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Mapa 21 – Infraestrutura óptica do COSIPLAN (2016)

2.2 A Construção do Brasil: primarização, desigualdade e dependência

As histórias geopolítica e geoeconômica do Brasil estão intimamente imbricadas. A inserção geopolítica do país foi determinada pelas guerras europeias, enquanto a origem do posicionamento geoeconômico capitalista correspondeu aos projetos das grandes potências. Essas variantes não encerram a explicação da formação social, política e econômica do país desde a Independência. O Brasil se forma enquanto uma economia agroexportadora tradicional, similar às demais economias latino-americanas. Apresenta uma trajetória de desenvolvimento periférico voltado para fora, atrelado à demanda dos países centrais. Era uma “economia reflexa”, ou seja, vulnerável às crises no centro, bem como às flutuações nos preços internacionais dos produtos que era dependente. Essa característica marca o processo de subdesenvolvimento brasileiro, tendo que em vista que a dependência da exportação de commodities (madeira, açúcar, borracha especiarias, café) torna a economia essencialmente suscetível às variações de oferta e demanda internacional. Pode-se dizer que a economia brasileira se desenvolveu em ciclos, marcados por ascensão e queda, cujas dinâmicas dependentes ao centro e a uma pauta pouco diversificada inseriram o Brasil no sistema internacional de modo periférico, dependente e desigual (PRADO JR, 2008).

Esta pesquisa parte da premissa que a classe capitalista brasileira se define por sua contraditoriedade, o que se traduz, em muitos momentos, pelo fato de ser nacionalista, mas recorrer à dependência associada às elites externas quando se sente ameaçada. Nesse sentido, Bresser-Pereira (2015) classifica a burguesia interna brasileira a partir do seu caráter ambíguo nacional-dependente. Entretanto, o autor afirma que, apesar de sua característica contraditória, essa burguesia foi fundamental para o estabelecimento do pacto desenvolvimentista que promoveu a industrialização do Brasil. Tavares (1999), por sua vez, analisa o processo de ascensão da produção industrial no país como um projeto essencialmente estatal, combinado ao capital externo. Nessa perspectiva, o capital nacional seria a “pata fraca” desse tripé, tendo em vista sua intrínseca formação duplamente associada (ao Estado e ao capital externo). De forma oposta ao pensamento de Bresser-Pereira, para Tavares, a burguesia brasileira jamais conseguiu alcançar o status de burguesia autônoma.

A dificuldade em consolidar uma burguesia efetivamente autônoma encontra origens no processo de Independência. A elite imperial do Brasil era, basicamente, uma elite formada por latifundiários e em pequena parte por altos burocratas, com fortes laços de subordinação cultural à França e à Inglaterra (BRESSER-PEREIRA, 2015). Para Raymundo Faoro (1975), a Independência marca uma mudança na natureza do poder no Brasil porque ao poder dos senhores de terra e dos grandes comerciantes adiciona-se, a partir de então, o poder de uma burocracia patrimonialista. Essas transformações impactam a inserção externa do Brasil. As elites nacionais foram eficientes em consolidar a integração territorial do país, ainda que sem uma noção de nacionalidade. “Se a integridade Brasílica vingou, foi antes pelo seu próprio sentido conservador – expresso nos interesses das elites em perpetuar hierarquias sociais, étnicas e raciais fortemente enraizadas – do que pela consolidação de um sentimento de identidade nacional” (SILVA, 2006, p. 411).

O complexo de inferioridade colonial que marca a essência de nossas elites desde a Independência, portanto, verifica-se a partir de dois traços inter-relacionados: a vontade de “ser europeu”, ou seja, não se identificarem como cidadãos brasileiros responsáveis e pertencentes ao desenvolvimento do país (FERNANDES, 1976; RAMOS, 1950); associado ao fato de que não havia nessas elites um sentimento anti-imperialista, o que costuma fazer parte do processo de construção das nações com desenvolvimento tardio (MELLO, 2017). Desse modo, a principal marca que acompanha as elites econômicas nacionais desde a sua formação oligárquica e dependente é que “essas elites não se davam conta de que o imperialismo

industrial ou moderno limitava o desenvolvimento do país, entre outras razões, porque o persuadia a não buscar a industrialização” (BRESSER-PEREIRA, 2015, p. 63).

