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Existiu na Idade Média um mercado da terra?

A questão da existência ou não de um mercado unificado no conjunto da cristandade medieval é um dos problemas essenciais que permitem definir a natureza da economia, e mais particularmente da economia monetária de que tratamos. Assim, dada a importância da economia rural nas sociedades medievais, surgiu uma sequência de trabalhos publicados sobre esse tema, em particular aqueles, nos anos 1990, do inglês Chris Wickham; dos medievalistas franceses, à frente dos quais estão Laurent Feller e François Menant; e uma obra dirigida em comum por Laurent Feller e Chris Wickham, O

mercado da terra na Idade Média, publicada em 2005, que reuniu uma soma de artigos tendo como

objeto o conjunto do espaço europeu. As opiniões expressas nessa obra não caminham todas no mesmo sentido. A problemática, além disso, é influenciada pelo fato de que o termo “mercado” numa acepção mais ou menos global pertence antes à historiografia anglo-saxônica 1 do que à historiografia francesa. A conclusão desse volume riquíssimo, que todavia deixa abertas muitas questões importantes, vai antes no sentido da constatação da ausência de um mercado da terra na Idade Média, opinião fortemente expressa para além mesmo do mercado da terra por Alain Guerreau. 2 A própria natureza dessas pesquisas precisando recorrer à antropologia, Monique Bourin indica no prefácio do volume que a maioria dos autores se afasta das teses, até então as mais invocadas, de Karl Polanyi, para sustentar as de Chayanov (1888-1939). Das ideias de Chayanov tidas como aplicáveis à economia medieval, resultou uma noção de economia camponesa na qual a problemática do mercado da terra integrou a ideia de que as transações são dominadas, ou pelo menos amplamente condicionadas, pela evolução cíclica do tamanho das explorações em função do tamanho das famílias. Essa tese particularmente inspirou a maior parte dos historiadores anglo-saxões estudiosos da eventual existência de um mercado da terra na maior parte das economias do campo em todas as épocas. Creio, ao contrário, como de resto afirmo neste ensaio, que Polanyi tem razão de pensar que, antes da revolução industrial, a Europa, como o resto do mundo, ignorava a dominação do econômico sobre o social, sendo os fenômenos econômicos, afinal, eles próprios inseparáveis de seu contexto social. 3

Partilho, repito, da concepção evocada por Monique Bourin no prefácio desse livro (p. XI) segundo a qual há regiões e épocas medievais em que as transações territoriais estão enraizadas no tecido das relações sociais, os rendimentos do poder e as hierarquias correspondendo em geral à realidade. Laurent Feller tem razão de remeter — como ponto de partida na historiografia francesa da reflexão sobre o uso da terra que fazem os camponeses — à obra de Henri Mendras, La Fin des

paysans [O fim dos camponeses], publicada em 1967, com uma nova edição em 1991. Mendras

sustenta nessa obra que, antes de ser uma ferramenta de produção, a terra é para o camponês medieval um bem afetivo com o qual ele mantém relações privilegiadas. Em seus trabalhos sobre as transações relativas à terra na Espanha, e em particular na Galiza, Reyna Pastor mostrou à perfeição que a venda de uma terra é frequentemente uma forma de troca que remete a uma economia da doação escondida por trás de uma ficção, a do caráter econômico de uma transação concluída.

Laurent Feller concluiu de sua rodada de observação que a entrada em circulação das terras na Idade Média deve ser descrita como referência a mecanismos que não obedecem todos à lei do mercado. E sublinha a importância das solidariedades sociais e familiais, e que essas transações poderiam passar também pela doação, mas que por escolha dos atores elas passam pela utilização da moeda (p. 28, op. cit.). Florence Weber, por sua vez, constata que “a relação mercantil ocupa uma

