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CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS

2.1. Epistemologia e teoria social em Kelsen

Nada obstante o significativo papel da investigação epistemológica no plano da teoria do direito de Kelsen, consoante a análise do capítulo anterior, o fato é que o autor avança ainda mais e assume o problema do conhecimento como questão previa também no âmbito da teoria política. O que nos fornece indicativos substanciais sobre a intensidade com que certos compromissos epistemológicos condicionam o pensamento kelseniano na esfera de sua teoria social como um todo, até mesmo porque se esta ostenta alguma pretensão analítica de sistematização científica, no plano jurídico-político, ela jamais poderia prescindir de certas representações conceituais cuja legitimidade enquanto fonte de conhecimento deve então ser previamente assegurada.

Talvez em nenhum outro momento como ao longo de suas conferências sobre a democracia94 Kelsen tenha explicitado de modo tão claro sua posição acerca deste ônus argumentativo prévio, que a teoria do conhecimento parece impor tanto no que tange à teoria do direito, quanto no que diz respeito à teoria política. O que antes de tudo corrobora, uma vez mais, o modo como o jurista e o político, na multifacetada obra do autor, se postam ambos sempre na dependência do epistemólogo, o qual com suas proposições invalida aquela expressiva parcela da crítica tendente por vezes a contestar os dois primeiros, sem medir-se diretamente com este último. Pois o pensamento jurídico-político de Kelsen não dispensa o recurso ao crivo analítico da epistemologia para subsidiar suas teses centrais:

Desde que Aristóteles apresentou sua Política como a segunda parte de um tratado cuja primeira parte era a Ética, a estreita ligação entre a teoria política e aquela parte da filosofia a que chamamos ‘ética’ tornou-se ponto pacífico. Mas também existe uma certa afinidade, menos reconhecida em termos gerais, entre a teoria política e outras partes da filosofia, como, por exemplo, a epistemologia, ou seja, a teoria do conhecimento, e a teoria dos valores. O principal problema da teoria política é a relação entre o sujeito e o objeto de dominação; o principal problema da epistemologia é a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. O processo de dominação não é tão diferente do processo de conhecimento, através do qual o sujeito, ao instaurar

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alguma ordem no caos das percepções sensoriais, tenta dominar o seu objeto; e não está muito longe do processo de avaliação, através do qual o sujeito declara que um objeto é bom ou mau, colocando, assim, o mesmo julgamento. É exatamente na esfera da epistemologia e da teoria dos valores que se situa o antagonismo entre absolutismo filosófico e relativismo filosófico, o qual – como tentarei demonstrar – é análogo ao antagonismo entre autocracia e democracia enquanto representantes, respectivamente, do absolutismo político e do relativismo político. (KELSEN, 2000, p.161/162, itálicos no original). Nesse sentido, sendo o paralelo entre direito e epistemologia um pressuposto explicíto dos trabalhos jurídicos do autor, sobretudo no caso da TPD, na sequência o Kelsen teórico da politica busca agora estabelecer uma analogia entre a teoria do conhecimento, o pensamento político e a ética, referida na citada passagem como teoria dos valores. De um modo geral, portanto, o autor não esconde a intenção de relacionar as contribuições da epistemologia, em alguma medida, com os três grandes campos de circunscrição analítica da teoria social, a saber, o direito, a ética e a política. Uma analogia que se justifica, em essência, a partir do paralelo estabelecido entre o sujeito e o objeto de conhecimento (epistemologia), e o sujeito e o objeto da dominação (política) ou também o sujeito e o objeto da avaliação (ética).

Kelsen reitera que não se trata de identificar absolutamente uma mesma espécie de relação em todos os casos, mas sim de estabelecer uma analogia que pretende buscar as possíveis interlocuções entre os pressupostos epistemológicos e as concepções tradicionais que orientam as múltiplas vertentes ético-jurídico-políticas de interação social. Afinal, tanto no âmbito da epistemologia, quanto na esfera de qualquer dos sobreditos segmentos da teoria social, devem ser consideradas necessariamente as condições da relação entre o sujeito e seu objeto. O que implica que: “(...) a disposição original deste [do sujeito], deve exercer uma influência decisiva sobre a formação das concepções a respeito de sua relação com o objeto de dominação, bem como com o de conhecimento e avaliação” (KELSEN, 2000, p.162).

O autor se permite asseverar inclusive, na mesma oportunidade, que a raiz comum do credo político e da convicção filosófica deve encontrar-se possivelmente na natureza do ego, ou seja, no modo como esse ego experimenta a si mesmo em sua relação com o outro, que também reivindica a mesma condição de ego, paralelamente à relação que se estabelece com a coisa ou o objeto que já não faz esse tipo de reivindicação. Kelsen parece querer acreditar que somente assim, diante das peculiaridades da mente humana, que determinam o processo de conhecimento, se poderia enfim compreender o antagonismo tão angustiante entre os diversos

sistemas da ordenação jurídico-política global. E mais ainda, se a epistemologia em alguma medida for capaz ao menos de sinalizar uma possível dissolução das concepções absolutas e autocentradas do ego, este mero indicativo, ainda que frágil, invariavelmente não deixaria de se revestir de monumental importância prática, na medida em que pode carregar consigo uma aspiração de compreensão mútua universal, por meio do desvelamento do processo cognitivo de inclusão do outro.