O resultado desse processo logo se verificou a partir da associação não-condicionada à potência hegemônica da época. A “diplomacia dos tratados”, nesse sentido, demonstra como a política de reconhecimento a qualquer custo se somou à falta de resistência das elites nacionais, que na maior parte do tempo eram partidárias da associação à Inglaterra, por razões predominantemente ideológicas. Além disso, a própria manutenção das rivalidades com os países vizinhos faz parte desse processo. Ainda que seja majoritariamente herança da situação colonial, contribui para esse afastamento o próprio sentimento não-pertencente à região latino- americana que marca a formação das elites brasileiras que, portanto, não reivindicam uma maior aproximação que pudesse levar a benefícios econômicos e comerciais.

Sob a égide da hegemonia britânica do século XIX e o ordenamento da divisão internacional do trabalho, o Brasil interessava enquanto um “bom negócio capitalista” (TAVARES, 1999, p. 450). Nesse sentido, enquanto um “imenso Portugal”, o Brasil oferecia um vasto mercado interno e uma nova fronteira de acumulação para o capital mercantil, industrial e financeiro britânico. Com a independência, manteve-se as práticas clientelistas e burocráticas herdadas do estamento português, “[...] bancando os riscos de uma parte da sua burguesia nativa, ao mesmo tempo em que financiava a expansão da nova burguesia cafeeira” (TAVARES, 1999, p. 451), essencialmente formada pela atração de imigrantes europeus:

O Império brasileiro terminaria em menos de sessenta anos, esvaído pelo gigantesco endividamento interno e externo, esgotado pelas lutas regionais dos senhores, pela abolição tardia da escravidão e por uma corte dispendiosa e incapaz de acompanhar as reformas burguesas que tinham sido vitoriosas em outros países de capitalismo retardatário. Assim, a República e a crise do Encilhamento vieram juntas, mas sem as características das revoluções burguesas originárias, nem mesmo as dos ‘capitalismos tardios’, examinadas neste livro.

A dependência com a Inglaterra era latente. Na década de 1840, o Brasil recebia metade das suas importações da potência hegemônica, que totalizavam de dois a três milhões de libras por ano. Representava o terceiro maior mercado da Grã-Bretanha, logo atrás de Estados Unidos e Alemanha (BETHELL, 1995). Entre 1865 e 1914, em torno de 40% dos investimentos britânicos no Brasil eram em estradas de ferro e no setor de transportes; 10% em energia, comunicações e outras utilidades públicas (SOUZA, 2003). Até o início do século XX, a Inglaterra se manteve como dominante em relação às finanças brasileiras. A maior parte dos recursos britânicos investidos na América Latina foram no Brasil, devido à relativa estabilidade política que o país apresentava na segunda metade do século XIX (MOREIRA et al., 2010).

Principalmente entre as décadas de 1850-1860, juntamente à Era Mauá46, os investimentos diretos na Inglaterra formaram a expansão infraestrutural e produtiva do país que precedeu a “revolução industrial brasileira” (PEREIRA, 2015).

A penetração inglesa marcará o século XIX brasileiro. Predominam os ingleses em nosso mercado: trazendo mercadorias de toda espécie, levam matérias primas, como algodão, e produtos agrícolas ou derivados da pecuária. Investem grandes capitais: em títulos de empréstimos do governo, em companhias mineiras, em estradas de ferro e em inúmeras outras empresas. Influem em todos os aspectos da vida brasileira. (HOLANDA, 2003, p. 75).

Desde a Independência, há três fatores que encarnam os conflitos cíclicos no pacto de dominação interna: (i) as tensões que envolvem a apropriação privada do território através das concessões de garantias, causando exploração e expropriação predatória de recursos naturais e populações locais; (ii) os choques entre o poder central e as oligarquias regionais, causando instabilidades constantes no pacto federativo na disputa pela distribuição da renda pública; e (iii) o papel das “elites cosmopolitas” formadas pela associação entre o capital externo, os fundos locais e as finanças públicas, cujo caráter “mais ou menos associado com o capitalismo internacional” (TAVARES, 1999, p. 453) gera tensões com as elites regionais na disputa pela acumulação e valorização do capital no Brasil. Por essa perspectiva, a infraestrutura aparece como um fator instrumental, símbolo desses conflitos cíclicos.

