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CAPÍTULO 1 – CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA DO DIREITO

1.3. A norma fundamental e os pressupostos do conhecimento do direito.

1.3.1. A Antinomia Jurisprudencial.

A chave para a dimensão normativista do pensamento de Hans Kelsen, que se abre com a norma fundamental, reside assim no que se pode entender como um argumento kantiano. Um argumento que pretende responder àquilo que Stanley Paulson53 descreveu como a antinomia jurisprudencial54, contra a qual Kelsen mobiliza toda a estratégia

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argumentativa que lhe é característica. Não que se trate a antinomia de qualquer tipo de argumentação expressamente formulada pelo teórico, mas sim de uma proposta de interpretação de Paulson, que tem por objetivo aclarar os fundamentos conceituais do pensamento de Kelsen, a partir do confronto de suas teses diretivas com as propostas contrárias presentes na tradição da teoria do direito.

Paulson55 aduz que sua intenção ao propor a ideia da antinomia consiste basicamente numa tentativa de expor as teses da TPD, que a distinguem tanto da teoria clássica do direito natural, quanto do positivismo jurídico tradicional, também conhecido como pseudo- positivismo. As linhas de força que primeiro opõem ambas as abordagens, contrastam num segundo momento com a epistemologia de Kelsen, a qual se esforça a todo o tempo para percorrer um caminho médio entre ambos os extremos que norteiam a ciência do direito desde os primórdios do pensamento ocidental.

Este percurso alternativo da TPD depende, como já pudemos antever, da depuração metodológica da ciência do direito, pois somente uma teoria da cognição jurídica ou do conhecimento do direito poderia libertar a jurisprudência da busca sem sentido por “elementos estranhos”, que a teriam conduzido à antinomia aparentemente insolúvel na qual ela se perdeu. Por isso Kelsen insiste repetidas vezes que a ciência jurídica deve se limitar com exclusividade ao conhecimento de um objeto dado, ou seja, ao conhecimento do direito propriamente dito, que se expressa na experiência jurídica tal como nós a conhecemos.

A ciência do direito deve se ocupar com o conhecimento do seu objeto e nada mais, a fim de descrevê-lo de acordo com as determinações internas de sua própria natureza, que não se confundem com qualquer elemento alternativo cuja investigação pode se encontrar a cargo, por exemplo, de disciplinas como a psicologia, a ética ou a teologia. Para compreender como a preocupação de Kelsen com as determinações do direito em geral, para além de suas infinitas variações históricas, se associa com a firme resistência do autor contra a interação da ciência jurídica com outros campos de conhecimento, é bastante expressivo o modo como o teórico alude56 a esses outros sistemas com seus ditos “elementos estranhos”:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – uma teoria geral do Direito, não uma apresentação ou interpretação de uma

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ordem jurídica especial. A partir de uma comparação de todos os fenômenos classificados sob o nome de Direito, procura descobrir a natureza do próprio Direito, determinar sua estrutura e suas formas típicas independentemente do conteúdo variável que apresenta em diferentes épocas e entre diferentes povos. Dessa maneira, ela deduz os princípios fundamentais por meio dos quais qualquer ordem jurídica pode ser compreendida. Como teoria, seu único propósito é conhecer seu objeto. Responde à questão do que é o Direito, não do que deve ser. Esta segunda questão é uma questão política, ao passo que a teoria pura do Direito é ciência. É chamada ‘pura’ porque procura excluir da cognição do Direito positivo todos os elementos estranhos a este. Os limites deste objeto e de sua cognição devem ser claramente fixados em dois sentidos: a ciência específica do Direito, a disciplina geralmente denominada jurisprudência, deve ser distinguida da filosofia da justiça, por um lado, e da sociologia, ou cognição da realidade social, por outro. (KELSEN, 2001, p.261).

