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Mapa 21 – Infraestrutura óptica do COSIPLAN (2016)

2.1 A América Latina na periferia do capitalismo

O objetivo dessa seção é realizar uma breve análise da formação socioeconômica latino- americana enquanto periferia do sistema internacional. Para tanto, a contribuição da CEPAL a partir dos 1950 é basilar à formação de um paradigma desenvolvimentista latino-americano e de um entendimento da posição da região em relação ao sistema internacional. O campo inaugurado por Raúl Prebisch, em 1949, cujo foco histórico dá base à sua teoria estruturalista do subdesenvolvimento, examina o modelo econômico de crescimento primário exportador (hacia afuera) em consonância ao modelo industrial-urbano (hacia dentro)43. Em última instância, consiste em uma escola de pensamento que analisa as tendências socioeconômicas da região latino-americana a partir da lógica centro-periferia. A oposição entre centro e periferia enquanto abstração teórica formulada por Prebisch (1964) baseia o entendimento da dinâmica do subdesenvolvimento latino-americano, que encontra uma forma singular de industrialização no século XX. Maria da Conceição Tavares (1972; 1978), enquanto “economista do desenvolvimento”, torna-se expoente da CEPAL ao incorporar o fator cíclico no método estruturalista para explicar a trajetória de ascensão e declínio do processo de industrialização no Brasil, partindo de uma análise histórica e indutiva que a enquadra como teórica cepalina.

De acordo com Bielschowsky (2000), o método de análise cepalino se baseia em quatro traços fundamentais: (i) o enfoque histórico-estruturalista, a partir das noções de centro e periferia; (ii) a análise da inserção internacional; (iii) a análise dos condicionantes estruturais internos; e (iv) a análise das possibilidades de ação estatal. O componente infraestrutura, analisado nesta pesquisa, é um fator essencial a essas quatro etapas: (i) o que difere centro e periferia reside da trajetória de (sub)desenvolvimento econômico capitalista, que passa necessariamente por relações de exploração e pelo perfil da construção de infraestrutura e sua utilização enquanto fator de projeção; (ii) nesse sentido, a inserção internacional periférica, hacia afuera, tem na infraestrutura um elemento condicionante às relações assimétricas com o centro, assim como reforça o perfil primário-exportador; (iii) a vulnerabilidade externa decorrente desse processo impacta sobre as estruturas internas, que no caso latino-americano,

43 Formaram também esse quadro de pensamento autores clássicos como Celso Furtado e sua obra “Formação Econômica do Brasil” (1959), Aníbal Pinto e “Chile: un caso de desarrollo frustrado” (1959), e Aldo Ferrer com “La Economía Argentina” (1963).

se formam através de uma infraestrutura que reforça um crescimento econômico desigual e dependente; e (iv) ao mesmo tempo, ainda que na formação histórica da região a infraestrutura tenha se constituído enquanto subproduto estratégico da relação centro-periferia, pode também ser concebida como auxiliar à superação do subdesenvolvimento através de uma ação estatal voltada à suplantação de desigualdades, dependência e primarização. Portanto, aplica-se aqui o método indutivo do estruturalismo, buscando reconhecer trajetórias evolutivas, históricas e comparativas no exame de agentes sociais e instituições políticas cujo comportamento é variável. “As estruturas subdesenvolvidas da periferia latino-americana condicionam – mais do que determinam – comportamentos específicos, de trajetórias a priori desconhecidas” (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 21).

À medida que ocorreu a expansão ultramarina europeia, já na primeira onda de colonização, a região latino-americana – em específico a América do Sul para os fins dessa pesquisa44 – se inseriu na divisão internacional do trabalho como fornecedor de bens primários. A partir da destituição (ou desestruturação) das organizações políticas típicas dos povos originários, a região se vinculou aos centros hegemônicos de modo dependente e complementar. Esse caráter dependente, assentado na atuação de elites associadas ao capital metropolitano, implicou no afastamento de formação de projetos nacionais autônomos. Em larga medida, os interesses econômicos das elites latifundiárias da região se mesclavam com os interesses das coroas de Espanha e Portugal.

