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A atenção mantida pelas autoridades — principalmente as autoridades reais, com sucessos diversos — em relação à estabilidade monetária não era a mesma na organização do fisco. Um dos grandes papéis do dinheiro na Idade Média era, ao lado de seu emprego no desenvolvimento do comércio e das trocas cotidianas, favorecer o surgimento ou crescimento de necessidades em dinheiro dos Estados nascentes. Vimos que esse fenômeno essencial da Idade Média, o embargo de Estados centralizados — ou de Estados em gestação — sobre a autoridade pública, buscou e em parte conseguiu no dinheiro os meios tornados necessários à sua realização. Temos observado o nascimento desse processo, que conheceu um impulso decisivo sob os reinados de Henrique II (1154-1189) na Inglaterra, de Filipe Augusto (1180-1223) na França, no Estado pontifício sob Inocêncio III (1198-1216), depois sob os papas de Avignon (1309-1378).

No regime feudal clássico, o rei, como o maior dos senhores, devia em primeiro lugar viver “do seu”, quer dizer das rendas do domínio real, como se viu mais atrás. Se bem que isso, especialmente na França, tenha sido uma realidade crescente nos séculos XIII e XIV, tornou-se cada vez mais insuficiente para garantir o financiamento das grandes senhorias, e principalmente dos Estados monárquicos que empregavam um número cada vez maior de servidores em todos os níveis. Da mesma forma, o papel dos grandes senhores e dos soberanos se reforçou nos domínios da administração, da justiça, da economia — em particular devido às moedas —, e o crescimento permanente da pompa senhorial e real nas vestes, nas festas, nos presentes, etc, tornou necessária a obtenção pelo grande senhor ou pelo rei, por meio dos seus súditos, de recursos excepcionais hoje designados em geral pelo vocábulo global fisco. Também uma necessidade de fontes extraordinárias se manifesta junto a esses organismos em geral tornados independentes a partir do século XII e vivendo cada vez desses recursos da proximidade: as cidades. A primeira justificativa de imposto desse fisco excepcional foi a cruzada. O rei da França, por exemplo, cobrou um imposto excepcional chamado dízimo, que manteve depois das cruzadas e que, destinado a garantir a ordem no reino, foi dividido com o papado a partir do fim do século XIII, e especialmente durante o período dos papas em Avignon no século XIV.

Sabe-se que os séculos XIV e XV, principalmente o século XIV, foram marcados por uma queda demográfica que na verdade começou na primeira metade do século XIV, no qual reaparece uma grande fome em 1317-1318. Nesse tempo, o refluxo demográfico produziu o que se chamou “a deserção das cidades”. Essa crise demográfica agravou-se pesadamente a partir de 1348 pela sucessão das epidemias da peste negra, isto é, a peste bubônica. Lembro que as guerras também influem pesadamente sobre as disponibilidades financeiras das cidades, dos príncipes e dos Estados.

Além do peso maior ou menor da demografia, o fisco dos dois últimos séculos da Idade Média tradicional foi submetido a altos e baixos, os Estados precisaram buscar rendas mais importantes ligadas ao desenvolvimento de seus poderes, mas a resistência das populações em geral não permitiu que tivessem um fisco estável antes do século XVI. O Estado, que parecia ter conseguido a melhor prática fiscal, a da Igreja, também conheceu altos e baixos. A ação uniformizadora da Câmara Apostólica e o recurso a banqueiros leigos fizeram do papado de Avignon na primeira metade do século XIV a principal potência financeira da cristandade. As relações em geral foram pacíficas com

as cidades e os Estados italianos e durante algum tempo com o reino da França, mas por outro lado o Império se opôs fortemente na Alemanha às pretensões pontifícias, e houve praticamente um estado de guerra incessante em torno do fisco entre a monarquia inglesa e a Santa Sé. Essa situação se repetiu em parte na França do século XV. Das duas principais receitas fiscais do papado, os dízimos que eram descontados puderam adaptar-se à evolução dos lucros dos benefícios. Em compensação, as anatas 16 que oneravam as finanças dos bispados nos períodos de vacância do beneficiário não gozavam dessa flexibilidade e frequentemente eram muito pesadas. A tesouraria pontifícia precisou muitas vezes permitir pagamentos escalonados e até dar descontos sobre essas anatas. Por fim, o papado de Avignon se chocou muitas vezes com a oposição dos Estados que consideravam essas antecipações uma invasão sobre o poder financeiro dos Estados.

