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3 APRENDIZAGEM E ATIVIDADE SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL

3.1 VYGOTSKY, A APRENDIZAGEM MEDIADA E OS CONCEITOS CIENTÍFICOS ESCOLARES

3.1.1 Mediação: um processo da aprendizagem escolar

Antes de iniciarmos a discussão desta seção, vale destacar que, ao contrário do que o título da seção possa sugerir, não entendemos a mediação como um processo que se desenvolve essencialmente na escola, pois, a exemplo do que postula Vygotsky, toda relação do indivíduo com o mundo é fundamentalmente mediada (OLIVEIRA, 1997). Aqui, defendemos o argumento de que o ambiente escolar, por seu papel decisivo no desenvolvimento sócio-histórico do sujeito, perfaz um espaço de mediação absoluta. Na escola, a promoção da aprendizagem está calcada, grosso modo, na relação entre alguém que ensina alguma coisa a outrem. Nessa dinâmica, tanto o aluno quanto o professor tomam parte da aprendizagem, sendo, dialeticamente, ora aquele que aprende, ora aquele que ensina. Na escola, contudo, costuma-se delegar ao professor a função de (elemento) mediador entre o aprendiz e o conteúdo/conhecimento a ser aprendido, pois essa intervenção busca problematizar o acesso à informação e, em consequência, possibilitar a aprendizagem.

Nesses termos, a mediação pode ser entendida como o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação que deixa de ser direta e passa a ser mediada (indireta) por esse elemento (OLIVEIRA, 1997). Para Vygotsky, a relação direta é aquela em que a reação se dá por impulso, ou seja, uma resposta imediata a uma situação específica. Um exemplo já consagrado dessa relação refere-se a um indivíduo que, ao aproximar sua mão da chama de uma vela, retira-a imediatamente ao sentir o calor. Por outro lado, uma relação indireta é aquela que sofre a interferência de um elemento intermediário, que, considerando o exemplo da vela, pode se dar pela lembrança da dor sentida em outra situação semelhante. Segundo Oliveira (1997), a intervenção dos elementos mediadores estabelece um elo entre o indivíduo e o mundo, fazendo com que processos baseados na relação mediada (indireta) passem a predominar sobre aqueles baseados em relações estímulo-resposta (direta).

Para entendermos como acontece o processo de mediação discutido por Vygotsky, faz-se necessária a compreensão do que ele denominou de “elementos mediadores”, os quais foram distintos como instrumentos e signos ou instrumentos psicológicos. Os instrumentos, na perspectiva marxista à qual o trabalho de Vygotsky se afilia, são caracterizados como elementos interpostos entre o

trabalhador e o objeto de seu trabalho, “ampliando as possibilidades de transformação da natureza” (OLIVEIRA, 1997, p. 29). Em outras palavras, os instrumentos são os artefatos concretos, externos, utilizados pelo homem para intervir no mundo (o machado, o lápis, o computador, o celular). Da mesma forma, ao utilizar os signos, o homem também intervém no mundo, no entanto, estes funcionam como “instrumentos psicológicos”, pois

[estão] orientados para o próprio sujeito, para dentro do indivíduo; dirigem-se ao controle de ações psicológicas [(lembrar, escolher, comparar), os signos são] interpretáveis como representação da realidade e podem referir-se a elementos ausentes no espaço e no tempo presentes. (OLIVEIRA, 1997, p. 30).

Na escola, a exemplo de muitos outros contextos de interação social, é a linguagem que assume o papel de instrumento/signo entre a prática do professor, o aluno e o conhecimento disponível naquele contexto. Essa relação é instituída com base no postulado vygotskyano de que a aprendizagem acontece dentro de um espaço sociocultural no qual o indivíduo aprende e se desenvolve na interação e com o suporte de outrem (VIGOTSKY, 1934/2001). Dessa premissa, Vygotsky elabora dois conceitos que são essenciais para entendermos o processo de aprendizagem escolar: o nível de desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento proximal (ZDP).

