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A VIDA NAS RUAS

No documento http://conpdl.com.br/anaisconpdl7 (páginas 127-129)

PSICANALÍTICAS SOBRE TRAUMA E BUSCA DAS ORIGENS

A VIDA NAS RUAS

Em São Paulo, no final dos anos 80, mãe e filha moraram nas ruas, em lugares improvisados sob túneis, usando caixas de papelão como camas. A menina fazia muitas perguntas, para as quais a mãe oferecia-lhe explicações, traduções e colaborava para a construção de um universo simbólico mais elaborado. Além disso, a mãe falava muito sobre Deus. Christiana foi ficando mais velha e curiosa e passou a questionar sobre a cor de sua pele, sobre as diferenças no tratamento que as pessoas negras como elas recebiam. Começou a perceber o racismo, a pobreza e as condições de violência às quais estavam submetidas. Tinha cinco ou seis anos de idade quando a mãe arranjou um emprego de faxineira em uma fábrica, onde a menina ficava correndo e brincando.

Um dia, Christiana estava sozinha enquanto a mãe trabalhava. A menina corria pela fábrica, quando um homem branco de meia idade ofereceu-lhe um pirulito e abusou sexualmente dela. O relato no livro é alusivo, preservando-nos dos detalhes. A menina aproximou-se da mãe após o ocorrido, estava diferente, e, quando Petronilia percebeu o que havia acontecido, carregou-a no colo, abandonou o emprego e voltou às ruas.

Christiana resgata ainda a memória de uma briga na feira entre sua mãe e uma mulher branca. Houve uma confusão com policiais e foram os três para a delegacia: a menina, sua mãe e seu irmãozinho. A autora relata que não tem memória da mãe grávida. Na delegacia há uma nova cena de abuso sexual, dessa vez sofrida por sua mãe. A autora não se lembra bem do que aconteceu, sabe apenas que ficou cuidando do irmãozinho bebê dentro da cela enquanto a mãe demorava a voltar. Christiana sentia culpa por tudo que estava acontecendo, e relata que gostaria de poder fazer alguma coisa para ajudar a mãe e o irmão, mas tinha apenas seis anos. Nada podia fazer. Nos anos que se seguiram, a menina foi crescendo e continuou sendo exposta a situações terríveis. Testemunhou o assassinato de sua melhor amiga, colocada em fila junto com outras crianças. Todas levaram um tiro na cabeça. Christiana estava presente, mas conseguiu fugir e assistiu de longe à morte de sua amiga. A autora não explica onde estava sua mãe, nem seu irmãozinho, que ainda era um bebê. À medida que vai recuperando a história, essa ausência materna vai ficando mais presente em seu relato.

Aconteceram diversas outras situações que revelam a precariedade e desproteção às quais Christiana estava submetida nas ruas, até que a mãe consegue um emprego numa casa de família rica. Ela não pode levar os filhos para a casa onde vai morar e trabalhar, o que faz com que ela

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procure um orfanato que possa cuidar dos dois. Primeiro leva Patrique, depois de um mês leva Christiana. Vai visitá-los aos domingos.

O ORFANATO4

No final da década de 1980, Christiana é uma criança de rua brasileira. Sua história é um relato dos horrores aos quais eram submetidas as crianças de rua nesse tempo. É importante lembrar que foi apenas em 1990 que houve a implementação do ECA. É necessário ressaltar que, em nossa história tão recente, a história de Christiana não é exceção, retrata a realidade da criança pobre brasileira. O que há de exceção nessa história é a sobrevivência e publicação de um relato em primeira pessoa.5

Quando Christiana passa a viver em um orfanato, tem a impressão de habitar com cerca de duzentas outras crianças, de idades variadas. Embora relate cenas de brigas e mesmo de surras que tomou de funcionários da instituição, parece que naquele espaço pôde começar a ser mais protegida ou menos exposta. Ela é alfabetizada, não tinha mais que cuidar do irmão, que morava em outro setor da instituição. A menina não passava mais fome.

Petronília ia visitar os filhos todo domingo até que, em certo momento, sem mais explicações, ela foi proibida de ver os filhos. A autora relata em detalhes como foi dolorosa essa separação de sua mãe: fala que a imagem de Petronília “chorando e tentando, desesperadamente, chegar até mim também me fez ter pesadelos durante a minha vida toda.” (Rickardsson, 2017, p. 141). Apesar disso, diz que “mil vezes melhor estar ali [no orfanato] do que viver nas ruas” (Rickardsson, 2017, p. 147).

Ao longo de seu relato, passa a ser inegável que a mãe sofria de alguma questão mais severa de sofrimento mental. Petronília perdeu a guarda dos filhos e a diretora do orfanato conversou com Christiana sobre ser adotada por uma família sueca.

A ADOÇÃO

De repente bateram na porta. Duas pessoas entraram e eu já tinha encontrado

4. Preferimos manter o termo como usado no texto original para reforçar a diferença entre esses locais e as atuais instituições de acolhimento.

5. Outra história que retrata o efeito devastador das políticas de tratamento ao menor no Brasil nos tempos da ditadura militar encontra-se no filme O contador de histórias, de 2009. Um menino pobre é levado para a FEBEM aos cinco anos por sua mãe que acreditava na propaganda enganosa do governo ditatorial, e lá sofre todos os tipos de violência, inclusive tortura física. Quando estava com treze anos e era considerado irrecuperável, Roberto Carlos foi adotado por uma pedagoga francesa.

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com elas no dia anterior, pela primeira vez. Elas sorriam e pareciam contentes, mas um tanto nervosas. Falavam muito e alguém me mandou cumprimentá-las, o que eu obedeci. A funcionária que estava segurando Patrick o entregou para a mulher, que parecia ser a nossa nova mãe. Ela sorriu, pegando-o com cuidado. [...] A diretora me pediu para ir abraçar meus novos pais. Eu fui, abracei minha nova mãe e depois meu novo pai. [...] O portão abriu e o meu novo pai me pegou pela mão, o que parecia ser muito estranho. Eu sabia cuidar de mim mesma, sempre tinha cuidado e não precisava que ninguém segurasse a minha mão, ainda mais um estranho. (Rickardsson, 2017, pp. 158-159)

Percebemos no relato de Christina que o primeiro encontro, para o qual não foi preparada, representou muita surpresa e desconfiança de sua parte. A menina mal tinha entendido ainda o que se passava com a mãe Petronilia e qual a razão de ter sido separada dela quando, de repente, já estava conhecendo sua nova família: uma mulher que parecia ser sua mãe e um homem que pegou em sua mão causando estranhamento.

Embora orgulhosa, Christina diz que sentiu medo, sentiu pavor, mas não podia mostrá-lo. Ninguém poderia saber disso, pois era sinal de fraqueza. A despedida das mulheres do abrigo, o afastamento do portão que guardou na memória grande e amarelo, o momento da despedida, a separação são vividos como uma agressão. Ao acessar essas memórias, finalmente a menina sente medo. Mais ainda, sente pavor. Sentiu-se insegura, perdida e muito triste.

A SURPRESA DAQUILO QUE VOCÊ DEIXOU DE SER REVELA-SE NOS LUGARES ESTRANHOS,

No documento http://conpdl.com.br/anaisconpdl7 (páginas 127-129)

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