Como destacado aqui, a alusão de Kelsen demonstra que sua preocupação com a depuração de todas as influências alheias à ciência jurídica e ligadas às demais disciplinas científicas, remete, por fim, à possível associação destas com duas abordagens dominantes que tradicionalmente competem entre si ao longo do tempo, no campo da filosofia e da teoria geral do direito. De modo específico, a TPD como ciência do direito, ou seja, como conhecimento sistemático e independente, deve se diferenciar de um lado da “filosofia da justiça” ao mesmo tempo em que, do outro, tampouco pode se identificar com a sociologia do direito, a dita “cognição da realidade social”. Ademais, não se pode ignorar que o projeto de construção de uma interpretação intermediária fora expressamente declarado por Kelsen desde a publicação da PCTJE, como cabe recordar:

Ya em esta primera obra nuestra nos esforzamos por assegurar la pureza de la teoria (...) De una parte, saliendo al paso de las pretensiones de la llamada consideración ‘sociológica’, la cual trata de captar el derecho como un fragmento de la realidade natural, con ayuda del método científico-causal. De outra parte, enfrentándonos com la teoria del derecho natural, que – ignorando el fundamento de las relaciones, que se dá única e exclusivamente en el derecho positivo – trata de arrancar la teoria del derecho del campo de las normas jurídicas positivas para llevarla al terreno de los postulados ético políticos. (KELSEN, 1987, p.XXXIX, itálicos no original).

Na leitura de Paulson57, a partir disso existem ao menos três pontos indicativos de uma estratégia geral de argumentação que perpassa toda a obra de Kelsen, sendo o primeiro deles um elemento de natureza histórica. Pois, em linhas gerais, assim como muitos outros, Kelsen interpreta a tradição histórica do pensamento ocidental essencialmente como determinada por dois tipos básicos de teoria acerca do fenômeno jurídico. Em suma, no campo da filosofia e da teoria geral do direito, se de um lado a leitura geral das chamadas teorias do jusnaturalismo pretende associar o conceito de direito a certos condicionantes morais absolutos, por outro, uma teoria dita empírica, sociológica ou pseudo-positivista, se orienta segundo o propósito de interpretar o direito como parte do mundo dos fatos ou da natureza.

Um segundo ponto, que na sequência emerge desta primeira constatação, adquire grande importância de ordem filosófica. Uma vez que a grande maioria daqueles que interpretam a tradição do pensamento jurídico nesses termos, consequentemente, reconhecem ainda que a perspectiva do jusnaturalismo e a teoria sociológica do pseudo-positivismo jurídico correspondem a duas abordagens do direito que são em si exaustivas e mutuamente excludentes. O que a rigor quer dizer que ambas as teorias eliminam toda possibilidade de uma terceira via (tertium non datur), a tal ponto que pretensas tentativas de superação da dualidade inevitavelmente acabariam por se revelar como meras versões disfarçadas de uma ou outra das posições supracitadas.

O terceiro ponto, que então estabelece a antinomia descrita por Paulson, reside na rejeição que Kelsen expressa por ambos os sistemas teóricos tradicionais. Porquanto as citações anteriores evidenciam que, no entendimento do autor, nem a teoria do direito natural e tampouco a teoria sociológica do pseudo-positivismo podem ser dignas de adesão. Seus respectivos proponentes ora confundem o direito com a moral, ora identificam o direito com a natureza dos fatos, cada um a seu modo deixando de perceber que o fenômeno jurídico, como objeto de conhecimento, possui sentido próprio58. Portanto, a antinomia jurisprudencial que impede a sistematização harmoniosa do pensamento jurídico nasce da conjunção do segundo com o terceiro ponto.

Afinal, quem quer que sustente que a ciência do direito tradicional se esgota na oposição entre dois modelos teóricos exaustivos e mutuamente excludentes, ao mesmo tempo

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em que toma por indefensáveis ambos os modelos, claramente incide em uma análise contraditória, ou seja, em uma antinomia sem a mínima perspectiva de resolução. Kelsen comprova a originalidade de seu pensamento quando pretende resolver o sobredito conflito voltando sua atenção para o primeiro ponto, com o intuito de demonstrar, em síntese, que os modelos teóricos tradicionais ancorados nos princípios do direito natural e da sociologia, respecivamente, não podem ser considerados como absolutamente exaustivos do campo de interpretação da ciência do direito. Há uma falsa antinomia e deve existir uma terceira alternativa intermediária, livre dos “elementos estranhos” ligados às perspectivas anteriores, uma teoria jurídica verdadeiramente pura.