O papel britânico na determinação da vida política e econômica junto ao Império, como já mencionado, era central. O Barão de Mauá, conhecido por ser um “empreendedor liberal do império”, pode ser enquadrado nessa categoria de elite cosmopolita, bastante beneficiada pelos investimentos britânicos na segunda metade do século XIX. A relação pessoal de Mauá com a Inglaterra, derivada da sua atuação no setor de comércio externo, favoreceu que ele atuasse como vetor das práticas econômicas e ideológicas da potência hegemônica no Brasil. A década de 1850, nesse sentido, foi determinante para o papel que ele iria exercer na história brasileira e na economia do Império. Dois fatores se somaram para induzir uma nova conjuntura, a qual favoreceu o surgimento de empreendimentos ligados ao setor manufatureiro e industrial. O primeiro é a extinção do tráfico negreiro que permitiu que um montante significativo de recursos fosse redirecionado para outras áreas da economia. Além disso, como efeito das

46 Irineu Evangelista de Souza (1813-1889), Visconde de Mauá, é reconhecido por representar o mito do empreendedorismo na construção da história econômica do Brasil durante o segundo Império. Órfão, iniciou sua vida profissional como caixeiro na casa comercial de seu tio e tutor. Desde jovem, trabalhou na empresa de origem inglesa, Carruther e Irmãos. A atuação nessa empresa, cujo ramo era importação (manufaturados, máquinas) e exportação (algodão, açúcar), aproximou Mauá do modo de vida britânico, pais pelo qual nunca escondeu a admiração (CALDEIRA, 1995).

mudanças ocasionadas pela prevalência da geração de 184047 no contexto político do Império, houve impulso à produção local – em virtude do aumento das taxas de importação48 (MOMESSO, 2017; CERVO; BUENO, 2011). É nesse contexto que Mauá aproveita a oportunidade para criar sua manufatura siderúrgica e um estaleiro (Ponta d’Areia49).

Esse processo de diversificação econômica no Brasil imperial, no qual Irineu de Sousa estava inserido, portanto, esteve incluído nessas mudanças na economia do país. Mauá esteve envolvido com construção de estradas de ferro (estrada de Ferro Mauá, por exemplo), companhias de navegação (C.N. do Amazonas), manufaturas, setor de energia (gás), carris e telégrafos, dentre outras atividades. Essa atuação, contudo, ainda esteve assentada em dois pilares que implodem a imagem de empreendedor independente e de self-made man. O primeiro é que muitas dessas atividades ainda estavam visceralmente ligadas ao caráter primário- exportador da economia. A construção de infraestrutura (ferrovias e portos) eram voltadas ao escoamento dos produtos agrários, principalmente café. Ou seja, as ações de Mauá não rompiam com a lógica escravocrata-exportadora da economia brasileira. Pelo contrário, eram reforçadas e sustentadas nessa lógica. O segundo pilar é que o sistema de financiamento que apoiou muitas dessas iniciativas de Mauá era vinculado ao Estado e ao capital externo. Esse financiamento ocorria de duas formas principais: (i) empréstimos diretos do Estado brasileiro a Mauá, crédito facilitado e apoio do capital britânico; e (ii) compras governamentais, as quais fomentavam a produção nas unidades produtivas de Mauá50 (MOMESSO, 2017; GOULARTI FILHO, 2011; CERVO; BUENO, 2011; GARCIA, 2017).

O primeiro movimento de integração nacional à margem da economia metropolitana se deu através da ocupação do interior, com o esgotamento do ciclo do ouro. Minas Gerais serve como elo entre a decadência do grande latifúndio escravista açucareiro e a ascensão cafeeira. Em menos de um século, o complexo cafeeiro torna-se centro dominante da acumulação de capital e da inserção internacional do Brasil, superando os espaços decadentes de exploração canavieira, extrativa e mineral. “É a partir da ideologia de suas elites políticas urbanas que se

47 Durante o período imperial, os tratados desiguais que se fizeram desde a Independência traduzem a política adotada, a qual posiciona o país em uma situação periférica no SI. A década de 1840 foi um hiato dentro desse longo período, no qual os protecionistas vencem os liberais radicais na disputa sobre a condução externa do país. 48 A tarifa Alves Branco, instituída em 1844, determinou a elevação da taxação sobre produtos estrangeiros variados. As novas tarifas variavam entre 6% e 60%, dependendo do produto (SENADO FEDERAL, 1844). Essas medidas favoreceram o desenvolvimento de algumas atividades em território nacional em substituição aos produtos importados.

49 Estabelecido por Mauá em 1846, o Estaleiro Ponta d’Areia é localizado em Niterói, Rio de Janeiro.

50 Como exemplo dessa modalidade de compras governamentais, pode-se citar o caso do Estaleiro Ponta d’Areia. Entre 1849 e 1883, a Marinha do Brasil encomendou uma dúzia de navios (a vapor, cruzador/corveta, canhoneira etc.) (GOULARTI FILHO, 2011).

vai desfazendo a visão do Brasil como uma ‘vasta empresa colonial’ cujo destino está amarrado à metrópole” (TAVARES, 1999, p. 450).

