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A alta das antecipações em dinheiro e suas causas

Se essa relativa invasão da moeda representa um progresso, também provocou uma inflação crescente que causou grandes dificuldades aos senhores ou proprietários de terras que tinham cada vez mais necessidade de moeda sonante. Os reis e os príncipes tiveram como objetivo aumentar mais a sua autoridade crescente primeiro em seus próprios domínios, depois aumentar seus reinos, por meio de uma administração que lhes era totalmente submissa — como prebostes, bailios e senescais, no caso da França —, a fim de exercer uma pressão sobre seus súditos e assim obter receitas em dinheiro. Embora ainda pudessem impor um imposto regular, aumentaram os impostos, as taxas que lhes eram devidas em produtos naturais passaram a ser cobradas em dinheiro. Foi essa uma das bases do crescimento de seu poder. Tal política foi sistemática no condado de Flandres desde 1187 e no reino da França a partir de Filipe Augusto. As cidades que tinham se tornado independentes em matéria de administração e de finanças, principalmente nos Países Baixos e na Itália, seguiram a mesma política. De um modo geral, as cidades dotadas de um território para além do centro urbano exploravam-no em proveito próprio. Em 1280, a cidade de Pistoia, na Toscana, impunha a seus camponeses uma contribuição financeira seis vezes mais elevada do que aquela paga por seus próprios cidadãos. 19 No último quartel do século XII apareceu, para só se desenvolver lentamente, uma instituição que mostra bem que dinheiro e feudalidade não eram incompatíveis. Senhores concederam a determinados vassalos feudos que não consistiam nem em terras nem em serviços, mas em pagamento de renda. Chamavam-se feudos-renda, ou feudos de bolso. Encontrou-se um longínquo antecedente dessa prática. No ano de 996, a igreja de Utrecht fez de um cavaleiro um vassalo não através do método de doação de terras, mas impondo-lhe uma cobrança de doze libras de denários a

serem pagas anualmente. O feudo-renda, sobretudo a partir do século XII, desenvolver-se-á rapidamente nos Países Baixos.

A economia — e principalmente as trocas comerciais — foi a base do crescimento da circulação monetária, mas o que monetariamente custou mais à Idade Média foi provavelmente uma atividade quase permanente, a guerra. Pôde-se mostrar que a guerra foi mais econômica em homens do que se acreditava, precisamente porque a importância crescente do dinheiro tornava mais proveitoso fazer prisioneiro o inimigo e obter um resgate do que matar — pensemos no resgate de Ricardo Coração de Leão na volta da Terra Santa, no de São Luís prisioneiro dos muçulmanos no Egito, ambos num momento monetário altíssimo. A preparação e o equipamento de um exército representavam despesas enormes. O rei da Inglaterra João-Sem-Terra, que não participou da batalha de Bouvines (1214), pagou no entanto pela formação do exército de seus aliados 40 mil marcos de prata. Indiquei alhures que, como brilhantemente o demonstrou Georges Duby, a organização dos torneios, essa grande festa da cavalaria, que sobreviveu a todos os esforços da Igreja para interditá-la, era na verdade um imenso mercado, comparável ao que são hoje as disputas esportivas nas quais o dinheiro está fortemente presente. Outro motivo de despesa é o crescimento do luxo, principalmente nas cortes reais e principescas e na alta burguesia urbana. No fim do século XIII, o crescimento das despesas de ostentação (especiarias e iguarias refinadas, roupas altamente dispendiosas sobretudo para as mulheres, em particular a seda e as peles, remuneração dos trovadores, improvisadores e menestréis, etc) levou à publicação, por parte de alguns reis e príncipes e em alguns burgos, de leis reguladoras de despesas destinadas a refrear esses excessos. Em 1294, Filipe, o Belo, publicou uma ordenação “referente ao supérfluo nos hábitos” que visava particularmente os burgueses. Dessa maneira, burgueses não mais tiveram permissão de usar peles, objetos de ouro, pedras preciosas, joias tipo coroas de ouro ou de prata e roupas valendo mais de duas mil libras tornesas para os homens e de 1.600 para as mulheres, e na Toscana do século XIV as legislações urbanas proibiram rigorosamente o luxo ostensivo por ocasião dos casamentos, fosse nos trajes, nos presentes, nos banquetes e nos cortejos nupciais. 20 Em 1368, Carlos V proibirá, sem grande sucesso, parece, os famosos sapatos de bico revirado.

Significativamente, a catedral de Amiens, construída no século XIII, possui, nós a vimos, uma pequena imagem representando dois comerciantes da planta da qual se tirava anil para tingimento de fazendas, produto que no século XIII teve um formidável desenvolvimento em consequência da demanda crescente de roupas tingidas de azul. Eis a moda, o luxo, o dinheiro que eram exibidos num lugar sagrado!

Notas:

1. Inspiro-me muito nestas páginas na já citada obra de Peter Spufford, Money and its Use in Medieval Europe [Dinheiro e seu uso na Europa Medieval], Cambridge, 1988, ainda que considere essa obra de inspiração muito “monetarista”.

2. Oficial de fronteira (cargo que poderia ser ocupado por um civil ou por um militar) da Alemanha, na época. (N. do T.) 3. Nome simplificado da Ordem dos Templários, organização de cavaleiros de caráter religioso e guerreiro fundada em 1119 inicialmente com o objetivo de buscar o Santo Graal, em Jerusalém. Os templários acabaram milionários e foram os banqueiros do papa e de numerosos príncipes. Filipe, o Belo, rei de França de 1285 a 1314, apoderou-se dos bens da organização em 1307 e prendeu 138 de seus integrantes, que morreram na fogueira em 1314, ao fim do processo que os condenou. A ordem tinha sido suprimida em 1312, em ato do papa Clemente V, sob instigação de Filipe, o Belo. (N. do T.)

