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Mapa 21 – Infraestrutura óptica do COSIPLAN (2016)

1.2 Infraestrutura como recurso de poder na EPI

1.2.3 A visão neoutilitarista acerca da infraestrutura

A perspectiva neoutilitarista de uso da infraestrutura se fortaleceu a partir do avanço do Consenso de Washington e do neoliberalismo35, posteriormente, com a consolidação da ideia de integração global das economias nacionais, a despolitização dos mercados e o fomento do livre-comércio. O termo “Consenso de Washington” surgiu para descrever o conjunto de políticas econômicas apregoadas por instituições financeiras baseadas na capital dos EUA como solução para crises econômicas de países em desenvolvimento nos anos 1980 e que logo passaram a ser aplicadas a todas as situações: livre mercado, liberalização do mercado de capitais, liberalização comercial, taxas de juros flexíveis, juros determinados pelo mercado, desregulamentação econômica, privatizações, corte de gastos públicos, equilíbrio fiscal e proteção à propriedade privada e intelectual (HELD, 2008; WILLIAMSON, 1989).

Esse conjunto de alterações que permeiam a visão de globalização como substrato ideológico e político do pós-Guerra Fria tem como uma das suas características centrais o processo de obliteração das assimetrias presentes nas relações de poder e dominação. Essa restauração liberal-conservadora, que ganha força a partir dos anos 1970, tem no liberalismo de Friedrich Hayek e Milton Friedman sua pedra angular. Segundo Tavares e Fiori (2017):

35 Este trabalho entende “neoliberalismo” como sendo “[...] uma teoria de práticas de economia política que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor defendido pela libertação das capacidades e liberdades individuais empreendedoras dentro de um quadro institucional caracterizado por rígidos direitos de propriedade, livre mercado e livre comércio. O papel do Estado seria o de criar e preservar um arcabouço institucional apropriado a essas práticas.” (HARVEY, 2007, p. 2, tradução nossa).

Todas as vertentes do novo pensamento hegemônico convergiam em torno a um denominador comum: o ataque ao Estado regulador e a defesa do retorno ao Estado liberal idealizado pelos clássicos. Os estados keynesiano e desenvolvimentista foram transformados nos grandes responsáveis pela estagflação dos anos 70 atribuída aos seus desequilíbrios orçamentários provocados pelo crescimento do gasto público e, em particular, do gasto social. [...] No campo econômico, a “restauração neoclássica” se transforma na política da “supply side economics” e da “deflação competitiva” transformando em políticas de valor universal, o equilíbrio fiscal, a desregulação dos mercados, a abertura das economias nacionais e a privatização dos serviços públicos. No campo político, estas mesmas forças conservadoras diagnosticavam a crise dos anos 70 como uma ‘crise de governabilidade’, atribuída aos excessos das democracias de massa estimulados pelas políticas de gasto público de corte keynesiano. E propunham uma redução da participação democrática e do Estado como forma de reduzir o ‘peso das decisões públicas’ tomadas com base no cálculo utilitário dos burocratas e políticos [..] (TAVARES; FIORI, 2017, p. 116).

Essa tendência de crítica ao papel do Estado como arregimentador das vontades políticas da sociedade encontra respaldo na transformação na divisão internacional do trabalho. Essa movimentação internacional do capital e a redistribuição de papéis no âmbito da hierarquia econômica global tinha na redefinição do papel da infraestrutura um de seus pilares. A partir da década de 1970, as ideologias predominantes propagaram que os territórios políticos e os Estados Nacionais estavam perdendo relevância política. Nesse contexto, as questões estritamente econômicas imporiam uma nova lógica territorial. No âmbito da geografia, essa percepção se converteu na preponderância da visão de que os fluxos econômicos suplantariam o poder dos Estados e seus limites político-territoriais definidos. A nova lógica territorial que resulta desse processo é geoeconômica (PADULA, 2011b). Desse modo, a visão geopolítica tradicional sobre o emprego da infraestrutura perde força. Por essa nova lógica, a construção de obras de energia, transportes e comunicações deveria estar baseada no favorecimento dos fluxos comerciais, o que nos países periféricos fortalece a concepção de corredores de exportação e importação, articulando a economia apenas para fora. Mais do que isso, o controle, a operação e o processo decisório das distintas infraestruturas deixam de estar centrados nos Estados e passa a obedecer a lógica das grandes empresas transnacionais, que passam a exercer papel central.

