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A análise dos dados

No documento Pedro da Cruz Almeida (páginas 88-96)

6. Metodologia

6.4. A análise dos dados

A escolha de um processo ou uma técnica de análise dos dados qualitativos obtidos numa investigação tem necessariamente em conta o enquadramento paradigmático do estudo, os seus objetivos e questões. Seguindo, este estudo, uma metodologia qualitativa de acordo com uma abordagem interpretativa, sem que tenham sido definidas a priori hipóteses explicativas do que se procurou observar e compreender, a análise dos dados recolhidos nas entrevistas e no diário de campo foi feita por meio de um processo de análise de conteúdo semelhante aos expostos por Guerra (2006) ou Hesse-Biber & Leavy (2011).

A definição do que é a análise de conteúdo sofreu evolução ao longo do tempo e assume características diferentes dependendo dos autores que a referem. Também os propósitos para que é utilizada e os processos que mobiliza são muito diversos e nem sempre foram entendidos da mesma maneira. Uma definição abrangente que se pode encontrar em Amado, Costa e Crusoé (2014) diz:

A análise de conteúdo stricto sensu define-se como uma técnica que possibilita o exame metódico, sistemático, objetivo e, em determinadas condições, quantitativo, do conteúdo de certos textos, com vista a classificar e a interpretar os seus elementos constitutivos e que não são totalmente acessíveis à leitura imediata. (pág. 304)

Laurence Bardin (1977) afirma que se trata de um instrumento “marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações” (pág. 31) e reconhece a necessária diversidade dos procedimentos de análise dependendo do tipo de documentação em análise e dos objetivos dos investigadores. No que toca a esta grande diversidade,

Hesse-Biber e Leavy (2011) vão mais longe ao afirmar que “There is no right way to go about analysis” (pág. 302), certamente no sentido de que não há uma receita única para se proceder à análise dos dados qualitativos.

Hesse-Biber e Leavy (2011) descrevem quatro fases no processo de análise de dados: a preparação dos dados, a exploração e redução dos dados e, finalmente, a interpretação. Estas quatro fases não são estanques, não se sucedem linearmente umas às outras, antes se interpenetram e fazem parte de um processo cíclico que vai desde a recolha de dados até à comunicação dos resultados da pesquisa.

A fase de preparação dos dados inclui a seleção do material que vai ser analisado e as questões que se prendem com a transcrição das entrevistas, trabalho este que, de um ponto de vista da investigação de carácter mais interpretativo, não é uma ação passiva, sobretudo quando é o investigador que faz a transcrição, sendo “um processo interativo [que] envolve o investigador numa escuta, análise e interpretação atenta” (pág. 304). Relativamente à transcrição das entrevistas registadas em vídeo/áudio, Guerra (2006) propõe três passos: primeiro, transcrever o que se entende deixando espaços em branco para o que não se ouve; segundo, rever a gravação e preencher as lacunas; terceiro, redigir um discurso inteligível com pontuação e supressão de elementos inúteis.

As fases de exploração e redução dos dados caminham lado a lado. Trata-se de uma fase de leituras reiteradas dos textos, assinalando partes importantes, resumindo-as e escrevendo memorandos com ideias que vão surgindo e que se confrontam com a literatura e outros dados. Trata- se de ganhar familiaridade com os dados e passar à codificação dos mesmos. A codificação consiste na segmentação do texto em partes significativas para as questões do estudo e na sua ‘etiquetagem’ de modo que se possam identificar temas, padrões, ideias e conceitos chave. A escrita de memorandos contribui para o processo de etiquetagem, para a integração de ideias e de relações dentro dos dados e para a constituição de categorias que agrupam ou separam os segmentos de texto de acordo com a codificação elaborada. Há, portanto, um processo cíclico de codificação e escrita de memorandos que possibilita um progresso na codificação, começando por códigos mais descritivos (próximos do texto) para chegar a códigos mais analíticos (interpretativos), constituindo categorias de conceitos- chave da análise.

A fase da interpretação dos dados não pode ser desligada das fases anteriores. O processo de interpretação pode começar desde cedo. A escrita de memorandos (que pode começar desde a recolha de dados) é um elo entre a análise e a interpretação, uma vez que permite ao investigador pensar sobre os dados que vai recolhendo, avaliando a pertinência e plausibilidade das ideias que lhe vão surgindo. O que Hesse-Biber e Leavy discutem nesta fase são questões que se prendem com a legitimidade da interpretação.

A Figura 11 mostra uma adaptação do modelo14 visual do processo de análise de dados

apresentado por Hesse-Biber e Leavy (2011, p. 317).

