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A ADOÇÃO VIVIDA COMO CISÃO: PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR

No documento http://conpdl.com.br/anaisconpdl7 (páginas 32-42)

DE NUNCA DEIXE DE ACREDITAR,

DE CHRISTINA RICKARDSSON

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Christina Rickardsson é a autora de uma autobiografia publicada em 2016 na Suécia com o título de Sluta aldrig gå, expressão que poderia ser traduzida livremente para o português como “nunca pare de caminhar”. Obra de estreia, o livro tornou-se um best-seller na cena literária da Suécia (Wallin, 2017) e despertou um vivo debate acerca de muitos dos temas delicados trabalhados por sua narrativa, como a problemática do abandono e da adoção, além das várias formas de opressão vigentes num mundo de tamanha desigualdade social como o que é descrito na obra.

Traduzida para o português com o título de Nunca deixe de acreditar e lançada no Brasil pela Editora Novo Conceito (com tradução de Fernanda Sarmatz Åkesson), a obra obteve ressonância internacional – tendo recebido pouco depois uma tradução também para o inglês1 – e expandiu ainda mais os horizontes dos debates em torno das problemáticas suscitadas por ela. Ao ser escolhida como obra de referência de um evento da magnitude que tem o VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Literatura (FAFICH-UFMG), intitulado, na sua edição de 2018, “As múltiplas faces da adoção”, a narrativa de Rickardsson coloca-se num entroncamento de muitas vias para a reflexão crítica acerca de questões sociais, literárias, linguísticas, psicológicas e jurídicas.

Sem pretender avançar um catálogo exaustivo dos tópicos que poderiam ser desenvolvidos a partir dessa obra, gostaria de mencionar pelo menos os seguintes: de uma perspectiva social, envolvendo ainda os campos da psicologia e do direito, as complexidades relacionadas a um processo de adoção, bem como a perversidade das estruturas opressivas de uma sociedade classista, machista e racista; de uma perspectiva literária, a questão da autobiografia, da memória e da narração como vivência escritural (na linha do que é chamado por Conceição Evaristo de “escrevivência”); de uma perspectiva linguística, a questão da língua materna (e da possibilidade de privação dela), além da importância da aquisição linguística para a constituição do modo de ver o mundo de cada pessoa e os problemas envolvidos por toda a problemática da tradução (ou da intraduzibilidade). Como se vê, a multiplicidade de temas suscitados por essa obra é bastante vasta e minhas observações aqui não têm a pretensão de constituir uma leitura sistemática do livro de Christina Rickardsson em toda a sua complexidade, mas oferecer apontamentos que suscitem algumas reflexões a partir de sua leitura.

Para colocar em poucas palavras e da forma mais direta, minha hipótese interpretativa é que essa obra se estrutura sob o signo da cisão. Na sequência de meu argumento, pretendo modalizar esse juízo inicial aparentemente tão peremptório – e o farei a partir da sugestão de que existe algo que escapa à lei de formalização dessa estruturação básica –, contudo, por ora, gostaria de deixar claro o que entendo quando afirmo que a obra se estrutura em torno de tal cisão. No nível narratológico, isso é indicado pela alteração constante entre capítulos em que se assume

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uma narrativa de fatos no presente da narradora na Suécia (isto é, a partir de 2015, quando Rickardsson se decide por buscar as raízes de sua família biológica), mas também capítulos em que se abordam as lembranças do passado no Brasil, desde a infância numa caverna nas redondezas de Diamantina, passando pela vida nas ruas de São Paulo até a entrada num orfanato e sua consequente adoção por uma família sueca (entre meados da década de 1980 e o início da de 1990). No nível temático – envolvendo questões sociológicas e linguísticas, por exemplo –, a realidade da criança brasileira, exposta às mazelas sociais de uma existência miserável, ainda mais quando à opressão econômica somam-se ainda as de raça e gênero,2 contrapõe-se a realidade da jovem sueca, crescendo num estado de bem-estar social, com relativo conforto material. Nesse mesmo sentido, paradoxalmente, a mais viva impressão de pertencimento está presente nas memórias da criança brasileira (independentemente de quão miserável sua infância tenha sido), enquanto a experiência da jovem sueca é atravessada pelo constante sentimento de estar fora do lugar na nova família e no novo país (ambos tão bem estruturados). Outras formas de cisão poderiam ser facilmente detectadas ao longo do livro, mas posso me dar por satisfeito com um último exemplo bastante ilustrativo. No prólogo, a autora afirma: “Tenho duas pessoas em mim: uma é a Christina de Norrland e a outra é a Christiana do Brasil. Nem sempre foi uma tarefa fácil juntar essas duas” (Rickardsson, 2018, p. 6). Além disso, nos agradecimentos ao final do livro a assinatura que consta é: “Christina & Christiana” (Rickardsson, 2018, p. 254).