Acompanhando e reforçando esse desenvolvimento político, no campo teórico, a multiplicação de centros voltados a consolidar uma nova visão, comercialista, acerca dos projetos de infraestrutura reforçou esse quadro. Espaços como o “Centro de Cadeias de Valor Global da Duke University” (anteriormente conhecido como “Centro de Globalização, Governança e Competitividade da Duke University”) passaram a se consolidar na discussão sobre as Cadeias Globais de Valor e a reforçar uma visão utilitarista, centrada no mercado, da infraestrutura. As Cadeias Globais de Valor (CGVs) seriam a face prática desse processo de integração de economias nacionais e de diminuição do Estado como agente regulador. Assim,

a integração de toda cadeia produtiva às redes de comércio internacional seria pré-condição para a inserção nesse novo estágio da economia global. Segundo Gereffi e Fernandez-Stark (2016),

A estrutura da GVC permite entender como as indústrias globais são organizadas examinando a estrutura e a dinâmica de diferentes atores envolvidos em uma determinada indústria. Na economia globalizada de hoje, com interações muito complexas do setor, a metodologia GVC é uma ferramenta útil para rastrear os padrões de mudança da produção global, vincular atividades e atores geograficamente dispersos em um único setor e determinar os papéis que desempenham nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. A estrutura da GVC se concentra nas sequências de valor agregado dentro de uma indústria, desde a concepção até a produção e o uso final. Ele examina as descrições de cargos, tecnologias, normas, regulamentos, produtos, processos e mercados em indústrias e locais específicos, fornecendo uma visão holística das indústrias globais, tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima (GEREFFI; FERNANDEZ-STARK, 2016, p. 6).

Em grande medida, a perspectiva das cadeias globais e regionais de valor (CGVs) enquadram-se na perspectiva liberal de organização da produção, do comércio e do investimento em uma ampla variedade de setores (SHEPHERD, 2016). A partir das CGVs, o planejamento de infraestrutura começa a ser definido a partir do enquadramento nas redes globais. Segundo Baldwin (2013), as CGVs não seriam, em si, nem boas, nem más. As CGVs

[...] fornecem mecanismos de vinculação às redes de comércio internacional com custo relativamente baixo e permitem que os países se especializem em atividades alinhadas à sua vantagem comparativa. Os países em desenvolvimento podem se beneficiar com os efeitos de renda e emprego, mesmo que sejam especializados em atividades de baixo valor agregado, como montagem (BALDWIN, 2013, s/p, tradução nossa36).

Apesar disso, importa destacar que as CGVs como discurso político podem aprofundar as desigualdades no plano internacional. A inserção acrítica dos países em desenvolvimento nas CGVs só aprofunda clivagens nacionais e reforça a ideia de especialização dessas economias em setores de baixa complexidade tecnológica. Enquanto categoria analítica, as CGVs não incorporam aspectos políticos e estratégicos, centrais para a compreensão da hierarquia da economia global. Em outros termos, as CGVs não podem ser analisadas sem considerar o impacto que essa perspectiva tem sobre a manutenção de eventuais assimetrias entre os Estados. Segundo Isabela Nogueira (2015, p. 51),

A questão fundamental [...] é que, em uma escala nacional, a posição exclusiva de um país como produtor contratado de bens “commoditizados” e de baixo valor agregado não é uma posição desejável no longo prazo. [...] Não obstante, avançar da posição exclusiva de OEM37 é uma precondição para países que querem criar mais valor e,

36 No original: “[...] they provide relatively low cost ways of linking to international trade networks, and allow

countries to specialize in activities that are aligned with their comparative advantage. Developing countries can benefit through income and employment effects, even if they specialize in low value added activities, such as assembly.”

consequentemente, contribuir para o desenvolvimento econômico continuado das suas sociedades.

A visão baseada nas CGVs passou a compor o rol de diretrizes políticas e econômicas que emanava de instituições internacionais como o Banco Mundial. A infraestrutura, nesse contexto, inserida dentro da pauta de ampliação das capacidades logísticas, passa a ser vista como um elemento de alavancagem do crescimento econômico. Desde a integração dos espaços de obtenção de matérias-primas, commodities até a distribuição de produtos de alto valor agregado, passando pelo perfil de alocação da mão de obra, essa nova perspectiva sobre infraestrutura parte de uma visão fragmentada de uma rede nacional de produção, mas vinculada fisicamente aos centros da economia global. Assim, os países cujos complexos de infraestrutura não estivessem integrados aos mercados internacionais, corriam o risco de perder os alegados benefícios da globalização.

O Índice de Desempenho Logístico (LPI, acrônimo em inglês), organizado pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e pelo Banco Mundial (BM), reforça essa perspectiva de que a qualidade da capacidade logística de um país está assentada na estruturação de infraestrutura que fortaleça suas vantagens comparativas (ARVIS et al., 2014). Os benefícios do aumento de investimentos em infraestrutura costumam ser defendidos por todos os lados do espectro político, esquerda e direita, conservadores e liberais. Até mesmo a ideia de “custo Brasil”, difundida pelo consenso de Washington, defende a tese que o déficit logístico seria um entrave à competitividade do país, gerando prejuízos econômicos. Portanto, esse ideário não encontrou resistências para se disseminar no mundo em desenvolvimento.