A partir da Revolução Industrial, quando avança o estabelecimento de uma economia mundializada, no contexto da ascensão da hegemonia britânica, a América do Sul se consolidou como fornecedora de produtos primários. Esse quadro se manteve, segundo Celso Furtado, mesmo após as independências, o que resultou em:

[...] um período de desenvolvimento e transformação; a especialização da produção elevou a produtividade e a renda, conduzindo à formação de um mercado interno e consequentemente à instalação de uma indústria de bens de consumo - isto aconteceu de forma cabal na Argentina, também no Brasil, enquanto a industrialização mexicana aproximou-se mais do modelo clássico, apoiando-se numa experiência artesanal. Não houve, contudo, possibilidade de formação de um sistema industrial, através de uma crescente diversificação, posto que aquela indústria de bens de consumo carecia de poder germinativo: "o crescimento da produção industrial assume (então) essencialmente a forma de adição de novas unidades de produção, similares às

44 No passado, a política externa brasileira reconhecia duas Américas, distintas, não tanto por suas origens étnicas ou pela diferença de idiomas, mas, principalmente, pela geografia, com suas implicações geopolíticas. Até metade do século XX, encontra-se muito mais consistente nos estudos e interesses da política externa brasileira o conceito de América do Sul, sendo o conceito de América Latina considerado muito genérico e, em parte, sem consistência real de interesses econômicos, políticos e geopolíticos para a agenda externa brasileira. Essa orientação, dada durante boa parte da história da política externa brasileira, mudou especialmente a partir do período pós-Segunda Guerra, quando começaram a surgir as ondas de regionalismo (PADULA, 2011a).

preexistentes, mediante a importação de equipamentos" (GONÇALVES, 1970, p. 191).

Diante do cenário que se desenhou, mesmo após as independências, a inserção na divisão internacional do trabalho se deu a partir de uma posição periférica. Ao passo que o capitalismo transitou para formas mais complexas de estruturação, nas quais se aprofundaram as formas de dominação híbridas, comerciais e financeiras na região, a mentalidade sobre o que determinava a dependência permanecia atrelada apenas às questões comerciais (LACERDA et al., 2010). O desenvolvimento econômico que ocorreu na região não foi linear: na América Latina, observaram-se ciclos de grande crescimento econômico desde o período colonial, seguidos por períodos de crises profundas. Esses ciclos de crescimento se caracterizavam pelo aumento da concentração de renda e por estarem atrelados às dinâmicas do comércio e do capital internacional. Dessa forma, não foram resultantes diretos da atuação de burguesias nacionais e da demanda agregada dos mercados internos. Ou seja, mesmo com o avanço da consolidação do Estado nos países sul-americanos, a inserção internacional – salvo alguns esforços esporádicos – ficou atrelada aos centros hegemônicos de modo dependente. À medida que os EUA se consolidam como potência regional, a dependência foi transitando de Londres para Washington. Essa dependência estava, especialmente, centrada na dependência de capital externo e na necessidade de que os mercados centrais absorvessem os produtos primários da região.

A condição periférica e dependente do país reforçou os aspectos geopolíticos que já dificultavam um eventual processo de integração regional na América do Sul. Afinal, os núcleos econômicos latino-americanos estavam voltados à consolidação de maior integração com as economias centrais – o que implicava em uma condição de subdesenvolvimento. Para Prebisch (1968), o centro desenvolvido não transferia seus aumentos de produtividade para a periferia atrasada. Mais do que isso, apropriava-se dos moderados incrementos de produtividade, de tal sorte que havia uma relação desigual entre os preços dos produtos manufaturados do centro e os preços dos produtos primários da periferia a favor dos primeiros, caracterizando-se como um intercâmbio desigual. Com o passar do tempo, o aumento da oferta de produtos primários faria com os preços destes produtos tivessem uma tendência de queda, ao passo que os preços dos produtos industriais apresentavam uma tendência de aumento (PREBISCH, 1964). Esse perfil socioeconômico é um dos pilares que moldam a formação do Estado Nacional na América Latina, pois combina dois processos simultâneos e indissociáveis: por um lado, o viés econômico-social estruturado pela globalização do modo de produção capitalista; por outro, o aspecto político-militar referente aos processos de independência das colônias ibéricas. Ao

longo da história de formação dos Estados Nacionais latino-americanos, portanto, esses fatores se entrelaçam e produzem as peculiaridades da região (WASSERMAN, 2010).

