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DAS RUAS DE SÃO PAULO AO NORTE DA SUÉCIA: A CLIVAGEM

No documento http://conpdl.com.br/anaisconpdl7 (páginas 162-167)

PSICANALÍTICAS SOBRE A ÉTICA DA ADOÇÃO: TRAUMA, CLIVAGEM,

DAS RUAS DE SÃO PAULO AO NORTE DA SUÉCIA: A CLIVAGEM

Vamos trabalhar agora o livro da Christina – ou a partir do livro, tomando-o como caso. Em psicanálise, dizemos “caso” em uma referência etimológica, como “aquilo que cai”. Tomaremos alguns pontos dessa história – que é uma epopeia vivida pela Christina – que consideramos mais significativos, procurando, desse modo, ilustrar ou ressaltar alguns problemas cruciais no processo de adoção. Faremos isso inspirados, sobretudo, na matriz de pensamento, que, na psicanálise, chamamos de “pensamento das relações objetais”. Tomaremos dois autores como referencial, sendo um deles o inaugurador desse pensamento, Sándor Ferenczi, contemporâneo a Freud, e o outro, Winnicott, pediatra, psicanalista britânico e mais contemporâneo a nós. Este último desenvolveu uma reflexão sobre os processos de chegada do humano ao seu ambiente, ao seu contexto familiar e ao seu contexto sociocultural.

Gostaríamos de começar pinçando um característica do livro que parece atravessar tanto a sua forma quanto o seu conteúdo: a clivagem. Esse é um livro marcado pela experiência da clivagem. Dizemos isso porque a autora, no Brasil, tinha o nome de Christiana e, na Suécia, recebeu o nome de Christina: cai uma “a” (algo muito significativo, aliás, para a psicanálise de inspiração lacaniana). Algumas outras clivagens importantes do livro são: Brasil e Suécia; moradora/menina de rua e filha de uma família de classe média alta da Suécia; e, por último, a forma como Christina escolheu apresentar a história dela: alternando capítulos em que fala sobre o seu período nas ruas de São Paulo com capítulos em que fala do seu processo de adoção e da sua vida na Suécia.

A figura da clivagem é uma figura que atravessa forma e conteúdo, e o que isso indica para nós, a partir da psicanálise, é que ambas as personagens, que poderíamos separar como as duas vidas da Christina, são faces de uma mesma moeda. Há uma relação entre uma e outra, apesar de pouco evidente. AS DUAS CRIANÇAS DA PSICANÁLISE

A partir disso, gostaríamos de propor a vocês a ideia de que, na psicanálise – e, aqui, estamos ampliando o campo a partir da obra de Freud –, aparecem duas figuras de criança: uma é a criança das origens da psicanálise, que chamaremos de “criança freudiana”: literalmente, poderíamos dizer que esta criança é ilustrada pelo caso clínico do pequeno Hans. “Pequeno Hans”, que, em alemão, seria como o nosso “Joãozinho”. Esse Joãozinho é um menino pequeno, que está no auge do processo de Édipo; o Joãozinho tem sintomas fóbicos, tem medo de cavalos, e Freud, por intermédio do que o pai do Joãozinho conta, ajuda a lidar com esses sintomas mostrando que o cavalo é uma metáfora da figura paterna, trabalhando, assim, o complexo de Édipo.

Isso nos interessa porque a criança é aquela que permite que Freud adquira e formalize um saber sobre a nossa vida psíquica, sobre a sexualidade, sobre a sexualidade infantil e sobre a constituição da nossa vida emocional – falando de um modo mais abrangente. A ideia de Freud,

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a partir da clínica da neurose, é justamente uma aproximação entre o neurótico, o infantil e o primitivo, em que ele e a psicanálise escutam a criança presente e sobrevivente em cada um de nós (Kupermann, 2011).

Desse modo, cada adulto – supondo que o somos –, tem uma criança que não nos abandona. Só que essa criança é a responsável justamente pelas manifestações e pelas formações do inconsciente, pelo desejo. A criança freudiana é o que nós poderíamos chamar de enfant terrible. O que em francês significa “criança terrível”, o “Pimentinha”. No folclore brasileiro, essa criança freudiana é aquela que denuncia a verdade recalcada pelas hipocrisias da vida social. Essa criança é a que faz perguntas inconvenientes, que tira a roupa no meio da sala... é a criança que revela um determinado saber a partir do qual, então, a psicanálise se constitui. Essa é a primeira criança da qual falávamos.