Figura 11:Modelo visual das fases da análise de dados (adapt. de Hesse-Biber & Leavy, 2011, p. 317). Guerra (2006) apresenta um processo de análise de conteúdo de entrevistas bastante semelhante em alguns aspetos. Distingue cinco passos: a transcrição, a leitura, a construção de sinopses, a análise descritiva e a análise interpretativa. Pode-se facilmente relacionar a leitura, a escrita das sinopses e a análise descritiva com as fases de exploração e redução de dados do modelo de Hesse-Biber e Leavy, na medida em que, para além da leitura e o sublinhar das partes significativas dos textos, a escrita de memorandos e codificação se relacionam com a escrita das sinopses e a análise descritiva e interpretativa. Guerra (2006) é simplesmente mais específica no que diz respeito à codificação i.e., à análise descritiva e à interpretativa. Pese o facto dos conceitos de memorando e sinopse serem bastante diferentes, na verdade eles cumprem praticamente o mesmo papel, o papel de indutor, de provocador ou promotor da codificação ou classificação dos dados, da sua redução e interpretação.

Na análise descritiva, que procura organizar e condensar o que é dito pelos entrevistados, Guerra (2006) diferencia análise tipológica, categorial e de temática aprofundada. Após o seccionamento do texto de acordo com o seu sentido, a análise tipológica é o reagrupamento das diferentes partes em classes exclusivas seguindo critérios de proximidade do significado. Diz-se que

14 As alterações ao modelo passaram apenas pela eliminação de aspetos pontuais que não se consideraram necessários para a sua compreensão.

as classes são exclusivas porque o que está incluído numa não está noutra. A análise categorial supõe a identificação de variáveis. Por exemplo, a categoria “do que gosto num problema” comporta uma variável que pode relacionar-se com um determinado fenómeno em estudo, no caso desta investigação, o tipo de problemas que formula livremente. Na análise de temática aprofundada “são identificados corpus centrais nas entrevistas a analisar em profundidade e, com recurso à identificação e à contagem de categorias e subcategorias, faz-se uma análise de conteúdo temática . . . e recompõem-se os fragmentos do discurso dispersos ao longo do texto” (pág. 83).

A análise interpretativa, de acordo com Guerra (2006), vai além da mera descrição, interrogando-se acerca da origem dos fenómenos à luz das questões do estudo e procurando o sentido subjacente à sua descrição. Pode passar por “conceber novos conceitos e avançar com proposições teóricas potencialmente explicativas do fenómeno que estuda”, o que, “no contexto de uma investigação compreensiva . . . não pretende fazer uma demonstração causal, mas sim defender a plausibilidade dos resultados” (pág. 83).

O conjunto dos registos reunidos, o diário de campo e as entrevistas transcritas, embora extensas, cuja transcrição exigiu um trabalho demorado, não constituíam um corpus que exigisse uma análise muito complexa. Entende-se aqui por análise complexa a que seria necessário fazer se as entrevistas contivessem um discurso extenso e denso, versando vários tópicos, ideias entretecidas e retomadas em diferentes partes do texto. No caso desta investigação o texto é bastante direto, só se tornou complexo quando o entrevistado foi pouco explícito, ou se expressou com pouca clareza em virtude da omissão de conteúdo supostamente subentendido. Aconteceu muitas vezes com o Ricardo. Os registos do diário e a transcrição das videogravações das entrevistas foram feitas em suporte eletrónico por meio de um processador de texto, isto é, não foi usado software próprio de transcrição.

A análise das entrevistas

Depois do trabalho de transcrição e apuramento do discurso (feito pelo investigador), o processo de análise começou pelo recorte do texto em unidades de registo, isto é, trechos dos diálogos que por si só constituíssem uma unidade de informação útil. Mesmo sabendo à partida o que procurar no discurso, discernir a codificação ou etiquetagem das unidades foi também um processo que se desenvolveu dialeticamente no decorrer do processo de recorte. Com exceção dos processos de formulação de problemas e do modo como o conhecimento matemático era mobilizado pelos alunos na invenção das perguntas ou contextos, poucos foram as categorias que tiveram de emergir no recorte do texto. O recorte do texto foi feito no próprio processador de texto recorrendo à ferramenta de inserção de tabelas. Cada unidade era inserida numa linha da tabela.

A Figura 12, na pág. 72, permite ter uma visão dos códigos que orientaram o recorte do texto das entrevistas e a constituição de unidades de registo com significado pertinente em função do

objetivo e questões do estudo, ou seja, tudo o que o investigador considerou poder ter relação com os problemas formulados pelos alunos.

Algumas abreviaturas foram usadas no diagrama da Figura 12 para designar os temas curriculares: “Geo” para o tema Geometria que está unido ao tema da Medida, com abreviatura “Med”, o tema da Organização e Tratamento de Dados, com a abreviatura “OTD”, e “NO” para o tema Números e Operações. A abreviatura “Cálc” refere-se ao cálculo que não é um tema no currículo de matemática do ensino básico.