No contexto de hegemonia britânica no século XIX, Londres era a principal fonte de empréstimos no mundo. Os recém-independentes governos latino-americanos se tornaram dependentes dessa fonte de capital, a maior parte investida em infraestrutura, especialmente em ferrovias, mineração e terras (BETHELL, 1995). Havia um interesse intrínseco na produção agroexportadora da região, tendo em vista que a Inglaterra detinha a maior frota mercante do mundo, dominante na distribuição logística e financeira do comércio internacional. O país era um mercado importante de gêneros alimentícios e matérias-primas latino-americanas. Nesse sentido, “ao longo de todo o século XIX, a Inglaterra era o principal parceiro comercial, o principal investidor e o principal detentor do débito público da América Latina” (BETHELL, 1995, p. 272).

Além da dependência econômico-financeira em relação à potência extrarregional, aumentava, no período, o contingente de britânicos vivendo nas cidades litorâneas da região, que serviam como importantes enclaves comerciais para o escoamento produtivo e recepção de artigos manufaturados ingleses. Essas comunidades britânicas consolidaram a influência sobre a logística do comércio exterior na América Latina, sobretudo no Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos Aires. As empresas de “capital conjunto” formadas nesse contexto, com sede em Londres, passaram a focar os investimentos em estradas de ferro como forma de viabilizar o aumento do comércio transnacional. Brasil e Argentina foram os principais receptores desses investimentos. Além da infraestrutura de transportes, houve investimentos bastante lucrativos também no setor energético com o intuito de aumentar a produtividade regional, como companhias de gás em todas as principais cidades brasileiras (BETHELL, 1995). No entanto, ressalta-se uma peculiaridade: as ferrovias construídas nos dois principais países da América do Sul foram feitas com diferentes sistemas de bitolas45, representando um entrave à integração ferroviária ao longo de todo século XX (LACERDA, 2009).

Afinal, as ferrovias foram planejadas e construídas com o objetivo primordial de exportar produtos primários – café no Brasil, grãos na Argentina e cobre no Chile. Governos e investidores privados não tinham visão das ferrovias como rotas de integração dos mercados nacionais, nem como instrumentos de aproximação

45 Bitola é o que mede a distância entre os trilhos. “Entre Argentina e Brasil, a mudança de bitola impede que os trens atravessem a fronteira. O mesmo acontece entre Brasil e Uruguai. A guerra entre Argentina e Brasil, no distante ano de 1825, pelo controle da região que é hoje o Uruguai, e a Guerra do Paraguai, na segunda metade da década de 1860, deixaram uma cicatriz aberta na infraestrutura logística do Cone Sul. As ferrovias construídas no palco desses conflitos adotaram uma bitola diferente tanto das demais redes ferroviárias argentinas quanto das redes brasileiras. Garantia-se dessa maneira que os exércitos desses países não poderiam utilizar os trilhos para invadir um ao outro” (LACERDA, 2009, p. 187). Mais do que isso, pelos interesses britânicos, garantia-se que esses territórios tivessem dificuldade em serem integrados.

comercial entre os países. A orientação básica dos trilhos era do interior até os portos exportadores, e as frequentes mudanças de bitolas impediam a circulação dos trens em toda a extensão das redes (LACERDA, 2009, p. 187).

A partir da segunda metade do século XIX, a demanda por capital externo para construção de ferrovias e gastos governamentais foi se tornando cada vez maior. Com a disseminação da ideologia do livre-comércio para periferia do sistema internacional, a Grã- Bretanha liderava o controle sobre os fluxos de capital internacional. “Os fluxos externos foram também facilitados pela simplificação dos sistemas monetários, pela adoção do ouro como base monetária mundial e pela melhoria dos meios de comunicação” (SOUZA, 2003, p. 19). Por essa via, formaram-se, na América Latina, Estados Nacionais fortemente dependentes das relações financeiras com a potência hegemônica (MOREIRA et al., 2010). Apesar de já formalmente independentes, essa dependência foi reforçada pelo padrão de desenvolvimento das elites nacionais latino-americanas: liberais na esfera comercial e conservadoras no âmbito sociopolítico. A subordinação infraestrutural através do controle e financiamento britânicos aos principais empreendimentos regionais são fruto desse descompasso.