No nosso folclore, o Joãozinho é aquele que goza da postura da professora, que, por sua vez, é a representante da vida civilizatória. Já a figura da professora é aquela que pretende educar, e o Joãozinho faz, o tempo inteiro, uma espécie de denúncia daquilo que não pode aparecer na vida civilizatória, que é o sexual. As piadas do Joãozinho são eminentemente sexuais e colocam a professora em constrangimento, assim como um ato falho na nossa vida psíquica.

Daremos um exemplo singelo. A professora dá um exercício para a turma, e as crianças devem montar uma palavra com uma letra que ela sugere. Então ela diz a letra “g”, e aí a Mariazinha fala “grão”; ela diz a letra “b”, e o Claudinho fala “banana”. Ela fica morrendo de medo da hora do Joãozinho, se dirige a ele e diz: “letra ‘a’, Joãozinho”. O Joãozinho fala “anão”. A professora, ainda suando, dá um suspiro de alívio, mas o Joãozinho, se contorcendo, completa, fazendo ainda um gesto com as mãos: “Mas com um ‘trem’ deste tamanho!”. Essa é a criança freudiana, uma criança vitalizada, pulsante. É a criança que, de alguma maneira, o processo de análise procura resgatar no sujeito neurótico. A criança que sofreu a repressão da vida social.

A partir de certo momento, surge no campo psicanalítico outra criança, que não é mais a criança do recalque, é a criança da clivagem. Essa criança vai emergir exatamente a partir do momento em que alguns autores – e, aqui, o destaque é efetivamente para Ferenczi – começam a perceber que há crianças que não brincam, que não se permitem brincar, que não conseguem brincar. Essas crianças trazem os maiores desafios para a clínica psicanalítica, como diz Winnicott (1975) em O brincar e a realidade.

O desafio com uma criança dessas é, antes de tudo, fazê-la brincar. Somente ao facilitar a possibilidade de brincar será possível poder tratá-la. Mas o que é uma criança que não brinca? Em uma resposta imediata, diríamos que seria uma criança traumatizada. E o que é exatamente o trauma? Nós temos várias figuras de trauma que atravessam tanto a vida social quanto, por exemplo, os profissionais que trabalham no Judiciário. O trauma sexual é um deles. Essa sempre

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foi a figura privilegiada do trauma infantil. Eventualmente, uma segunda modalidade frequente – dizemos “frequente” pensando na nossa vida social no Brasil – são as crianças vítimas de castigos corporais, a violência física propriamente dita.

O que Ferenczi faz, de maneira genial, é apresentar uma terceira figura do trauma bem menos visível que essas duas que mencionei, mas que pode ser mais nefasta do ponto de vista do comprometimento do sujeito: o “terrorismo do sofrimento” (Ferenczi, 1993/2011). Aproximando essa ideia ao argumento da Christina, poderíamos dizer que o terrorismo do sofrimento se dá quando é a criança que precisa cuidar dos seus cuidadores. É essa inversão que é considerada a matriz de toda e qualquer experiência traumática. Infelizmente não temos tempo aqui para nos aprofundarmos na teoria do trauma, mas achamos que o que foi dito é suficiente para este ponto. Uma criança que não brinca é aquela que foi obrigada a cuidar daqueles que deveriam cuidar dela ou, de outra maneira, a assumir responsabilidades que estão acima das suas capacidades psíquicas. Para essas crianças, Ferenczi (1931/2011) elege uma figura metafórica, que é a figura do bebê sábio. Esse é o bebê que, nos sonhos de alguns pacientes, já nasce falando; ou aparece como uma cabeça dissociada do corpo. Quer dizer, como Winnicott iria apontar, sujeitos com um hiperdesenvolvimento intelectual. Essa é a criança que amadurece rápido demais.