Sobre o problema do fisco dos Estados e de sua evolução nos séculos XIV e XV, o caso francês é esclarecedor. Esse processo adquiriu uma forma mais importante sob Filipe, o Belo (1285-1314). O rei e seus conselheiros se esforçaram em primeiro lugar para estabelecer taxas mais ou menos duráveis, senão regulares, sobre as transações de mercado. Em 1291 estabeleceu-se, “para a defesa do reino”, uma taxa do “denário por libra” que iria atingir todo mundo e duraria seis anos. O rendimento dessa taxa foi baixo e, em 1295, o rei a transferiu da venda para o estoque de mercadorias. Esse imposto indevido foi uma derrota. Filipe, o Belo, ainda quis instituir em nível nacional taxas já experimentadas com sucesso em algumas cidades. Essas taxas incidiram sobre a fortuna adquirida ou sobre a renda dos franceses que moravam fora do reino. Foram apresentadas como substituto do serviço militar, obrigatório havia pouco tempo, para todos os habitantes homens do reino, e essa ficção foi sublinhada pelo fato de que se aplicava até às classes altas da população. As novas taxas foram cobradas em 1302, 1303 e 1304, e o rei solicitou nas assembleias o consentimento dos eclesiásticos importantes e dos leigos e às vezes das cidades especialmente ligadas à monarquia, chamadas “boas cidades”. A taxa, afinal estabelecida em 1341, seria abolida em 1356. Esses esforços para impor um fisco real estiveram entre as principais causas das revoltas esporádicas do século XIV e do início do século XV e, principalmente, deram de maneira durável um poder mais importante às reuniões de estados, espécie de esboço parlamentar, às quais o rei tinha de submeter a criação de novos impostos. A realeza francesa também estava obrigada — talvez não tenha se interessado por isso — a aperfeiçoar a gestão desse fisco. Não houve orçamento de receita e despesa para as finanças da monarquia francesa dos séculos XIV e XV, e, em razão da raridade dos documentos medievais que incluem preços e dados numéricos, é difícil hoje tentar estabelecer um orçamento. De todo modo, em torno das velhas operações militares de envergadura — como as havidas durante a Guerra dos Cem Anos —, a monarquia deixou de estabelecer previsões em matéria de finanças e esse exercício se limitou a alguns centros de importância particular em matéria econômica e financeira. Foi, como mostrou Ugo Tucci, o caso de Veneza. 17

Notas:

1. Cary J. Nederman, “The virtues of necessity: labor, money and corruption in John of Salisbury’s thought”, artigo citado, p. 86.

2. Caorsinos (cahorsins) é o adjetivo pátrio usado pelo Autor no original, embora dicionários contemporâneos (v.g., o Larousse) usem a forma cadurciens, a partir de cadurcum, forma latina para cahors. (N. do T.)

3. Robert-Henri Bautier, “Le marchand lombard France aux XIIIe e XIVe siècles”, em Le Marchand au Moyen Âge

(congresso de Reims, 1988), SHMES, 1992, pp. 63-80.

4. “Jean de Mirabello, dit Van Haelen. Haute finance et Lombards en Brabant dans le premier tiers du XVIe siècle”

[Jean de Mirabello, dito Van Haelen. Alta finança e Lombardos em Brabant no primeiro terço do século XVI], Revue belge de philologie et d’histoire, 77/4, 1999, pp. 843-931.

5. Renato Bordone e Franco Spinelli (dir.), Lombardi in Europa nel Medioevo (Lombardos na Europa na Idade Média), Milão, 2005; Renato Bordone (dir.), Dal banco di pegno all’alta finanza: lombardi e mercanti-banchieri fra Paesi Bassi e Inghilterra nel Trecento [Do banco de penhor à alta finança: lombardos e mercadores-banqueiros entre os Países Baixos e a Inglaterra nos anos Trezentos], Quaderni/Cahiers del Centro studi sui Lombardi, sul credito e sulla banca, 2, 2007-II.