As elipses indicam as ações significativas dos entrevistados no curso do diálogo. Distinguiram-se duas em que os participantes falam sobre algo, uma para a explicitação de factos, ideias ou opiniões e outra para a expressão de interesses ou gostos pessoais, e outras duas para a realização das tarefas: a) as de formulação de problemas, b) as de resolução dos problemas formulados (ou de um eventual problema recordado ou proposto pelo investigador).

As formas retangulares distinguem-se:

a) As que são efetivamente retângulos indicam os assuntos alvo das perguntas do investigador, sobre os quais se exprimiam as opiniões ou os juízos de valor.

b) As que estão arredondadas no lugar dos vértices apontam para os enunciados dos problemas. Verifica-se que para além de problemas formulados pelos alunos houve também problemas evocados de memória e um ou outro proposto pelo investigador. c) As que têm um vértice truncado remetem para as categorias de análise relativas aos

processos de formulação de problemas e das resoluções, ainda que tais categorias não estejam aí explicitadas. Pode-se ver que para a análise dos processos de formulação de problemas não havia categorias previamente definidas, estas emergiram dos dados.

Cada unidade de registo foi numerada numa coluna, o nome do entrevistado noutra, a data da entrevista outra e a etiquetagem noutra coluna. Isto permitia ordenar as unidades de registo por etiqueta, por aluno, por data, ou ainda pela combinação de várias, e voltar recompor a sequência do texto pela numeração das unidades. O agrupamento pelas etiquetas permitia discernir se o critério de etiquetagem tinha sido o mesmo para todos os entrevistados e fazer as correções necessárias. Muitas vezes foi necessário subdividir as unidades de registo inicialmente criadas e etiquetadas e especificar mais as etiquetas criando categorias mais estreitas. Uma sexta coluna foi depois criada para inserir excertos significativos do diálogo e uma interpretação do conteúdo de cada unidade. O facto de se poder agrupar, pela ordenação das unidades de acordo com a etiquetagem, a data da entrevista e o participante, possibilitava, ou melhor, potenciava a reflexão e a interpretação dos dados recolhidos, tanto numa visão global envolvendo todos os participantes como individualmente.

Numa segunda fase eliminou-se a coluna com o diálogo e passou a trabalhar-se só com a numeração das unidades, a etiquetagem e a interpretação. A Figura 13 mostra o resultado desta fase do processo.

Sobre este documento, usando as possibilidades de reordenação das unidades de sentido, fez- se uma escrita reflexiva usando tanto as categorias de análise definidas a priori como identificando categorias emergentes relativas aos processos de formulação de problemas.

A análise do diário

A análise do diário seguiu um procedimento semelhante ao das entrevistas, usando as mesmas ferramentas do processador de texto. O texto foi recortado em unidades de registo, numa tabela com as colunas de numeração das unidades, o texto propriamente dito, e as colunas destinadas à identificação das unidades. Foram usados três séries de códigos.

A primeira codificação contava com:

 Ambiente de sala – referências ao modo de trabalho (coletivo, de grupo, individual), ao ambiente “emocional” (tenso, descontraído, silencioso,…)

 Disposição dos alunos – esquema da disposição das mesas de trabalho e o lugar ocupado por cada aluno ou aluna

 Entrevistas – indicações e reflexões sobre as entrevistas realizadas

 Índice de entrada no diário – título, data, palavras-chave do conteúdo do registo daquele dia

 Número de dia – dados obtidos da observação em tempo real da atividade e reflexões correspondentes

 Professora – reflexões de qualquer espécie sobre a professora

 Reflexões sobre a investigação – sobre o andamento do trabalho, as preocupações,…  Seleção dos participantes – reflexões, critérios,… que diziam respeito à seleção dos

participantes

 Trabalho da turma – conteúdo curricular em trabalho na aula

 Reuniões com a professora – conteúdo das conversas tidas com a professora, mas que não encaixava nos códigos acima enunciados.

Uma segunda etiquetagem foi feita independente da primeira, numa nova coluna da tabela. Dizia respeito a tópicos de conhecimento matemático (ou não) em discussão na aula. Tinha em conta o conhecimento matemático observado (e eventualmente de outra disciplina).

 Geral – aspetos gerais da ação dos alunos relativamente a tópicos matemáticos ou outros

 Adição – processos de cálculo (excluindo o cálculo mental)  Divisão – idem

 Multiplicação – idem  Subtração – idem

 Cálculo mental – comentários sobre o desempenho dos participantes (e outros alunos), incluindo estratégias, quando explicitadas.

 Resolução de problemas – comentários ao modo de trabalho e ao tipo de problemas  Formulação de problemas – comentários às atividades de formulação observadas A terceira codificação, numa nova coluna, identificava o aluno que era mencionado nas unidades já criadas pelos outros códigos.

Tal como foi feito para as entrevistas, a manipulação da ferramenta de ordenação permitiu o agrupamento de categorias semelhantes e a extração da informação relevante.

No documento Pedro da Cruz Almeida (páginas 88-96)