A criança que não brinca é aquela que se assemelha, segundo Ferenczi, a uma fruta bichada: por fora, ela está madura, mas, por dentro, está destruída. A ideia dessa clivagem é, basicamente, entre o sensível e o inteligível. É uma clivagem, poderíamos dizer, entre razão e emoção. Entre uma parte que sabe tudo e outra que nada sente – ou que está muito escondida, muito protegida de um mundo hostil. A parte que sabe tudo é a parte identificada com o agressor. Trazendo uma passagem brevíssima de Ferenczi e, na sequência indo a Christina. Ferenczi (1931/2011) diz assim:

as crianças que muito sofreram, moral e fisicamente, [e o que eu quis ressaltar para vocês foi o sofrimento moral mesmo: o terrorismo do sofrimento é moral], adquirem traços fisionômicos da idade e da sabedoria. Também tendem a cercar maternalmente os outros [...], estendem assim a outros os conhecimentos adquiridos a duras penas [...] sobre o seu próprio sofrimento; tornam-se indivíduos bons e prestimosos. (Ferenczi, 1931/2011, p. 89)

Nessa passagem, Ferenczi está apontando a criança que se torna o psiquiatra da família, o enfermeiro, o psicólogo. São esses os sujeitos que assumem as funções de cuidado em relação aos outros. Se nós recorrermos ao texto da Christina, vemos que ela ilustra de uma maneira bastante explícita tanto a clivagem como o que está em jogo nesse fenômeno, a identificação ao agressor. Como ela relata em seu livro, houve uma separação abrupta dela com a mãe. Existiu uma incompreensão, por parte da autora, dos motivos que levaram à esquizofrenia da mãe. Em

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algum momento ali no abrigo, a diretora a chama e inicia uma conversa perguntando se ela sabe por que está vivendo na rua, e ela dá algumas respostas muito objetivas. Então a diretora comenta que são respostas muito duras e acrescenta: “você parece ser bem esperta para a sua idade e foi obrigada a crescer rápido demais, como tantas outras crianças” (Rickardsson, 2017, p. 116). A PROGRESSÃO TRAUMÁTICA

Percebemos que tem algo desse processo de amadurecimento precoce que vai aparecendo na Christina e que vai, de certo modo, corroborando algumas hipóteses da psicanálise que podem nos ajudar a entender ou, pelo menos, a nos sensibilizar para a problemática da adoção. Mais adiante, há uma pequena passagem em que Christina diz: “tenho certeza de que, já no orfanato, eu havia começado a construir uma fachada, mas cuidava do meu verdadeiro eu dentro da neblina” (Rickardsson, 2017, p. 143). Aqui, ela está descrevendo algo da clivagem: uma fachada exterior e um verdadeiro eu oculto. A casca e o núcleo – referência que podemos fazer ao conhecido livro de Maria Torok e Nicolas Abraham (1995). Mais adiante, novamente no livro de Christina, temos a seguinte passagem:

Christiana estava perdida ali dentro, mas não estava morta e, um dia, a neblina se dissiparia, e ela se encontraria novamente.

Duas estratégias fundamentais para mim foram adquiridas no meu tempo no orfanato. Tudo havia começado nas ruas, mas foi desenvolvido no orfanato. Uma estratégia era a minha fachada, ou seja, a minha capacidade de me adaptar e mentir. [Com isso, ela vai apresentando o problema da adaptação.] A outra estratégia que me ajudou a sobreviver foi a capacidade de não me transformar num fantasma, não perder a alegria e nem a beleza que eu tinha dentro de mim. Essas estratégias, assim como todo o resto, tinham vantagens e desvantagens. Foi isso que dividiu a minha alma e a minha pessoa em duas. Christiana ficou escondida pela neblina, e uma nova pessoa surgiu, aquela que, em breve, seria chamada de Christina. (Rickardsson, 2017, pp. 145-146)

Com isso, Christina apresenta o processo e o mecanismo da clivagem, além de colocar em cena um problema de que iremos tratar em breve, isso é, o problema da adaptação. Antes disso, há uma última passagem, que é importante comentarmos, e que nos remete ao problema daquilo que tem potencial efetivamente traumático para crianças que vivem histórias próximas dessa que Christina relata.

Esse potencial traumático, nomearemos de “humilhação”. Para nós, na leitura desse livro, o que se destacou foi a maneira como a experiência da humilhação – e a humilhação, aqui, vamos entender

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como um afeto tipicamente infantil, ou seja, privilegiado das crianças, que pode ter consequências importantes, quantitativas e qualitativas – é relatada pela Christina nas vivências dela nas ruas. HUMILHAÇÃO E RECONHECIMENTO

São duas experiências, basicamente, comentadas por Christina. Uma de amor, que é o que ela encontra na mãe, e uma de humilhação, que é o que ela encontra no ambiente desprotegido dessa mesma mãe. Do ponto de vista da psicanálise, a humilhação se daria quando o sujeito não vê reconhecida sua humanidade frente ao outro. Ferenczi (1931/2011; 1932/1990) nomeia de desmentido; aquilo que promove humilhação – eu conto uma experiência de dor, e o outro, para quem eu expresso isso, não a reconhece. O outro destitui o sujeito de sua humanidade, no sentido de segregá-lo da comunidade dos humanos.

