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3 APRENDIZAGEM E ATIVIDADE SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL

3.1 VYGOTSKY, A APRENDIZAGEM MEDIADA E OS CONCEITOS CIENTÍFICOS ESCOLARES

3.1.2 Dos conceitos cotidianos aos científicos: a especificidade da escola

A escola, na concepção vygotskyana, constitui o espaço integralmente dedicado à formação científica do indivíduo, dado que é nela que tomamos

consciência e aprendemos a respeito do que podemos e sabemos fazer. Segundo Vygotsky (2001), essa premissa encontra respaldo na discussão a respeito da especificidade fim desse contexto em mediar/promover a passagem e/ou transformação dos conceitos cotidianos em conceitos científicos ao longo do processo de escolarização do aluno.

Para entendermos como se desenvolve o mecanismo psíquico que materializa a transformação de conceitos cotidianos em científicos, é valido, primeiramente, termos claro que, para Vygotsky, um conceito caracteriza “um ato real complexo de pensamento” (VYGOTSKY, 1998, p. 104 apud CORREA, 2001, p. 49), o qual está além da simples associação mental, sendo, para tanto, necessário que o indivíduo tenha alcançado um desenvolvimento suficiente de suas capacidades psicológicas. Essa concepção implica dizer que, para que possamos ser capazes de conceituar e significar coisas no mundo, e, desse modo, ressignificar saberes do dia a dia em saberes mais especializados, nossa estrutura psicológica passa por um período de formação de conceitos, configurando um processo de “maturação” de diversas funções intelectuais.

O argumento que Vygotsky defende acerca da formação dos conceitos coloca em evidência o papel da linguagem, da “palavra”, como meio para a sua "maturação". Segundo o autor,

O conceito é impossível sem as palavras, o pensamento conceitual é impossível sem o pensamento verbal; o elemento novo, o elemento central de todo o processo, que somos instituídos a considerar como a causa produtiva da maturação dos conceitos, é o emprego específico da palavra, a utilização funcional do signo como meio de formação de conceitos. (VYGOTSKY, 1934/1997, p. 207 apud FRIEDRICH, 2012, p. 94).

De acordo com Friedrich (2012), para Vygotsky, a linguagem, que funciona como instrumento mediador entre o pensamento e a palavra, agrega em si a própria generalização de um conceito. A palavra é vista como o “lugar” e o “suporte” da formação de conceitos, configurando, dessa forma, bem mais do que uma representação do mundo: o modo de pensar no mundo.

Entretanto, em seu processo formativo, os conceitos, até se tornarem verdadeiros, internalizados e passíveis de generalizações mais amplas, são separados, por Vygotsky, em quatro estágios principais de formação: conceitos sincréticos, conceitos complexos, conceitos pseudoverdadeiros e conceitos

verdadeiros. O estágio dos conceitos sincréticos é marcado pelas impressões subjetivas e pouco estruturadas do indivíduo em relação aos objetos (FRIEDRICH, 2012). Nesse estágio, diferentes objetos são designados, utilizando-se uma mesma palavra, construindo-se uma ligação que só terá validade na relação imediata entre o indivíduo e a sua percepção da situação, por exemplo, plantas, animais e objetos podem ser agrupados como pertencentes à mesma classe de coisas. No segundo estágio, dos conceitos complexos, o indivíduo passa a estabelecer ligações entre objetos a partir de relações lógicas, concretas e fatuais, diferente do que acontecia quando estas eram subjetivas. Aqui, começam a surgir as categorizações, isto é, “coisas”7 que são identificadas como pertencentes a classes distintas, agrupadas de modo diferente, por exemplo, plantas, animais, objetos separadamente constituem classes de “coisas” diferentes.

No estágio anterior ao de formação dos conceitos verdadeiros, as ligações se dão por pseudoconceitos. Conforme Friedrich (2012, p. 93), os pseudoconceitos constituem “equivalente[s] não maduro[s] do conceito verdadeiro”, ou seja, nesse estágio, o indivíduo já é capaz de fazer generalizações, no entanto, as ligações entre as “coisas” se dão por semelhança com objetos concretos, seguindo uma lógica própria, na qual ainda não são realizadas operações efetivas de categorização e análise.

No último estágio, temos os denominados, por Vygotsky, de conceitos verdadeiros. Para a compreensão destes, retomamos o papel da palavra como modo de pensar no mundo, pois, como aponta Friedrich (2012, p. 95), utilizar um conceito envolve mais do que generalizar e agrupar “coisas” no mundo, é preciso “pensar o mundo, o que pode conduzir a ligações entre as ‘coisas’ no mundo que não são ligações fatuais”, demandando do indivíduo capacidades de abstração, categorização e analise para, a partir disso, formular generalizações. Os conceitos verdadeiros, dado seu grau elevado de abstração, são, geralmente, adquiridos no processo de escolarização e, por isso, constituem a base para os conceitos científicos que serão ensinados na escola.