O livro Nunca deixe de acreditar, portanto, é escrito sob o signo de uma cisão. Aqui é possível colocar a seguinte pergunta: de onde vem tal cisão? A julgar pela estrutura do livro e por muito que afirma a narradora, ela viria do próprio momento da adoção. Cisão constitutiva de todas as demais cisões, a adoção surge da perspectiva da narradora – mesmo reconhecendo a posteriori o impacto positivo que a mesma viria a ter para garantir sua sobrevivência e seu desenvolvimento futuro – sob a forma de uma violência infligida às várias pessoas involuntariamente envolvidas no processo: em primeiro lugar, às crianças, que – quando consultadas – são conduzidas inadvertidamente a fazer a opção esperada delas; em segundo lugar, à mãe biológica, abertamente contrária à ideia de se ver separada de seus filhos. A história infelizmente ainda é atualíssima, como indicam os recentes casos de sequestros de bebês – separados de suas mães biológicas sob a alegação de que as mesmas seriam inaptas à maternidade, dado um pretenso histórico como usuárias de drogas3. No caso da mãe de Christiana, a acusação era de algum tipo de distúrbio mental que a impossibilitaria de cuidar de seus filhos, mas – ainda que a própria narradora pareça enfim acreditar que a mãe

2. Para detalhes sobre a teoria da interseccionalidade, segundo a qual diferentes formas de opressão se combinam e se potencializam, tal como demonstrado a partir da história sócio econômica dos E.U.A. Cf. Davis, 2016.

3. A título de exemplo, que se leve em conta a situação verificada em hospitais e maternidades públicas de Belo Horizonte (Lagôa, 2017). Segundo a informação desse artigo: “O acolhimento compulsório em abrigos de BH começou em 2014, quando o Ministério Público fez uma recomendação às maternidades públicas que indicassem as mães usuárias de drogas ao Juizado de Infância e Juventude. Em julho de 2016, o juiz da Vara, Marcos Flávio Lucas Padula, estipulou o prazo de 48 horas para a comunicação à Justiça.”

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pudesse de fato ter apresentado algum tipo de desvio dessa ordem4 – a verdade é que, tanto num caso, quanto nos outros, o fator determinante parece ter sido a situação de desprovimento material e, portanto, de vulnerabilidade social e jurídica dessas mulheres.

Levando em conta tais considerações, é possível afirmar que a violência do processo de adoção se faz presente sobretudo da perspectiva dos que parecem não ter opção efetiva no que diz respeito ao mesmo. Aqui vale a pena atentar para uma curiosidade linguística de valor bastante sintomático: a palavra “adoção” provém de dois termos do latim ad e optio, já sendo usada entre os romanos para nomear o processo por meio do qual um cidadão optava por acolher alguém no seio de sua família, reconhecendo-o como membro dela (Ernout & Meillet, 1951, p. 854). No caso do processo de adoção de Christina, a julgar pelo que é narrado no livro, os participantes mais ativos no processo foram, por um lado, a diretora do orfanato, e, por outro, o casal sueco que viria a se tornar sua família adotiva. Vale notar que a narradora não salienta esse aspecto violentador do processo – reconhecendo, inclusive, muitas vezes as boas intenções dessas pessoas e sua dívida para com tudo o que lhe proporcionaram –, mas é inegável que a adoção é representada como uma forma de violência responsável pela cisão que perpassa o livro e a própria vida da autora5. Suas consequências são tão profundas que – mesmo tendo vivido no Brasil até os oito anos de idade e guardado muitas memórias vivas dessa época – Rickardsson (2017, p. 52) chega a se esquecer da própria língua materna.