Há outra passagem importante a ser comentada a esse respeito. Passagem que entendemos como realidade, mas a partir da qual aproveitamos também para ressaltar a semelhança com São Tomé por parte dos psicanalistas: duvidamos a priori da factualidade de algumas histórias. De todo modo, em determinado ponto da narrativa de Christina, ela diz que estava morrendo de fome e que se aproximou do lixo e, quando ela vai comer, aparece um menino mais forte e mais velho que quer roubar o sanduíche que ela encontrou. Nesse momento, tem início uma briga, e ela pega uma garrafa quebrada e mata o menino. Na sequência, ela come o sanduiche e vomita. Essa é uma passagem das mais significativas, pois demonstra os efeitos da experiência da humilhação. A humilhação é a mãe da violência. A humilhação é aquilo que, através de um espelhamento, permite ao sujeito deixar de reconhecer o outro como humano. Trata-se de uma espécie de caldeirão no qual a experiência de adoção, muito provavelmente, tem um solo. Humilhação como efeito de alguma experiência de rejeição no momento em que um sujeito depende do acolhimento da família, do ambiente, sempre tomando essas figuras no sentido mais amplo do que pai e mãe biológicos. Então a adoção se faz sobre o solo de humilhação, e esse solo é potencialmente traumático, no sentido de promover identificações com os agressores e clivagens narcísicas. Christina fala com todas as letras – inclusive com a letra “a”, quer dizer, também como Christiana – sobre a clivagem. O primeiro problema ao qual ela nos remete é o da adaptação. Na Suécia, ela é acolhida por uma família, aparentemente muito boa, de pais amorosos, mas ela não se permite amar esses pais porque amá-los implicaria trair a mãe da qual ela foi apartada de uma maneira violenta. Ela inclusive comenta que a mãe adotiva morre precocemente de câncer, aos 50 anos, e que isso é um impacto porque ela não pôde dizer que a amava.

Por outro lado, encontramos uma concepção de adaptação pela via da submissão. Isto é, a Christiana se adapta a uma situação de violência em nome da sobrevivência e também por impotência e, depois, se adapta na Suécia, mantendo certa clivagem – tanto que o português

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desaparece. Isso é o que nós chamamos de uma adaptação que compromete a experiência do infantil que nós esperávamos estar no interior de cada sujeito; quer dizer, o infantil que promove e que proporciona o viver criativo. Apesar de tudo, Christina diz que preservou esse sentido em algum lugar. Ela foi amada em um momento fundamental de sua vida, ainda que por uma mãe esquizofrênica. Para concluir esse ponto, me parece que o livro oferece tanto uma matriz do que seria a ética da adoção como também o bálsamo para a humilhação. Uma espécie de cura para a humilhação. E como é possível curá-la?

Poderíamos dizer, de maneira simplória, que a humilhação é um afeto político que curamos pela via do reconhecimento. É uma possibilidade. Na situação apresentada pelo livro, poderíamos dizer que a humilhação se cura pelo amor, quer dizer, há reparação possível. Aparentemente, talvez não em todos os casos, mas, em muitos deles, há reparação possível pelo amor.

Na história da Christina, isso se dá de um modo belíssimo. Dá-se no regime que poderia caracterizar aquilo que Ferenczi (1933/2011) chama de “confusão de línguas”. A Christiana conhece um casal sueco que não fala português, sendo que ela também não fala sueco. É nesse encontro sem palavras – não bem sem palavras, porque cada uma das partes vai nomeando o mundo para a outra –que se exige uma comunicação indireta. Quer dizer, existe uma disponibilidade sensível para ter contato com o outro, a despeito de não falar a mesma língua.

Como se dizia em outros momentos (menos turbulentos) da história política do Brasil, isso poderia ser “nitroglicerina pura”. Aqui, não explodiu; ao contrário, parece que houve a possibilidade de um encontro. Essa possibilidade de encontro se deve ao que nós intitulamos um dos princípios da ética do cuidado na psicanálise: a hospitalidade (Kupermann, 2017). Assim sendo, concluiremos com um breve comentário sobre a hospitalidade.

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