Enquanto a Europa passou pelo fim do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a consolidação da burguesia – que, em nome de interesses particulares materiais, tais como o fim do poder aristocrático e a unificação do mercado interno, forjou o nacionalismo e infraestruturas integradas –, a América Latina do século XIX se encontrava em um contexto de instabilidade e incertezas. Na periferia do sistema internacional, os Estados Nacionais não vivenciaram o padrão histórico europeu, que foi, portanto, uma exceção. No caso latino-americano, o que se observa são Estados Nacionais com uma coesão interna frágil, com identidades que variam conforme variam os processos políticos internos. Em trajetórias históricas diferentes das trajetórias dos Estados europeus, a América Latina não passou por guerras interestatais da dimensão daquelas ocorridas no outro continente - e que foram elementos centrais para a centralização dos Estados nacionais e para o desenvolvimento do nacionalismo como tecnologia política. Os Estados que emergem na região são descentralizados em maior ou menor medida, o que implica em uma percepção de ameaça externa bastante volátil, que se altera conforme as mudanças nas disputas internas (CENTENO, 2002). O processo de conquista europeia e o período de colonização forjaram a partir de cima (do poder colonial) um subcontinente profundamente dividido entre si. Esses processos teriam gerado Estados mais descentralizados, alguns com baixa capilaridade social, muitas vezes com poucas conexões com a capital (IANNI, 1987; CENTENO, 2002; WASSERMAN, 2010).

Frente a isto, as formações estatais na América Latina seriam igualmente desinteressadas em prover recursos à sociedade, no plano interno, e de se defenderem, no plano externo. Mesmo quando, historicamente, participaram de guerras, não internalizaram os efeitos positivos oriundos do aumento da produção e do estabelecimento de uma unidade nacional. Pelo contrário, nesses períodos, apenas consolidaram sua dependência externa através do aumento de suas dívidas externas (CENTENO, 2002). Cabe destacar que, em grande medida, esse quadro se deve ao fato de que as elites econômicas latino-americanas, conforme já apontado, apresentam um caráter subalterno e associado ao capital internacional.

O Estado latino-americano caracteriza-se por essa baixa coesão do tecido social e pelo papel determinante que as elites dependentes e associadas ao capital internacional exercem sobre a construção de um projeto nacional. De modo geral, o que se verifica a partir da análise da formação do Estado na América Latina é que seu perfil deriva de uma soma de fatores estruturais, como a “maldição” da abundância de recursos naturais – que implicaram em economias especializadas na venda de produtos primários, dependentes dos ciclos internacionais de crescimento (LE BILLON, 2005). As elites nacionais da região desenvolveram, em virtude desse caráter da formação histórica, uma mentalidade rentista que corrobora centralmente para o subdesenvolvimento da região e inibe o desenvolvimento de sistemas industriais nacionais. Em grande medida, ocorrem disputas internas pela apropriação da renda dos recursos naturais (de um lado, benefício apenas de uma determinada elite, e, de outro, a reversão desses recursos em prol de toda a sociedade). É desse quadro que deriva a desigualdade estrutural que caracteriza a região. Atores externos aproveitam-se da fragmentação interna e falta de coesão para apoiar determinados grupos internos, a fim de atender seus interesses econômicos.

Há uma interconexão entre as disputas internas e as externas que afetam as instituições, a identidade nacional, a percepção de ameaça e as políticas sociais. Nesse cenário, de fragmentação profunda e cisão interna nos Estados da região, a construção de um projeto de integração regional autônomo torna-se bastante complexa. Afinal, os objetivos nacionais variam conforme se alteram os arranjos entre as elites internas de cada país, bem como do alinhamento dessas com o capital internacional. Esse contexto insere-se em um quadro mais amplo de obstáculos geopolíticos e geoeconômicos estruturais que nascem da formação colonial e permeiam a inserção internacional da região desde a independência desses países, incidindo decisivamente sobre as trajetórias nacionais dos países sul-americanos.

A formação das redes infraestruturais latino-americanas também se deu sob esses desafios estruturantes. A fragmentação regional não foi um fator somente político, mas também físico. Além das barreiras geográficas naturais, que dificultam os vínculos regionais, a infraestrutura de transportes em toda a região não foi planejada no sentido de prover integração. Pelo contrário, foi construída no sentido de reforçar assimetrias e a concentração de poderes em determinadas localidades. Mais importante ainda era a função da infraestrutura de servir como elo fundamental à penetração extrarregional e ao posicionamento periférico da região na divisão internacional do trabalho. A infraestrutura energética, de comunicações e de mineração, igualmente centrais ao processo de desenvolvimento, também se constituíram sob os princípios da dependência externa e da desigualdade. Nesse sentido, enquanto infraestruturas essenciais ao sistema produtivo agroexportador, os investimentos em sistemas de gás, carvão e comunicações do período respondiam aos interesses e necessidades do capital dominante. Essa formação infraestrutural primária, dependente e desigual molda as estruturas do subdesenvolvimento periférico latino-americano.