A cisão estrutural dessa obra, contudo, não é tão radical quanto poderia parecer a princípio. Em primeiro lugar, os traumas de Christiana no Brasil acompanham-na durante toda a sua vida na Suécia. Transbordando para muito além dos instantes imediatos em que foram vividos num contexto de miséria, esses traumas – advindos de violência sexual, policial ou social – fizeram- se constantemente presentes em sua “nova” vida, como indicam alguns dos problemas de adaptação narrados por ela6. Muitas das questões trabalhadas por Christina em sua vida adulta

4. Nas palavras da autora: “Acima de tudo, acho que sempre desconfiei que o orfanato tinha razão em dizer que mamãe era doente. Eu talvez tenha me negado, já adulta, a acreditar que ela fosse doente, simplesmente por lealdade a ela. Sei que com oito anos de idade não tinha condições de entender toda a situação, mas, quanto maior eu ficava, mais me empenhava em negar a condição de mamãe, apesar da minha intuição me dizer o contrário.” (Rickardsson, 2018, p. 224). 5. Isso fica evidente nas próprias palavras do Epílogo do livro: “Não posso dizer que me sinto zangada por ter sido adotada, mas me sinto incomodada por nunca ter tido a oportunidade de me despedir, porque nunca me explicaram o que uma adoção significava, antes que fosse tarde demais para que eu fizesse minha própria escolha. Fico zangada que a minha mãe não tenha recebido qualquer tipo de ajuda, que tenha sido deixada nas ruas, à sua sorte.” (Rickardsson, 2017, p. 247).

6. As passagens em que se descrevem diferentes formas de violência são, por exemplo: pp. 27-28 (violência de ordem econômico social); pp. 38-40 (pedofilia); pp. 44-8 (violência sexual e policial); pp. 72-82 (violência policial na prática do extermínio infantil). Abordando a difícil questão da adaptação às novas circunstâncias em que se encontrava, a autora afirma o seguinte: “Tanta coisa era diferente na Suécia. No meu novo país, meus pais me alertavam para não falar e não confiar em pessoas estranhas. No Brasil, mamãe me alertava para ter cuidado com a polícia, pois nem todos policiais eram confiáveis. O problema era saber em quem se podia confiar e de quem se devia fugir. Então, eu fazia o que achava mais lógico, corria de todos os policiais que eu via.” (Rickardsson, 2017, p. 188).

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são consequências das memórias que trazia dessas experiências da infância. A própria ânsia apresentada por ela – e que é o fio condutor da narrativa e da ação – de recuperar o contato com suas raízes também indica de que modo certa interseção entre essas realidades aí se insinua pouco a pouco.

Além disso, um índice ainda mais característico do desejo expresso pela narradora de desfazer tal cisão se dá a ver na própria escolha da palavra “mamãe”. Optando por mantê-la assim, em português, em sua narrativa sueca – bem como em sua versão para o inglês –, a palavra torna-se uma espécie de “nome próprio”, constituindo um elemento verdadeiramente intraduzível para o português. Afinal, como marcar a diferença inscrita por essa opção ao longo de toda uma narrativa em língua estrangeira, quando ela tem que passar sob certa indiferenciação na versão para o português? A título de exemplo, comparem-se aqui esses dois trechos, narrando o início da vida dessa “menina da caverna”:

Segundo a minha certidão de nascimento brasileira, eu nasci no dia 30 de abril de 1983. Ao mesmo tempo em que o Rei Carlos Gustavo XVI comemorava seu trigésimo sétimo aniversário, eu respirava pela primeira vez em Diamantina, do outro lado do Oceano Atlântico, no Brasil. Quando eu era pequena, mamãe costumava me contar que eu tinha nascido na floresta, que meu pai era um índio e, portanto, eu era meio indígena. Se isso é verdade, não sei. (Rickardsson, 2017, p. 14, tradução nossa)7