O projeto kelseniano com isso deve fazer frente às duas teses bastante definidas que orientam as abordagens conflitantes da antinomia jurisprudencial, sendo que estas podem ser descritas, na expressão de Paulson59, como a tese da moralidade (jusnaturalismo) e a tese da separabilidade (pseudo-positivismo empírico). O conflito de ambas ganha vazão, como o pesquisador sugere, no diálogo paradigmático que Xenofonte60 descreve entre as personagens de Péricles e Alcebíades. A passagem histórica é ilustrativa da antinomia que Kelsen se propõe a enfrentar, pois no curso dos debates se desenham precisamente as linhas de força que engendram o conflito teórico tradicional, segundo a relação dialética entre tese e antítese:

Conta-se até que Alcebíades, nem vinte anos teria ainda, travara com Péricles, que além de seu tutor era também o chefe da cidade, uma conversa sobre leis e lhe teria perguntado assim:

- Diz-me lá, Péricles, serias capaz de me ensinar o que é a lei? - E com muito gosto.

- Então, ensina-me, pelos deuses, porque eu tenho ouvido louvar certos homens por respeitarem a lei e quer-me parecer que não seria justo que conseguisse tal louvor aquele que não saiba o que ela é, essa lei.

- Bom, não há qualquer dificuldade, Alcebíades, no que tu pretendes ao querer saber o que é a lei. Leis são, pois, todas as determinações que a maioria, reunida em plenário, aprova e promulga, determinando o que se deve fazer e o que não se deve fazer.

- E supõem que se deve fazer o que é bom ou o que é mau? - Por Zeus, rapaz, o que é bom! O que é mau, não.

- Ora, e então se em vez de a maioria, fossem só uns poucos (como acontece nas oligarquias) a reunir-se para promulgar o que é preciso fazer, o que é que tínhamos?

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- Tudo quanto o poder da cidade decidir que é preciso fazer e promulgar chama-se lei.

- Então um tirano, uma vez que detém o poder da cidade, pode promulgar o que é preciso que os seus cidadãos façam e essas disposições serão consideradas leis?

- Exactamente, as disposições que um tirano, enquanto soberano, promulgar chamar-se-ão leis também.

- Mas, então – estranhou ele -, a força e a negação da lei o que são, Péricles? Não é antes um modo de aquele que detém o poder, não pela persuasão mas pela força, obrigar o mais fraco a fazer o que ele quiser?

- Eu penso assim – anuiu Péricles.

- Então, afinal, essas disposições que o tirano promulga para fazer cumprir pelos seus cidadãos, sem recorrer à persuasão, não são a negação da lei?

- Julgo que sim e esta minha interpretação invalida de facto o que antes disse, que as disposições que o tirano promulga, sem recorrer à persuasão, também possam ser leis.

- Então, e as disposições que os oligarcas promulgam, não porque convenceram todos os outros mas porque detêm o poder, chamamos também violência, ou não?

- Acho que tudo quanto alguém, sem recorrer à persuasão, obriga outro a fazer, promulgado ou não, se chama violência e não lei. - Então as disposições que a maioria promulgar, não pela persuasão mas exercendo o poder sobre os que têm posses, serão também mais violência do que lei, não?

- Sabes que mais Alcebíades? Com a tua idade qualquer um de nós era muito hábil nestas questões; e também estudávamos e aprofundávamos assuntos, como esses que agora me parecem preocupar-te.

E Alcebíades terá rematado assim:

- Ah! Bem gostava eu, então, de ter convivido contigo, Péricles, na época em que eras mais hábil nestas questões! (XENOFONTE, 2009, p.80/82, itálico no original).