via estreita entre a guerra e a aliança impessoal”. Se bem que, aplicadas a períodos antigos, os séculos X-XI, as ideias da medievalista americana Barbara Rosenwein, 4 com grande influência sobre os historiadores que trabalharam sobre o que foi Cluny na Idade Média, mostram que muitas outras motivações não econômicas e até não monetárias inspiraram os monges da ordem: a generosidade e o pensamento escatológico, o despojamento e a comunhão com o ideal monástico, a ativação e a manutenção das redes de alianças, a proteção dos patrimônios familiares pelo dote dos filhos entrando nas ordens. Em resumo, como sublinha em nosso volume coletivo Patrice Beck, essas transações fundiárias procedem da economia da doação e se prolongaram até muito além do século XI clunisiano. Em sua obra sobre La Société dans le Comté de Vendôme de l’an mil au XIVe siècle (Fayard, 1993), Dominique Barthélemy explica como as transações concernentes à terra misturam economia da doação e economia de mercado. É a mistura cuja base está nas relações sociais no interior da senhoria que define a feudalidade. Sublinhando com destaque a dificuldade de comparar fontes diferentes, na Espanha onde as transações passam em geral por um notário e na Inglaterra onde os arquivos nobiliárquicos e eclesiásticos contêm poucos dados numéricos, Carlos Laliena Corbera nota que se se quer falar de mercado da terra na Espanha da baixa Idade Média é necessário precisar que se trata de um mercado muito fragmentado, tanto na escala regional como local. Mais, que nesse mercado intervêm fatores pessoais não econômicos (clientelismo, ligações de parentesco em particular) (p. 182). François Menant, em seu excelente estudo cronológico referente à aparição do tema do mercado da terra nas diversas historiografias europeias, dá relevo ao fato de que essa aparição é posterior aos grandes trabalhos sobre a economia da sociedade rural na França e na Inglaterra (trabalhos de Georges Duby, de Robert Fossier, de André Chédeville, e na Inglaterra de Michael Postan), que esse tema combinado com a influência de Chayanov conquista a Inglaterra, mas permanece fora dos trabalhos dos medievalistas franceses e italianos: só o historiador inglês Chris Wickham o introduziu nos estudos sobre a economia rural italiana da Idade Média. Na França, apenas alguns historiadores nos domínios da revista Annales e alguns outros na Itália, como Giovanni Levi, adeptos da microstoria, se interessaram pelo tema. Na Espanha, o tema do mercado da terra foi introduzido tardiamente e sobretudo pondo em valor seus limites, chegando a empregar a expressão “transação sem mercado”.

Emmanuel Grelois, estudando o problema das transações com foco nas terras de Auvergne, nota em primeiro lugar que essas transações incidem mais sobre os rendimentos, as garantias e as rendas inerentes a essas terras do que propriamente sobre as terras em si. Nota também a extrema desigualdade dos preços, mesmo quando se trata de uma superfície média, e conclui que no século XIV, apesar do altíssimo nível de monetarização da economia, os bens de raiz se tornam reservas de valor.

Em sua conclusão, Chris Wickham sublinha que as transações com a terra são sempre uma mistura do econômico e do social, que essa imbricação é uma característica do sistema feudal, como explicou, para outro período e um domínio afastado, a Polônia dos séculos XV-XVII, o grande historiador polonês Witold Kula, em sua Teoria econômica do sistema feudal (Varsóvia, 1963; há traduções francesa, inglesa e italiana), e que, qualquer que seja a relativa unidade do sistema feudal europeu na Idade Média, esse sistema apresentou, tratando-se do mercado da terra, numerosas diferenças regionais e locais.

Notas:

1. Talvez pelo fato da precocidade inglesa no domínio financeiro e da ambiguidade do termo money, assim como do italiano pecunia, herdeiro da Antiguidade.

2. Alain Guerreau, “Avant le marché, les marchês: en Europe, XIIIe-XVIIIe siècle”, op. cit.

3. É o ponto de vista expresso nessa obra, p. 211, por François Menant.

4. B. Rosenwein, To Be the Neighbor of Saint Peter: the Social Meaning of Cluny’s Property, 909-1049 [Ser vizinho de São Pedro: o significado social da propriedade de Cluny, 909-1049], Ithaca, Londres, 1989.

13. As ordens mendicantes e o dinheiro

Voltemos agora, como se anunciou mais atrás, às relações frequentemente debatidas e controvertidas entre as ordens mendicantes — cujo próprio nome é um verdadeiro programa — e o dinheiro. Essas ordens fundadas no século XIII (pregadores dominicanos e franciscanos menores) foram reconhecidas pela hierarquia pontifícia, mas agiam fora do quadro episcopal, dando-se como missão lutar contra a heresia e manter na ortodoxia cristã a nova sociedade que estava pronta para se instalar na cristandade, em particular nas cidades, fundamentando-se estreitamente no exemplo e nas palavras de Jesus Cristo contidas no Novo Testamento. Um dos principais problemas que enfrentaram foi o das relações entre esse cristianismo fundamental e o desenvolvimento das operações que recorriam às moedas, a isso a que damos, nos dias de hoje e neste ensaio, o nome de dinheiro.