social, por meio de identidades, relações com outras pessoas, conflitos ideológicos. O discurso permeia a construção de visões de mundo diferenciadas que têm como marco fundamental nossas posições sociais, nossa identidade e as relações que estabelecemos com tudo o que está à nossa volta (FAIRCLOUGH, 2003). Dessa forma, ao colocarmos nossos discursos em contato com outros discursos, estabelecemos cadeias interdiscursivas capazes de projetar novas visões de mundo (FAIRCLOUGH, 2003), podendo vir a promover redirecionamentos de atitudes, saberes e ações críticas acerca da realidade.

2 Neste trabalho, utilizarei sempre a primeira pessoa do singular quando me referir aos compromissos

Na perspectiva da ACD, quando nos posicionamos discursivamente, estamos produzindo textos (falados ou escritos), que, por sua vez, estão inseridos em um dado “contexto de situação”, o qual se inscreve em um dado “contexto de cultura”. Por esse motivo, “qualquer tipo de texto, escolhido por qualquer pessoa, é previsível de acordo com o lugar desta pessoa na estrutura social e institucional” (CALDAS- COULTHARD, 2008, p. 32). Assim, é a partir do texto que podemos ter acesso aos valores e significados imbricados nos discursos, pois “o texto é a entidade física, a produção linguística de um ou mais indivíduos” (MEURER, 1997, p. 16).

Nesses termos, ao dedicar-se à análise de textos, os analistas críticos do discurso buscam identificar as marcas discursivas inscritas nas escolhas linguísticas feitas pelos participantes de determinados grupos/instituições sociais, os quais são capazes de revelar práticas de controle e/ou legitimação de diferenças e relações sociais que, dadas as condições de organização e estrutura da instituição, passam a integrar o senso comum (FAIRCLOUGH, 2003). Assim, por seu direcionamento emancipatório, uma abordagem crítica do texto procura desnaturalizar o que é visto como “comum” a partir da investigação das “crenças, atitudes, valores, ações e histórias” desses sujeitos (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25). Como possibilidade de materializar esse processo de análise crítica do discurso, destacamos, a seguir, perguntas propostas por Meurer (2002) e adaptadas de Motta-Roth (2006) para orientar a leitura crítica com base na ACD:

1) Como esse texto representa a realidade específica com a qual está relacionado?

2) Que tipo de relações sociais esse texto reflete ou provoca?

3) Quais as identidades ou os papéis sociais envolvidos nesse texto?

4) Com que frequência as pessoas leem esse texto para interagir socialmente? 5) Que papéis são desempenhados pelos leitores nessa interação?

6) Quais resultados/implicações/efeitos são pretendidos/esperados dos leitores? Tais perguntas buscam investigar as escolhas feitas no texto, as quais se materializam na instância discursiva da prática social, e qual a relação entre texto e leitor ao participar dela, sendo que cada instância discursiva compõe-se de três dimensões que se complementam: um texto, uma prática discursiva e uma prática social (FAIRCLOUGH, 1992) (Figura 2.1).

Figura 2.1 – Representação tridimensional da instância discursiva

Fonte: Fairclough (2009, p. 73), didatizada por Meurer (2005, p. 95).

Na Figura 2.1, observamos que, para cada uma das dimensões da instância discursiva, Meurer propõe uma dimensão analítica. Quando enfocamos o texto como objeto de análise, dedicamo-nos a descrevê-lo em seus aspectos lexicais, gramaticais e estruturais; na dimensão da prática discursiva, a tarefa analítica é a interpretação dos modos como acontecem os processos de produção, circulação e consumo do texto na sociedade, bem como discutir relações entre esse texto e outros textos e/ou discursos retomados por ele; e, na prática social, buscamos explicar em que medida o texto instancia estruturas de manutenção e/ou desnaturalização de ideologias e posições sociais culturalmente determinadas.

Assim, ao concluirmos a discussão teórico-metodológica da ACD a que nos propomos, com vistas a caracterizar essa abordagem como uma ferramenta de análise da linguagem como prática social, passamos à discussão de outra perspectiva de trabalho com a linguagem, a qual, da mesma forma, encaminha um processo de reflexão e emancipação: a Pesquisa Crítica de Colaboração – PCCol.

TEXTO (evento discursivo)

EXPLICAÇÃO Ideologia Relações de poder PRÁTICAS SOCIAIS (o que as pessoas fazem)

PRÁTICAS DISCURSIVAS

(produção, circulação e consumo de textos) INTERPRETAÇÃO Coerência Intertextualidade/Interdiscursividade DESCRIÇÃO Léxico Gramática Estrutura

Semelhante à ACD, na abordagem que veremos a seguir, a linguagem configura um instrumento de ação sobre o contexto, e, ao utilizarmos esse instrumento colaborativamente, buscamos estabelecer espaços para um processo reflexivo acerca das práticas de ensino e aprendizagem no contexto investigado.