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Péricles inicia o diálogo confiante, asseverando ser a lei ou o direito “todas as determinações que a maioria, reunida em plenário, aprova e promulga”. Mas dirigido pelos questionamentos de Alcebíades, contudo, o mesmo é logo levado a afirmar que a promulgação pelo órgão competente seria suficiente por si mesma para garantir o caráter jurídico de todas as prescrições institucionais, mesmo que seja uma minoria ou um déspota o órgão encarregado de determinar o que se deve ou não se deve fazer. Do que resulta que Péricles, como observa Paulson61, parece dizer que o conceio de direito corresponde àquele da expressão institucionalizada das relações de poder de fato existentes, ao que Alcebíades se

contrapõe demonstrando que o mestre fora longe demais. Péricles percebe que cruzou uma divisa problemática e rapidamente recua perante as provocações do discípulo.

Fica claro que o desafio de Alcebíades se dá nos termos de uma reflexão moral. A lei somente será justa, caso o governante tenha o direito de promulgá-la, um direito que ele só adquire quando os cidadãos são persuadidos a obedecer, ou seja, quando o poder da autoridade política se estabelece pelo convencimento e não pela força. Nesta última hipótese, as determinações do governante, uma vez dissociadas do consenso geral, violam a autonomia dos indivíduos, na qual se funda a moralidade social.

A posição de Alcebíades é representativa da já indicada tese da moralidade (jusnaturalismo). O postulado expressa a ideia de que a natureza do direito apenas se explica essencialmente em termos morais, sendo que a expressão de Paulson62, em outras palavras, traduz o princípio da chamada inseparabilidade entre direito e moral, a contrastar com o posicionamento seguinte que lhe é antitético.

A antítese em si, que se afirma na tese da separabilidade (pseudo-positivismo empírico), caminha obviamente no sentido oposto, paralelo ao raciocínio de Péricles, no momento em que o personagem defende não ser o direito nada mais do que uma expressão do poder político constituído de fato. Ao que vale observar, contra um equívoco comum, que a separação propugnada não equivale à negação absoluta de toda e qualquer relação entre direito e moral, indicando apenas que esta não é uma relação de ordem conceitual ou a priori. O direito que contradiz certos preceitos morais não será assim “menos direito” ou a “negação do direito”, pois a essência do jurídico, que garante sua independência frente à moral, antes de qualquer valor, passa a depender da real satisfação das determinações impostas pelo ambiente institucional de produção do direito.

Kelsen partilha do entendimento de que a oposição entre as duas teses antitéticas da moralidade e da separabilidade é incompleta, não dando conta da complexa natureza do fenômeno jurídico. A originalidade da profunda análise crítica do autor está associada à percepção de que a antinomia em si é falsa, pois Kelsen ataca diretamente não o segundo ou o terceiro, mas logo o primeiro dos pontos levantados. Para o autor, o problema da experiência jurídica não se resume apenas na relação do direito com os valores, que opõe a tese da moralidade à tese da separabilidade, uma vez que a ciência jurídica deve lidar também com o problema das relações entre o direito e os fatos. Quando esse segunda questão passa a ser

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reconhecida, a antinomia desaparece diante do desvelamento de ao menos mais duas teses sobre a natureza do direito, alheias àqueles antigos postulados até então dominantes.

A partir da problemática relação do direito com seu contexto factual serão gestadas enfim tanto a tese reducionista, que no limite equipara o direito às suas determinações factuais, basicamente pregando a absoluta inseparabilidade entre o direito e o fato; quanto a tese da normatividade, talvez a grande conquista de Kelsen, que defende a completa separação entre direito e fato, sem se confundir propriamente com a tese da moralidade. O normativismo kelseniano com isso interpreta o direito como um objeto ideal, porém não no sentido de algo perfeito e definitivo, mas sim enquanto uma representação conceitual contraposta aos fatos, análoga a tantos outros objetos ideais como aqueles com que trabalha a geometria, por exemplo. Por meio dessa perspectiva singular, Kelsen pretende superar o empirismo característico do pseudo-positivismo, sem recair no idealismo absoluto da abordagem jusnaturalista.