A partir da Proclamação da República, há o fortalecimento das oligarquias regionais, bem como da nascente burguesia imigrante, que será posteriormente responsável pela formação industrial do Brasil em associação ao capital estrangeiro e ao complexo cafeeiro (MAMIGONIAN, 1976; BRESSER-PEREIRA, 2015). Ademais, “a ânsia de fazer coincidir os ideais liberais político-econômicos da potência dominante inglesa com uma versão periférica e tardia do iluminismo das revoluções francesa e americana, levou-nos a uma República proclamada sem revolução política nem burguesa” (TAVARES, 1999, p. 451). O modelo da República Velha, nesse sentido, mantém a conduta do período imperial, o que Bresser-Pereira (2015) define como “Ciclo Estado e Integração Territorial” (1822-1930), conduzido pelo Pacto Oligárquico.

De acordo com Tavares, a Proclamação da República brasileira é realizada sem revolução política nem burguesa, na pretensão de conciliar os ideais liberais britânicos com uma variante tardia e periférica dos iluminismos francês e estadunidense. Uma das primeiras medidas da nova (primeira) República foi a declaração de moratória da grande dívida externa acumulada com os bancos ingleses.

A república brasileira nasceu, assim, “pacificamente” sobre os escombros do capital mercantil-escravista e a falência de inúmeras casas de comércio e bancárias mergulhadas no “Encilhamento”, resultante, ontem como hoje, da política econômica de endividamento interno e externo dos senhores locais do nosso império. (TAVARES, 1999, p. 452)

O processo de abolição da escravidão e de vinda de imigrantes para o Brasil consolidou a estruturação de uma sociedade desigual. Com significativo apoio do Estado, europeus que desejassem tentar a sorte em terras brasileiras contariam com incentivos públicos para seu estabelecimento e desenvolvimento de suas famílias nas lavouras de café, numa política deliberada de branqueamento da população (LACERDA et al., 2010; ARIAS NETO, 2013; SKIDMORE, 1976). A população ex-escravizada, por outro lado, passaria por um processo de inserção econômica sem qualquer política de inclusão ou reparação histórica (COSTA PINTO, 1953; FERNANDES, 2017). A própria infraestrutura ferroviária que cresce nesse período do final do século XIX corresponde também às necessidades de desenvolvimento das comunidades europeias e seus empreendimentos no Brasil51. De acordo com Maria Lúcia Lamounier (2008,

51 De acordo com dados de Museus Ferroviários de São Paulo, por volta de 1870, havia no Brasil 9 milhões e 900 mil habitantes (desses, 1 milhão e 200 mil escravizados). Em São Paulo, 830 mil habitantes (entre eles, 156 mil escravizados). Entre 1880 e 1900, chegaram ao Brasil cerca de 1 milhão e 200 mil imigrantes, inicialmente para trabalhar em fazendas. De 1875 a 1900, muitas estradas de ferro foram construídas na então província de São Paulo

p. 2), “a implantação das ferrovias tem sido considerada o primeiro fator a possibilitar a formação de um mercado de trabalho livre no país”:

O modo de constituição das empresas, que permite a reunião de grandes volumes de capital, a moderna técnica empregada e a utilização de materiais que impulsionam os processos de industrialização e urbanização, como o ferro e o carvão/lenha, assim como o modo de engajamento da mão-de-obra, livre e assalariada, e sua organização de forma racional e burocrática, tornaram a ferrovia um símbolo do desenvolvimento do capitalismo. No que diz respeito ao Brasil, os fatos levam a concluir que a expansão das estradas de ferro e a introdução do trabalho assalariado, relacionados aos interesses da Inglaterra em eliminar o tráfico de escravos e às transformações exigidas pela expansão da produção cafeeira, aparecem para romper os entraves impostos ao processo de acumulação, apresentando-se por sua vez, como um aspecto da ampliação das relações capitalistas em escala internacional e nacional. (LAMOUNIER, 2008, p. 2)