O detalhe pode parecer trivial, mas na sequência de minha argumentação pretendo sugerir a importância do significado construído pelo constante retorno dessa palavra estranha e estrangeira – “mamãe”, escrita em português – no seio da narrativa em sueco ou em inglês. Além disso, esse ponto poderia dar margem a certas considerações laterais, ainda que, a meu ver, imprescindíveis a uma problematização criteriosa das questões de tradução colocadas por esse livro. Para ficar aqui no mais evidente, que se pense no título da obra: Sluta aldrig gå, expressão que – como já disse – poderia ser traduzida livremente para o português por algo como “nunca pare de caminhar”. A tradutora para o inglês, Tara F. Chace, optou pela literalidade da expressão, Never Stop Walking, enquanto a tradução brasileira – assinada por Fernanda Sarmatz Åkesson – adotou uma versão mais interpretativa, com o título Nunca deixe de acreditar.

Aqui é importante considerar que as fórmulas em sueco e em inglês, cujo sentido conotativo

7. No original: According to my Brazilian papers, I was born on April 30, 1983. That was also the thirty-seventh birthday of the king of Sweden, on the far side of the Atlantic from Diamantina, Brazil, where I took my first breaths. When I was little, Mamãe (the Portuguese word for mother) used to tell me that I was born in the woods, that my father was an Indian, so I was half-Indian. I don’t know whether this is true. (Rickardsson, 2018, p. 18)

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evidentemente traz uma mensagem positiva (de conteúdo motivacional), têm um sentido denotativo de importância inquestionável ao longo do livro: em certos trechos de sua narrativa, Rickardsson fala da necessidade de continuar em movimento – no sentido literal da expressão – a fim de que alguma chance de sobrevivência pudesse se dar8. E mais: a narradora afirma que essa lição lhe foi ensinada por sua “mamãe” desde a mais tenra idade. Tomo a liberdade de citar aqui um trecho inteiro – o primeiro em que a lição da mãe é mencionada –, a fim de que se compreenda a importância dessa passagem, em termos narratológicos e autobiográficos, para a definição da própria obra:

É incrível o que o amor dos pais pelos filhos é capaz de fazer. Se não fosse por mamãe, durante aquele período da minha vida, eu nunca mais sairia do estado de apatia em que me encontrava. Provavelmente teria me transformado em um fantasma extremamente frágil, vagando pelas ruas. Mamãe me beijou na testa, no rosto e chorou junto comigo.

- Christiana, a vida é difícil e injusta muitas vezes, mas nunca fique parada. Siga sempre em frente – ela me disse.

Lembro que quis saber o porquê e mamãe respondeu: [...]

- Um dia você vai entender e, até que chegue esse dia, me prometa que sempre vai seguir em frente, doa o que doer. Sempre em frente!

- Mas para onde devo ir, mamãe?

- Isso não tem importância. Só continue seguindo em frente, está bem? – Mamãe se levantou, estendeu a mão para mim, que segurei, e fomos embora dali. (Rickardsson, 2017, pp. 81-82).

Como se vê, a dimensão física da expressão tomada ao pé da letra é responsável por conceder ao corpo e ao seu movimento uma importância inexistente em uma frase abstrata como “nunca deixe de acreditar”. Nesse sentido, a tradução brasileira violenta uma faceta importante do pensamento de Rickardsson ao adotar uma interpretação abstrata da expressão, abandonando assim seu aspecto concreto, que é tão importante para a narrativa e tão sugestivo para as possíveis conexões