Buscando expor a articulação própria do projeto kelseniano, o esquematismo de Paulson63 ilustra as possibilidades decorrentes da conjugação das teses sobre direito e fato (tese da normatividade e tese reducionista), com os postulados tradicionais acerca da relação entre direito e moral (tese da moralidade e tese da separabilidade).

Direito e Fato Direito e

Moralidade

Tese da normatividade (Separação entre Direito e

Fato) Tese reducionista (Inseparabilidade entre Direito e Fato) Tese da moralidade (Inseparabilidade entre Direito e Moral) Jusnaturalismo Tese da separabilidade (Separação entre Direito e

Moral)

Teoria Pura do Direito Pseudo-positivismo empírico

As teses listadas verticalmente especificam as possíveis abordagens da relação entre direito e moral, ao passo que as teses organizadas na linha horizontal indicam as alternativas possíveis para a relação entre direito e fato. De modo geral, cada qual das teorias tradicionais

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pode então ser caracterizada por uma interpretação própria de ambos os problemas. O jusnaturalismo, via de regra, une a tese da moralidade com a tese da normatividade, concluindo que há apenas um direito justo (uma representação conceitual perfeita e absoluta da experiência jurídica), mesmo que este não se manifeste diretamente no contexto fático das instituições sociais. No extremo oposto, o pseudo-positivismo empírico se autocompreende na junção da tese reducionista com a tese da separabilidade, ou seja, a experiência jurídica se define pelo fato social ou pela pragmática da produção do direito no plano material da ordem política, sem qualquer relação direta com algum valor moral específico.

A TPD como projeto epistemológico, guarda o propósito de unificar a tese da normatividade com a tese da separabilidade, na medida em que reconhece o direito como representação conceitual que orienta a ação na esfera dos fatos sem se identificar com o agir propriamente dito (tese da normatividade), ao mesmo tempo em que o princípio formal da experiência jurídica não se confunde com o variado conteúdo material da moral (tese da separabilidade) que a filosofia relativista dos valores identifica. O último quadro da tabela sem surpresa permanece vazio, porquanto se a tese da moralidade tradicionalmente interpreta a experiência jurídica nos termos de um valor moral absoluto, cuja validade independende de toda determinação fática, sua eventual conexão com a tese reducionista que “naturaliza” o direito, na expressão de Paulson64, simplesmente redundaria numa contradição em termos.

Em conclusão, o esquema ilustra o caminho original que Kelsen propõe para a resolução da antinomia jurisprudencial. Com a introdução das duas teses adicionais, concernentes à relação entre direito e fato, Kelsen nega que a oposição tradicional entre direito e moral possa genuinamente corresponder à exaustiva contradição de uma antinomia. Ao contrário, diante ao menos de quatro posições possíveis, que relacionam o direito às determinações morais e aos fatos propriamente ditos, abre-se para a ciência jurídica também o caminho médio da neutralidade moral, mediante a perspectiva normativista da TPD.

1.3.2. Ser e Dever-ser

A resolução da antinomia jurisprudencial tal como formulada por Kelsen pressupõe em termos teóricos a já referida tese da separação absoluta entre ser e dever-ser, de nítida inspiração kantiana65, que remete ao problema do hiato entre fato e valor. Nesse sentido, o direito deve ser concebido como uma representação conceitual independente dos fatos,

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sobretudo porque estes jamais conduzem ao valor, ou seja, a percepção individual do estado presente da natureza e da sociedade, tal como ele é, não induz automaticamente a experiência do valor de que este conjunto factual deve ser assim; que as coisas são tal como devem ser. Sem que se tenha demonstrado até o momento a viabilidade de uma conexão conceitual, o valor - a percepção de que algo não só existe, mas existe como algo correto ou devido - parece sempre constituir-se de modo independente, ainda que paralelo aos fatos, pelo que a tese metodológica da irredutibilidade entre ser e dever-ser eleva-se ao nível da condição de possibilidade do projeto epistemológico por meio do qual Kelsen pretende superar a antinomia jurisprudencial.

Tanto que a dicotomia entre ser e dever-ser faz parte, por assim dizer, do repertório padrão do autor, que recorre à tese desde seu trabalho inaugural com os PCTJE, no ano de