Por nível de desenvolvimento real, Vygotsky denomina a capacidade que o indivíduo possui de realizar atividades independentemente, ou seja, os saberes que já foram consolidados em outras fases de seu processo de desenvolvimento (VYGOTSKY, 1934/2001). A esse respeito, podemos pensar que, ao chegar à escola, o aluno traz consigo muitos saberes e capacidades que lhe permitem realizar tarefas sozinho, os quais podem ter sido fruto de observações de como outras pessoas (amigos, familiares) realizavam tais tarefas ou advindas da necessidade de o indivíduo de realizar tal tarefa, por exemplo, amarrar os sapatos. Nessa dinâmica, as ações individuais são fruto das colaborações de outrem para que o indivíduo possa realizar coisas sozinho. Assim, ZDP pode ser definida como

uma forma particular de interdependência humana (JOHN-STEINER, 2000) que se estabelece numa zona de confiança, mas também de conflito, em que o interagentes compartilham a produção de

conhecimento que está em discussão [...] criando ZDPs mútuas forjadas na colaboração. (RYCKEBUSCH, 2016, p. 117).

Nesses termos, Vygotsky (1934/2001, p. 241) caracteriza a aprendizagem escolar como marcada por “um alto grau de imitação, [pois] o aluno não aprende a fazer o que é capaz, mas o que é incapaz de realizar sozinho e que, por estar ao seu alcance [pode fazê-lo] em colaboração com e guiado por seu professor”. Com efeito, vale destacar que a compreensão vygotskyana de imitação está relacionada à ideia de “reconstrução individual”, na qual o indivíduo cria algo novo a partir do que observa no outro. Para Newman e Holzman (1993, p. 103-105), a imitação assume um valor de “prática revolucionária” na medida em que, como defendia Vygotsky, “as crianças [só imitam] o que está na ZDP”. Isso implica dizer que, imitar, nessa perspectiva, significa criar significado, a partir das ferramentas de linguagem da atividade humana, para algo que ainda não lhes é passível de compreensão e, dessa forma, “reorganizar o pensamento/linguagem” (NEWMAN; HOLZMAN, 1993, p. 103). Nessa dinâmica, dado que o indivíduo busca fazer algo que está além de suas capacidades reais naquele momento, há direcionamentos para possíveis aprendizagens e desenvolvimentos (OLIVEIRA, 1997).

A aprendizagem e o desenvolvimento são processos centrais na teoria sócio- histórico-cultural de Vygotsky e estão diretamente relacionados ao conceito de ZDP. Segundo Newman e Holzman (1993), a criação de ZDPs só é possível quando o processo de aprendizagem é suficientemente significativo para o indivíduo ao ponto de promover seu desenvolvimento como ser humano. Ao relacionarmos tal premissa ao contexto escolar, podemos dizer que a aprendizagem escolar só alcançará o efeito esperado no aluno se estiver conectada à vida desse aluno em seus mais diversos contextos de interação (casa, escola, shopping, conversa com amigos), promovendo, dessa forma, a aquisição de competências que efetivamente lhe sejam úteis para a vida.

Nessa perspectiva, para que as situações vivenciadas na escola sejam capazes de criar ZDPs, a escola precisa promover “contextos de atividade” (GALLIMORE; THARP, 1996 apud NEWMAN; HOLZMAN, 1993, p. 90), espaços colaborativos em que as ações não se pautem pela hierarquia dos professores sobre os alunos, mas pela assistência conjunta dos membros da atividade para o desenvolvimento de competências em comum, de modo a construir uma “cultura de

aprendizagem”. Assim, com base nessa premissa, Newman e Holzman (1993) discutem que o conceito de ZDP aplicado ao contexto escolar tem subsidiado inúmeros experimentos ao longo da história. Para os autores, muitos desses estudos, ainda que considerem as premissas vygotskyanas e, aparentemente, orientem-se pela ZDP como processo de aprendizagem e desenvolvimento, pecam ao aplicar o conceito focalizando apenas um aspecto do processo, a aprendizagem.