6. Jacques Labrot, Affairistes et usuriers au Moyen Âge [Negocistas e usurários na Idade Média], tome 1, Les Lombards, l’hérésie et l’Eglise, Ed. La Louve, 2008.

7. Agnel era uma moeda de ouro. A mesma palavra era usada em Portugal, onde entretanto também se usava a forma anhel, pois a moeda trazia a imagem de um cordeiro (anho). De cordeiro (agneau), aliás, também deriva a forma francesa. (N. do T.)

8. R. Cazelles, “Quelques reflexions à propos des mutations de la monnaie royale français (1295-1360)”, em Le Moyen Âge, 1966, pp. 83-105 e 251-278.

9. Também se usava, em português, a forma Tréveris, hoje esquecida. Quanto a Mogúncia, alemão Mainz, já houve quem usasse Maiença em português, no tempo de avassaladora influência do francês (Mayence), e um exemplo típico foi Gonçalves Crespo (1846-1883, poeta português nascido no Brasil). O étimo, entretanto, segundo Nascentes, é o latim Magontiacum, encontrado em Tácito. É a cidade de onde saíram as primeiras obras impressas no mundo, as Bíblias de Gutenberg. (N. do T.)

10. A partir de 1337, as mutações das moedas de prata definem-se pelo pé de moeda, que permite conhecer o grau de fragilidade ou de força dela. Achar-se-á uma definição dessa noção complexa mas importante de pé de moeda na obra de Etienne Fournial, Histoire monétaire de l’Occident médiéval, Paris, 1970, pp. 30 e 31.

11. F. de Saulcy, Recueil de documents relatifs à l’histoire des monnaies frappés par les rois de France… [Compilação de documentos relativos à história das moedas cunhadas pelos reis de França…], t. 1, Paris, 1879, p. 455. Textos modernizados em Etienne Fournial, Histoire monétaire de l’Occident médiéval, p. 158.

12. A “ordem de fragilização dos valores” anunciada no início da frase foi quebrada, como se vê, ao situar-se Roma (2,8%) depois de Florença (3%). (N. do T.)

13. Referência a Simon Caboche, que chefiou a facção popular do partido dos Bourguignons no reinado de Carlos VI. (N. do T.)

14. Segundo o Petit Larousse Illustré (2005), os Van Artevelde, pai (Jacó) e filho (Filipe), eram da cidade de Gand, não de Liège. O desencontro é de estranhar sobretudo porque as duas cidades não são tão próximas assim (levando-se em conta o fato de ser tão pequena a Bélgica): Gand fica perto do Mar do Norte; Liège, perto da fronteira com a Alemanha. (N. do T.)

15. rata-se da forma primitiva do árabe maravedi, que o autor empregou provavelmente para dar ênfase ao fato de que está tratando de uma realidade do fim do século XV. (N. do T.)

16. Taxa correspondente a um ano de rendas que tinham de pagar à Santa Sé os cidadãos que dispunham de algum benefício. Oneravam os bispados na ausência de um titular, diz o autor, provavelmente porque, não havendo um bispo, os que deviam efetuar esse pagamento relutavam em fazê-lo. (N. do T.)

17. Ugo Tucci, “Alle origini dello spirito capitalistico a Venezia: la previsione economica” [Nas origens do espírito capitalista em Veneza: a previsão econômica], em Studi in onore de Amintore Fanfani, vol. 3, A. Giuffre Ed., Milão, 1962. Ver-se-á adiante que utilizo as pesquisas de Tucci a respeito da existência de uma mentalidade de previsões na Veneza medieval. Não concordo com as hipóteses dele de que esse caso seria um primeiro sinal de mentalidade capitalista.

10. O aperfeiçoamento do sistema

financeiro no fim da Idade Média

Nos séculos XIV e XV o desenvolvimento do comércio, provavelmente sem ser tão vigoroso como no curso do longo século XIII, levou à criação de novos instrumentos que permitiram atender às necessidades crescentes de dinheiro da cristandade sem se recorrer a um socorro maciço da moeda real. A insuficiência das minas de metais preciosos e as alternativas de abastecimento com metais preciosos da África ou do Oriente limitavam as possibilidades monetárias da Europa.