A partir dessa visão utilitarista, a infraestrutura é vista como peça central para o crescimento econômico e apenas como parte da discussão sobre eficiência produtiva e econômica. Aqui, importa dizer que essa visão econômica se restringe à integração às redes globais de comércio, e não se refere-se a uma visão mais profunda de inserção internacional. Assim, sob a ótica neoutilitarista, o processo de decisão acerca dos projetos de infraestrutura passa pela “Análise Custo-Benefício” (CBA)38. Em grande medida, a CBA é entendida como uma ferramenta capaz de assegurar um consenso acerca da construção de um projeto de infraestrutura. Segundo Lewis e Currie (2018),

A primeira articulação da CBA como um processo analítico formal para avaliar o valor de projetos de capital em perspectiva foi apresentada em 1848 pelo engenheiro francês Jules Dupuit (1804-1866). O economista britânico Alfred Marshall (1842- 1924), considerado o pai da economia neoclássica, refinou a estrutura técnica de

Dupuit e estabeleceu os princípios formais que finalmente se tornaram o que conhecemos hoje como CBA (LEWIS; CURRIE, 2018 p. 97, tradução nossa39).

Apesar da origem em Dupuit e Marshall, o viés utilitarista tem suas raízes éticas e filosóficas em Edmund Burke (1729-1797) e operacionalizado sob a perspectiva econômica em Jeremy Bentham (1748-1832). A partir de Bentham, a utilidade passa estar no centro do exercício da razão de estado, já trabalhado em Burke. Bentham definiu como seu axioma central que a medida do certo e do errado estaria centrada no grau de felicidade do maior número de indivíduos (ARMITAGE, 2013). Assim, sob a perspectiva utilitarista, o objeto da ação governamental, tal como a CBA, está assentado no princípio ético da maior utilidade para o maior número de pessoas. De modo prático, a adoção do CBA como mecanismo crucial para escolha do perfil de uma paleta de projetos de infraestrutura não só afetou a caráter estratégico dos projetos de infraestrutura, como excluiu (ou restringiu) a incorporação de aspectos sociais no cálculo econômico.

Para o comércio, seja interno ou entre Estados, é fundamental que haja uma oferta adequada de estradas, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos, bem como de um sistema de comunicações – todos esses dependentes de energia para sua construção e funcionamento.

[...] infraestrutura dentro da concepção de “economia física” e seus desdobramentos sobre os poderes produtivos de uma nação, território ou espaço produtivo, conforme apresentada pelo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Nesta perspectiva, um adequado sistema de infraestrutura é fundamental para que uma economia opere de forma eficiente, potencializando sinergias sociais e liberando recursos (capital e energia, por exemplo) para serem empregados em outros setores e objetivos estratégicos, em favor do bem coletivo e em função especificamente da expansão do sistema econômico. Ao contribuir de forma similar ao progresso tecnológico, diminuindo custos e aumentando a produtividade e os recursos disponíveis através de sua eficiência, os investimentos no setor de infraestrutura não geram produtos, geram a própria produtividade – de forma não-linear e geralmente incomensurável (PADULA, 2011b, p. 269-270).

Os investimentos e a oferta adequada de infraestrutura trazem impactos positivos e de interesse social na produção, assim como maior competitividade, geração de empregos e renda, que se multiplicam por toda a economia, “constituindo o capital social básico sem o qual as demais atividades econômicas não podem funcionar” (PADULA, 2011a, p. 202). A visão neoutilitarista, que leva em consideração prioritariamente os custos, tende a encarar os investimentos em infraestrutura como oneração e endividamento no orçamento dos governos e, por isso, devem estar submetidos ao âmbito da iniciativa privada. Dessa forma, delega às forças

39 No original: “The earliest articulation of CBA as a formal analytical process for evaluating the worth of

prospective capital projects was presented in 1848 by French engineer Jules Dupuit (1804–66). British economist Alfred Marshall (1842–1924), considered the father of neoclassical economics, refined Dupuit’s technical framework and established the formal principles that ultimately became what we know today as CBA.”

do mercado e às instituições financeiras multilaterais a responsabilidade de decisão, planejamento e promoção de infraestrutura.

Na esfera da infraestrutura para a integração regional, essa ênfase dominante defende estritamente o seu papel na formação de uma área de livre-comércio regional e a sua conexão ao mercado global. Nesse sentido, ao interconectar de forma eficiente a produção regional aos mercados globais, reforça as complementaridades e vantagens comparativas estáticas dos países na divisão internacional do trabalho. Em outras palavras, a infraestrutura teria o papel primordial de voltar as regiões “para fora”, facilitando o comércio global, especialmente com os países do hemisfério norte, que são considerados os parceiros preferenciais.