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com um pensamento filosófico sobre o corpo e o caminhar9. Esse problema seria facilmente contornável, bastando que se optasse por uma tradução mais direta – e igualmente dotada dos sentidos conotativo e denotativo – como: “nunca deixe de caminhar” ou “jamais pare de andar”. Terminada essa digressão, acredito ser necessário abordar um ponto fundamental –ainda com implicações sobre certas questões tradutológicas – que consiste na opção pela palavra “mamãe” (ou “mãe”) em português, ao longo de todo o texto sueco, bem como de sua versão para o inglês. Impulso afetivo de tentar se reapropriar daquilo de que fora privada – não apenas da mãe brasileira, mas também de sua língua materna, isto é, da língua brasileira que ela veio a perder –, a decisão de manter essa palavra assim, intrusa ao sueco, estrangeira e estranha, aponta já para o desejo de dissolver a cisão – ou melhor, as cisões – de sua narrativa. Se a perda da mãe é constitutiva desse relato autobiográfico, a perda da língua materna – igualmente constitutiva – aparece como fonte de angústia em mais de um momento para Rickardsson, chegando, inclusive, a se revelar um dos maiores temores que ela vem a enfrentar na hora de se resolver a ir ao Brasil em busca de suas origens10. O retorno constante dessa palavra – estranhamente familiar ao ouvido daquela que a cultivara em sua memória, embora tenha se esquecido do próprio idioma de que fazia parte – aponta para o reencontro final que vai unir mais uma vez, ainda que sem plenitude, as várias partes cindidas dessa narrativa: não apenas a filha à dona Petronilia (sua mãe biológica), ou Christina e sua língua materna, mas também Christiana e sua mãe adotiva, bem como as diferentes temporalidades narrativas da ação no presente e suas memórias sobre o passado. Da mesma forma, a reunião das duas partes cindidas da narradora-personagem (Christina – Christiana) na assinatura aposta ao final do livro é prova maior do efeito de espectralidade que se esconde por trás da recorrência dessa palavra a um só tempo tão estranha e tão familiar que é “mamãe”.

9. Tomo a liberdade de citar trechos de textos filosóficos que me acorrem à memória e que reforçariam uma interpretação como a que aqui proponho: “Quando escrevo sentado, administro pensamentos, ideias, movimentos de pensamentos, que me ocorrem sempre quando estou de pé, fazendo outra coisa, andando, dirigindo, correndo. Na época em que eu corria (parei agora), era então que as coisas mais organizadoras, as ideias me ocorriam. Aconteceu-me sair para correr com um papel no bolso para anotar. Em seguida, quando me sentava à minha mesa [...], eu administrava, explorava coisas furtivas, cursivas, algumas vezes fulgurantes, que me ocorriam sempre na corrida. Logo tomei consciência disso, era de pé que aquelas coisas boas podiam me acontecer.” (Derrida apud Peeters, 2013, p. 518); “A vida sedentária é justamente o pecado contra o santo espírito. Apenas os pensamentos andados têm valor.” (Nietzsche, 2006, p. 12; Crepúsculo dos deuses, I.34); “O que mais lamento nos pormenores da minha vida de que me esqueci, é não haver feito um diário das minhas viagens. Nunca pensei tanto, nunca vivi tanto, nunca fui tanto eu, se assim ouso exprimir-me, como nas que fiz só e a pé. Andar tem qualquer coisa que me anima e aviva as ideias: quase não posso pensar quando estou parado; preciso pôr o corpo em movimento para que o espírito o esteja também.” (Rousseau, 1964, p. 163).

10. A título de exemplo, que se leve em conta a seguinte passagem: “Tenho medo das consequências... é difícil reconhecer, porque é um pensamento egoísta. Como o fato de ela estar viva afetará a minha vida? Como está mamãe? Onde ela mora? Em que condições se encontra? Será que precisa de tratamento médico? Eu terei condições financeiras para ajudá-la, se for o caso? Como faremos para tudo funcionar se ela vive no Brasil e eu tenho a minha vida na Suécia? Como vamos nos comunicar, quando eu já não falo português e ela não sabe uma palavra em sueco? O que vai acontecer quando Rivia não estiver por perto para traduzir? Imagine se o nosso reencontro não nos proporcionar sentimentos

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