4.. Esse tratado de Alberto Magno foi traduzido para o inglês e editado por Dorothy Wyckoff (Oxford, Clarendon, 1967). 5. Comunidades de escavação (provavelmente haverá uma pequena distorção em fovee, pois, por se tratar de um genitivo singular da 1ª declinação, a forma deve ser foveae; entretanto, é possível que não haja distorção alguma e fovee seja uma forma do latim medieval, que é um latim clássico com alguma “corrução”, para usar um termo de Camões ao estabelecer uma relação português/latim nos Lusíadas). (N. do T.)

7. Cidade egípcia, perto do Mediterrâneo: São Luís (Luís IX) a conquistou quando comandava a sétima cruzada, em 1249. Depois, capturado, entregou-a como resgate. (N. do T.)

8. Besante era uma moeda bizantina, como o nome não esconde, que circulou no tempo das cruzadas, marco era um peso- padrão (244,5 gramas) utilizado em Paris por essa época. Quanto a “carité”, no título do segundo dos romances citados, não consta de nenhum dos dicionários habitualmente consultados, nem mesmo os mais completos e respeitados, sobretudo quanto a assuntos franceses, como o Grand Larousse encyclopédique (ed. 1963). A palavra tem toda a aparência de enraizar-se no lat. caritate (abl. de caritas, -atis), à maneira de charité, mas nesse terreno não basta a aparência para que se afirme alguma coisa. (N. do T.)

9. O vitorioso de Bouvines (1214) foi Filipe Augusto, rei de França (avô de São Luís), que tinha por trás de si as milícias comunais. Entre os derrotados, além de João-Sem-Terra e do imperador germânico Oto IV, estava o conde de Flandres. Essa vitória estabeleceu em definitivo a superioridade da realeza capetiana sobre os grandes vassalos. (N. do T.)

10. Cidade do Mali, perto do rio Níger, fundada em 1100. Cedo tornou-se um grande centro comercial. (N. do T.)

11. É o adjetivo pátrio referente à pequena cidade de Provins, no departamento de Seine-et-Marne, região de Île-de-France (na qual está Paris). (N. do T.)

12. Há quem use a tradução Cantuária, sobretudo em Portugal. Prefiro, porém, usar o original, uma vez que Cantuária é forma de emprego mais raro no português do Brasil. Note-se que caso semelhante se dá em francês, uma vez que o próprio Autor, Jacques Le Goff, despreza o uso do francês Cantorbéry para ficar com Canterbury. (N. do T.)

13. Ver a notável e muito esclarecedora obra de Alexander Murray Reason and Society in the Middle Ages [Razão e sociedade na Idade Média], Oxford, 1978.

14. Cidade ao Sul de São Petersburgo, 230 mil habitantes, hoje chamada Velik Novgorod. (N. do T.)

15. As páginas seguintes devem muito a Marc Bompaire, no volume de Philippe Contamine, Marc Bompaire, Stéphane Lebecq e Jean-Louis Sarrazin, L’Economie médiévale, Paris, Armand Colin, terceira edição, 2003, pp. 251-267.

16. A denominação, claro, é francesa. Não há (ou pelo menos não consta dos dicionários mais conhecidos em nossa língua) nome português para essa moeda. (N. do T.)

17. Robert Fossier, La Terre et les hommes en Picardie jusqu’à la fin du XIIIe siècle [A terra e os homens na Picardia até o fim do século XIII], Paris-Louvain, 1968.

18. A tradução do francês medieval às vezes traz armadilhas só percebidas por um especialista na língua dessa época, o que está longe de ser o nosso caso. Mas, tendo de tentá-la, fizemos o possível, que vai a seguir, contando com a compreensão do leitor, principalmente para as duas pequenas lacunas deixadas: “Sim, são os emprestadores de algibeira/ que diante deles têm sua moeda:/ Aquele que troca, aquele que conta, aquele que castiga,/ Aquele que diz: ‘É você’, aquele: ‘É mentira’/ Nunca bêbado, nem mesmo em sonho,/ Não viu dormindo a maravilha/ Que pode ver esta quem vigia./ Aquele que ali ……… / Que ali vende pedras preciosas/ E imagens de prata e de ouro./ Outro tem diante deles grande tesouro/ De seu rico.” (N. do T.)

19. Cidadãos, isto é, os que viviam no território urbano da cidade. (N. do T.)

20. Céline Perol, “Le mariage et les lois somptuaires em Toscane au XIVe siècle” [O casamento e as leis

suntuárias na Toscana do século XIV], em J. Teyssot (dir.), Le Mariage au Moyen Âge XIe-XVe siècle [O

6. O dinheiro e os Estados nascentes

Entre os grandes domínios nos quais melhor se manifesta no apogeu do longo século XIII o progresso do dinheiro figura a construção disso que a historiografia chama o Estado. O Estado, nos séculos XIII e XIV, não está completamente desligado da feudalidade, e sabe-se que só o será de modo definitivo com a Revolução Francesa. Entretanto, o poder da monarquia, o aparecimento de instituições representativas, o desenvolvimento do direito e da administração marcam uma etapa decisiva na sua formação. O Estado se manifesta especialmente num domínio em que no século XIII o dinheiro assume uma importância especial: as exigências do fisco. Ao lado dos rendimentos senhoriais, os príncipes e os reis se beneficiam em geral das rendas de um domínio próprio, dos benefícios do direito superior de cunhagem de moeda que lhes é reconhecido, e da arrecadação de impostos particulares.