O trabalho de Gallimore e Tharp (1993) configura, segundo os autores, um exemplo de confusão teórica no tratamento dado ao conceito de ZDP na elaboração de seu modelo de aprendizagem assistida. Gallimore e Tharp (1996) propõem um modelo cíclico de desenvolvimento da aprendizagem composto por quatro estágios de aprendizagem. Os estágios I e II, segundo os autores, estão orientados dentro do paradigma vygotskyano e os estágios III e IV são descritos como avanços no processo de aprendizagem que vão além da zona de desenvolvimento proximal. O Estágio I refere-se ao que os autores denominam de “desempenho assistido”, no qual o aluno envolve-se em tarefas para as quais ainda não desenvolveu as habilidades demandadas, por isso necessita do suporte de outros mais capazes. No Estágio II, a partir do que conseguiu fazer com a ajuda dos outros, o aluno é capaz de realizar sozinho as atividades e autorregular seu desempenho. O próximo estágio (Estágio III) caracteriza a interiorização, automatização e fossilização do desempenho para a realização da atividade, quando o aluno toma consciência de que sabe e pode realizar a tarefa. Por fim, no Estágio IV, acontece a desautomatização de um desempenho já interiorizado para dar início a um novo ciclo de aprendizagem em relação a um novo conhecimento.

A crítica feita ao modelo de Gallimore e Tharp, como apontamos anteriormente, reside no fato do direcionamento do processo para a avaliação/evolução do processo de aprendizagem, desconsiderando a relação aprendizagem e desenvolvimento, primordial na teoria vygotskyana (NEWMAN; HOLZMAN, 1993). A real natureza da ZDP está no papel da aprendizagem para a criação de significados que conduzam ao desenvolvimento coletivo sócio-histórico por meio da interação entre aqueles que já conseguem realizar uma determinada atividade e aqueles que ainda não conseguem realizá-la sozinhos, e não na medição do quanto, como e onde os indivíduos aprendem a fazer determinada atividade ou tarefa. Para Newman e Holzman (1993, p. 96), a ZDP não configura um lugar, ela é a própria atividade, “uma unidade histórica, a essencial socialidade dos seres

humanos expressa como atividade revolucionária”, ou seja, de transformação do homem e da sociedade.

A esse respeito, Newman e Holzman (1993) apresentam o experimento de Hedegaard (1990) como exemplar significativo da aplicação do conceito de ZPD numa perspectiva sócio-histórico-cultural. Hedegaard e seus colaboradores implementaram práticas de ensino e aprendizagem de ciências com vistas a provocar a criação de ZDPs coletivas em um grupo de alunos. Os resultados dessa pesquisa revelaram o papel da motivação no processo de aprendizagem e desenvolvimento, pois, em vez de atividades individualizadas e hierarquicamente definidas, os alunos foram expostos a situações que lhes demandavam atitudes e tomadas de decisões as quais exigiam divisões de tarefas e constantes reflexões, reorganizações e avaliações críticas sobre os conceitos discutidos, de modo a definir, colaborativamente, os próximos estágios de ensino e aprendizagem (HEDEGAARD et al., 1990 apud NEWMAN; HOLZMAN, 1993). Nesse estudo, a aprendizagem conduz ao desenvolvimento por meio da construção de um contexto promotor de significado (reflexão, análise, avaliação) sobre e na atividade e de transformação social de todos os envolvidos na atividade (pesquisadores, professores e alunos), os quais, individual e coletivamente, adquirem e compartilham conhecimento e capital social.

Esse movimento transformativo gerado na ZDP como atividade sócio- histórica, ao nosso entendimento, representa a essência do processo de escolarização. Na escola, temos nosso primeiro encontro com o mundo do conhecimento especializado, e essa caminhada abre possibilidades para a criação inúmeras ZDPs, de modo a tornar possível a relação entre os saberes que acumulamos de nossas atividades sócio históricas particulares (individuais) e os saberes acumulados pela sociedade e que passarão a constituir nossa atividade sócio-histórica (coletiva). Esta, de modo simplificado, é a dinâmica da passagem dos conceitos cotidianos aos conceitos científicos durante o período escolar – discussão à qual nos dedicamos na seção seguinte.