Por essa perspectiva, parece-nos compreensível estabelecer a relação entre os conceitos verdadeiros e os científicos, já que os segundos perfazem

7 O termo “coisas” é aqui apresentado entre aspas de modo a buscar uma aproximação do processo

de conceituação do indivíduo. Enquanto não temos consciência e não conseguimos dar nome e/ou classificar um determinado elemento, como pertencente a uma classe, ele será, grosso modo, uma “coisa” que não sabemos como definir.

generalizações das generalizações (FRIEDRICH, 2012), construídas a partir da formação dos primeiros. Essa característica aponta para uma das especificidades dos conceitos científicos: sua existência está sempre relacionada a sistemas de conceitos (Ibid.). Para entendermos o conceito de “homem” necessitamos dominar outros conceitos, como mulher, criança, adolescente, adulto, humanidade, etc. A outra especificidade dos conceitos científicos refere-se ao fato de que eles se apoiam e dependem dos conceitos cotidianos para existir (FRIEDRICH, 2012). Por isso, a distinção entre esses dois tipos de conceitos, que constituem a essência do trabalho pedagógico, é fundamental.

Os conceitos cotidianos são adquiridos no dia a dia, nas situações informais de aprendizagem. Os indivíduos se apropriam desses conceitos em sua relação direta com o mundo e com as pessoas com quem interagem ao realizarem atividades ou experienciarem situações corriqueiras. Os conceitos cotidianos estão diretamente relacionados à formulação dos conceitos sincréticos e complexos (FRIEDRICH, 2012). Na escola, os conceitos cotidianos, por vezes, são tratados como instâncias menores de saber e, por isso, desconsiderados no processo de aprendizagem. Esse equívoco, na maioria das vezes, resulta no desinteresse do aluno pelos conhecimentos que lhes são ensinados, pois não percebe aproximações entre os conhecimentos que adquire na escola (científicos) e aqueles (cotidianos) que adquiriu em seu processo sócio-histórico até chegar à escola. Da mesma forma, isso decorre também do desconhecimento, por parte do professor, de como promover tal aproximação, seja pela diversidade de realidades que constituem o espaço de sala de aula ou pelo espaço quase inexistente em sua rotina para refletir a esse respeito.

Os conceitos científicos, por sua vez, caracterizam relações indiretas, mediadas pelos conceitos cotidianos (FRIEDRICH, 2012). Em sua essência, esses conceitos perfazem generalizações das coisas do mundo, que se constituem a partir de ações reflexivas acerca dos conceitos sobre os quais se apoiam. De modo mais simplificado, podemos dizer que os conceitos científicos contribuem para a tomada de consciência sobre os conceitos cotidianos, promovendo processos metaconscientes, reflexões sobre o que já sabemos sobre o mundo. Nesse aspecto, reside o papel reservado à escola no ensino e na aprendizagem dos conceitos científicos do aluno, em termos de promover a expansão do que o aluno já sabe e

desafiando-o a buscar novos conhecimentos, promover espaços para o seu desenvolvimento social, cultural e histórico.

A esse respeito, Vygotsky traz como exemplo o ensino da linguagem escrita a partir da linguagem oral, de modo a desenvolver no aluno a consciência de que, ainda que o oral e o escrito caracterizem registros e estruturas distintas, essas duas modalidades são parte do seu cotidiano e mais ou menos valorizadas em instâncias específicas do seu agir no mundo (FRIEDRICH, 2012). Da mesma forma, podemos pensar o ensino de uma língua estrangeira, que, inevitavelmente, deve ter, na língua materna, o seu elemento mediador. No contexto atual de ensino de línguas (no caso, o inglês), dificilmente encontraremos um aluno que não tenha tido um contato mínimo com ela, por meio de músicas, propagandas, vitrines de loja do Calçadão de Santa Maria, etc. No entanto, a estrutura dessas duas línguas (fonológica, morfológica, sintática, semântica) guarda especificidades que só podem ser desnaturalizadas por meio da análise das semelhanças e diferenças existentes entre elas. Assim, ao considerarmos a combinação entre conceitos cotidianos (o que o aluno já conhece da língua-alvo empiricamente) e os conceitos verdadeiros (o que o aluno sabe fazer com a língua materna), criamos possibilidades de promoção de conceitos científicos a partir da tomada de consciência a respeito das aproximações entre língua materna e língua estrangeira e do modo como o desenvolvimento de competências que levam em consideração essas relações nos permitem fazer coisas por meio da linguagem.

Assim, partindo dessas considerações, resta-nos espaço para um último ponto a ser discutido a respeito da importância da aquisição dos conceitos científicos na escola: o caráter emancipatório da aprendizagem. Por constituírem formações sempre mediadas, os conceitos científicos sinalizam ao aluno o “domínio” (metaconsciência) de suas aprendizagens por meio da tomada de consciência do que sabem e podem fazer. Segundo Friedrich (2012, p. 106), “dominar”, na concepção vygotskyana, significa “poder fazer voluntariamente”. Esse apontamento para uma ação voluntária, livre de construções controladas e mecânicas, conduz à emancipação da aprendizagem e, em consequência, permite ao aluno testar e aplicar tal conhecimento em outras situações.

Na próxima seção, discutimos alguns estudos que, alinhados à perspectiva emancipatória e revolucionária de aprendizagem dos estudos de Vygotsky, oferecem

insights e possibilidades de encaminhamento para a implementação de nossa proposta de ensino na escola pública.