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A justificação progressiva do empréstimo a juros

Agora buscarei mostrar de que modo o empréstimo a juros, base da usura, foi pouco a pouco e em certa condição reabilitado durante o século XIII e sobretudo nos séculos XIV e XV. Essa reabilitação se justifica pelo desejo dos usurários de permanecerem bons cristãos e de uma parte da Igreja de salvar os piores pecadores introduzindo nas concepções da vida do homem e da sociedade as melhorias que a evolução histórica lhes parecia exigir, e mais que tudo a evolução do dinheiro. Veremos então, numa sociedade daquele momento em diante submetida às práticas monetárias, como evoluíram os valores fundamentais a que a existência do homem e da sociedade obedece na cristandade do século XIII, na qual acreditei ver o que chamei de “uma descida dos valores do céu sobre a terra”. 11 O primeiro desses valores que se impuseram durante todo o século XIII foi a justiça. Porém acima dela está a caritas, quer dizer, o amor. Ver-se-á como a difusão do dinheiro pode se conciliar com essa exigência de caritas, que remete antes a uma economia da doação, segundo uma concepção diferente daquela de Marcel Mauss, autor do célebre Essai sur le don,

forme archaïque de l’échange [Ensaio sobre a doação, forma arcaica da troca] (1932-1934).

Acrescente-se o efeito da valorização do trabalho, que introduziu uma dimensão particular no uso e na difusão do dinheiro, especialmente pela importância do assalariado. Contentar-me-ei aqui em indicar aquele que me parece ter sido o primeiro meio utilizado pela sociedade da Idade Média, e em particular pela Igreja, para que o usurário não fosse fatalmente, e sem exceção, lançado ao inferno.

Tentei explicar há alguns anos que na segunda metade do século XII no Ocidente surge, no que diz respeito ao além, que é a preocupação maior de todos os cristãos, um além intermediário, o purgatório. 12 Durante um tempo proporcional ao número e à gravidade dos seus pecados no momento de sua morte, o cristão sofre nesse além um certo número de torturas de caráter infernal, mas escapa do inferno perpétuo. Assim, quando tiverem expiado suficientemente seus pecados no Purgatório, ou mais tarde, quando o Juízo Final só deixa, face a face com a eternidade, o paraíso e o inferno, alguns usurários cujo caso não for irremediável podem escapar do inferno e, como os outros artesãos de que fala Jacques de Vitry, serão recebidos no paraíso. A primeira salvação conhecida de um usurário pelo Purgatório está no tratado do cisterciense alemão Cesário de Heisterbach, em seu Dialogus

magnus visionum ac miraculorum [Grande diálogo das visões e dos milagres], cerca de 1220, no

Um usurário de Liège morreu em nossa época. O bispo proibiu seu enterro no cemitério. A mulher do usurário dirigiu-se à sé apostólica para implorar que ele fosse enterrado em terra santa. O papa recusou. Ela queixou-se então por seu esposo: “Disseram-me, Senhor, que marido e mulher são uma única pessoa e que segundo o Apóstolo o homem infiel pode ser salvo pela mulher fiel. O que meu marido deixou de fazer, eu, que sou parte do seu corpo, farei com prazer em seu lugar. Estou pronta a me enclausurar pelo bem dele e a resgatar seus pecados diante de Deus.” Cedendo às preces dos cardeais, o papa autorizou o enterro do homem no cemitério. A viúva passou a morar junto do túmulo dele, manteve-se como enclausurada, e se esforçou noite e dia para agradar a Deus pela alma do defunto, com esmolas, jejuns, orações e vigílias. Depois de sete anos, o marido apareceu-lhe vestido de preto e a ela agradeceu: “Deus ouviu tuas preces, pois graças a teus sacrifícios fui tirado das profundas do inferno e terminaram as mais terríveis penas. Se me prestares ainda os mesmos serviços durante mais sete anos, estarei completamente livre.” Ela assim fez. Ele de novo apareceu-lhe ao fim de sete anos, mas desta vez vestido de branco e com ar feliz: “Dou graças a Deus e a ti porque hoje fui libertado.”

Cesário explica em seguida que o estágio intermediário do usurário de Liège entre a morte e a libertação de sua alma graças à mulher é o purgatório. Eis o mais antigo testemunho conhecido de um usurário salvo pelo recente purgatório. É verdade que evidentemente o purgatório não foi criado para salvar o usurário do inferno, mas, numa concepção muito mais vasta e renovada do além, o que fica é que entre o purgatório e o dinheiro a história do usurário de Liège apresenta uma ligação. De agora em diante, poder-se-á dizer com Nicole Bériou que na cristandade o espírito de lucro se situa “entre o vício e a virtude”. 13

O purgatório, claro, não é o principal meio de salvar o usurário do inferno a partir do século XII. Uma evolução tendendo a identificar condições que tornam possível o que a Igreja medieval chamava de usura, ou usuras, deu-se lentamente no curso do século XIII e até o fim do século XV. Lembremos que a usura corresponde então ao empréstimo com juros e, mais particularmente, à cobrança de juros sobre o dinheiro emprestado. Ora, o grande avanço da difusão e do uso do dinheiro de que se falou tem como consequência uma importante evolução do endividamento praticamente em todas as classes sociais da sociedade ocidental do século XIII. Esse endividamento, já o vimos, atinge particularmente os camponeses, que até então não manipulavam nem tinham dinheiro a não ser de modo limitado, mas que são obrigados, naquilo que Marc Bloch chamou a segunda fase da feudalidade, a dispor de moeda, especialmente pela transformação de numerosas taxas in natura em taxas em dinheiro. Em algumas regiões, o campo foi um domínio privilegiado no qual pôde prosseguir o enriquecimento dos emprestadores judeus, cada vez mais substituídos por cristãos. Porém mais comumente, os emprestadores do campo foram ou emprestadores urbanos cristãos ou homens do campo ricos que descobriram no empréstimo aos camponeses pobres e endividados o meio para aumentar o crescimento de suas rendas, consolidando assim a existência de uma classe camponesa rica.

Geralmente, a evolução das regulamentações eclesiásticas e principescas e das mentalidades condenando o uso do dinheiro foi continuando com a evolução das regulamentações relativas ao mercado. Com efeito, desde o século XI, e especialmente pelo uso da chamada Paz de Deus ou da Paz do Príncipe, os comerciantes foram protegidos pela Igreja e pelos senhores, aos quais competia justificar essa atitude. Duas motivações especiais foram mantidas. A primeira foi a utilidade. O cristianismo medieval jamais distinguira com clareza o bom, nem mesmo o belo, do útil. O aumento dos meios de subsistência e das necessidades vitais das populações medievais, principalmente nas

cidades, justificou pouco a pouco, a partir do século XII, as atividades dos camponeses por sua utilidade: elas proporcionavam ao conjunto ou a certas categorias de cristãos produtos de que eles tinham necessidade ou desejo. Entre as necessidades, se a primeira foi sem dúvida a do pão, alimento fundamental do Ocidente, não se pode esquecer o sal marinho ou das minas e, entre os produtos desejados, pode-se pensar nos que tinham maior sucesso: as especiarias, as peles, as sedas.