Ainda que São Paulo seja o caso mais emblemático dessa formação infraestrutural a partir das imigrações europeias, a cidade do Rio de Janeiro também é ícone da construção de uma infraestrutura dependente dos padrões e investimentos externos, refletindo as desigualdades que estruturam as relações socioeconômicas do território carioca. A Belle Époque carioca, do início do século XX, é simbólica dessa relação entre infraestrutura e identidade nacional. Uma série de reformas foram realizadas como forma de tentar enquadrar o Brasil nos padrões de modernização europeia, cuja influência arquitetônica francesa era basilar ao processo. A urbanização decorrente dos primeiros surtos industriais do Brasil contrastava com as estruturas rurais dos tempos do Império. Rodrigues Alves (1902-1906) foi o presidente mais engajado na modernização dos centros urbanos brasileiros, em especial do Rio de Janeiro, capital do país à época. Sob forte influência higienista e eugenista que predominavam no pensamento científico e político da época, importantes obras foram construídas na cidade, como a Avenida Rio Branco, então chamada de Avenida Central. A partir da reforma Pereira Passos, com o objetivo de emular a França e formar sua própria Champs- Élysées, o governo desalojou mais de 8 mil famílias e destruiu mais de 600 imóveis (BENCHIMOL, 2013) – a maioria formada por cortiços, as moradias de comunidades negras e pobres do período pós-abolição. Datam desse período também – e, portanto, alvo das reformas promovidas pelas elites dirigentes – as primeiras favelas brasileiras, o Morro da Providência e de Santo Antônio, habitadas em grande parte por ex-combatentes do Arraial de Canudos (SILVA, 2010). A contradição entre modernização e habitação era ali simbolicamente representada pela verticalização do espaço urbano, evidenciando um Estado “modernizador” que não contemplava a totalidade da população – não à toa, a Reforma Passos passou a ser

e em outras partes do Brasil, empregando o trabalho de engenheiros e técnicos europeus e de operários. Esses operários eram escravizados, ex-escravizados, tropeiros e estrangeiros imigrantes (MUSEUS FERROVIÁRIOS SP, 2020, s/p).

conhecida como “Bota-Abaixo!” entre a população mais vulnerável. O fenômeno de favelização na cidade do Rio de Janeiro é, portanto, fruto desse processo de elaboração de uma infraestrutura voltada aos interesses simbólicos e “cosmopolitas” das elites brasileiras da época.

O aparecimento da favela está intimamente ligado a todo um conjunto de transformações desencadeadas pela transição da economia brasileira de uma fase tipicamente mercantil-exportadora para uma fase capitalista-industrial. (...) Trata-se do momento em que a economia cafeeira fluminense entra em crise (...) reorientando toda uma estrutura já consolidada de comportamento do capital mercantil; do momento em a cidade passa a ter um crescimento demográfico extremamente rápido (fruto de migrações internas e estrangeiras) que agravava sobremaneira a questão habitacional. (ABREU; VAZ, 1991, p. 2)

A construção da Avenida Central nesse contexto resume, de certa forma, um projeto de progresso civilizatório proposto pelas elites políticas e econômicas do período (CAMPOS, 2004). Esse é um dos exemplos que mostram a simbiose entre formação social, desigualdades e infraestrutura na organização da República brasileira (ABREU, 1988). A realidade da formação econômica brasileira se estruturou, assim, em um sistema amplamente autoritário e patrimonialista. As relações entre as elites internas formaram uma ordem burguesa (industrial, financeira e comercial) duplamente dependente e vacilante, ora em relação ao Estado, ora em relação às elites internacionais. Por isso, Tavares ressalta esse caráter “mais ou menos associado ao capitalismo internacional”. A falta de uma articulação estratégica efetivamente nacional explica os desafios para a superação do subdesenvolvimento brasileiro. A histórica dependência ao capital externo desarticulou a fusão entre o poder central e uma burguesia desenvolvimentista, tendo em vista o vínculo estreito do Estado com os poderes regionais oligárquicos, que em última instância formaram o próprio poder estatal no país. O descolamento total entre as elites cosmopolitas liberais e os pactos de poder regionais e conservadores determinaram a inserção internacional do Brasil no seio desse embate “entre as cúpulas políticas territoriais e as cúpulas de poder ligadas ao império e ao dinheiro” (TAVARES, 1999, p. 453). Nesse processo formador, o Estado tinha a incumbência interventora de assegurar a propriedade do espaço a ser ocupado pelos mercados patrimoniais.

As obras de infraestrutura que configuraram a geografia urbana do Brasil correspondem a esse descompasso. Ao mesmo tempo em que partiam de projetos modernizantes calcados no padrão e investimentos europeus, no âmbito rural as redes de transportes, energia e comunicações refletiam iniciativas personalistas de poder das elites oligárquicas. Nesse sentido, até 1930, elas refletiam dois fatores: (i) os interesses hegemônicos do capital internacional que financiaram a conexão estreita aos centros globais de produção e mercados, tendo o posicionamento periférico do país demandado alguma estrutura de transporte, energia e

comunicações para essa vinculação extrarregional; e (ii) uma infraestrutura responsiva, cíclica e não estratégica, que atendia às necessidades conjunturais ligadas à economia agrário- exportadora e exploratória. Aponta-se, dessa forma, a construção de uma infraestrutura essencialmente dependente do capital internacional, desvinculada da organização de um sólido