Ao mesmo tempo, seria por certo inviável esperar que as visões de mundo conflitantes que marcam a teoria social sempre e em toda parte estivessem associadas ao sistema teórico-epistemológico correspondente, sobretudo em face das constrições externas e dos conflitos internos do ego, frequentemente capazes de dissociar o juízo político e social das determinações racionais95. Mas, por outro lado, Kelsen (2000, p.163) reconhece que ao longo da história do pensamento a relação entre a política e a especulação filosófica sobre o conhecimento pode ser demonstrada mediante a análise da obra de pensadores representativos, ainda que os filósofos por vezes não desenvolvam expressamente suas inclinações políticas, assim como os teóricos da política, conscientes ou não, mais de uma vez tenham deixado de explicitar os pressupostos diretivos de suas indagações (KELSEN, 2000, p.164).

A proposta de Kelsen objetiva apenas e tão somente uma tipologia bastante geral, que tem o intuito de combinar ou aproximar as conclusões de ambos os lados, relacionando os resultados da epistemologia com aqueles da teoria social como um todo (direito, ética e política). No cumprimento deste desiderato, o teórico conclui que a aproximação se torna possível especialmente a partir de duas categorizações gerais, que condicionam o pensamento social ao mesmo tempo em que refletem dois grandes modelos epistemológicos distintos e mutuamente excludentes. No caso, Kelsen descreve ambos os paradigmas antitéticos sob a rubrica do absolutismo e do relativismo filosófico:

O absolutismo filosófico é a concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta, isto é, uma realidade que existe independentemente do conhecimento humano. Consequentemente, sua existência está além do espaço e do tempo, dimensões às quais se restringe o conhecimento humano. O relativismo filosófico, por outro

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lado, defende a doutrina empírica de que a realidade só existe na esfera do conhecimento humano, e que, enquanto objeto do conhecimento, a realidade é relativa ao sujeito cognoscitivo. O absoluto, a coisa em si, está além da experiência humana; é inacessível ao entendimento humano e, portanto, impossível de ser conhecido. (KELSEN, 2000, p.164).

Não seria difícil identificar que, sob a ótica do absolutismo filosófico, todos os juízos do conhecimento científico somente podem aspirar a qualquer pretensão de verdade no sentido da correspondência absoluta de suas proposições com o objeto descrito, uma vez pressuposto que a descrição simplesmente não pode interferir na constituição do objeto, desde que este existe de modo independente e sem nenhuma relação com o sujeito que o conhece.

Da exposição do capítulo anterior se depreende que Kelsen abertamente rejeita a perspectiva do absolutismo filosófico, sobretudo porque a recondução das determinações universais da experiência jurídica à categoria geral do sistema de normas coercitivas da conduta humana tem na filosofia relativista dos valores uma de suas condições de possibilidade. Porém, neste momento, Kelsen considera também o relativismo de um ponto de vista geral, no qual todo objeto se apresenta como tal apenas em relação a um sujeito capaz de conhecê-lo. Diante disso, enquanto o absolutismo filosófico pressupõe que a função do conhecimento seria simplesmente refletir os objetos, como num espelho, no extremo oposto: “(...) a epistemologia relativista, na apresentação mais consistente que dela faz Kant, interpreta o processo de conhecimento como criação de seu objeto” (KELSEN, 2000, p.165).

No processo de conhecimento, à luz da perspectiva relativista, o homem se relaciona de fato não com o objeto em si, mas com a representação que seu próprio intelecto estabelece acerca do objeto, o que torna o sujeito, nesse sentido, o criador do “mundo” da percepção, que assim somente existe em relação ao homem, de forma que o conjunto de todas as nossas representações – logo, o “mundo” – passa a existir e ganhar sentido apenas relativamente àquele que o conhece. Sendo importante notar que Kelsen, assim como Kant, pensa não em uma criação ex nihilo do objeto, análoga à criação divina do pensamento teológico, mas alude sim à criação das representações no processo de conhecimento por meio de: “(...) leis normativas que determinam esse processo” (KELSEN, 2000, p.165). Mais especificamente, por meio de normas que: “(...) se originam da mente humana, tendo o sujeito do conhecimento por legislador autônomo” (KELSEN, 2000, p.165).

Ao agir de acordo com essas normas o conhecimento racional da realidade – em oposição à expressão das emoções subjetivas, a base dos juízos de valor – se converte em um

conhecimento objetivo. Nesse sentido se compreende a preocupação obsessiva de Kelsen com a questão metodológica, haja vista que à luz dessa perspectiva a objetividade do conhecimento em geral, e do conhecimento jurídico em particular, depende necessariamente da observância estrita das leis do pensamento racional (KELSEN, 2000, p.167), unicamente sob as quais o objeto de fato se constitui como tal perante o sujeito que conhece. Portanto, a teoria relativista pressupõe a liberdade do sujeito cognoscitivo, porém uma liberdade necessariamente relativa, restrita pela determinação epistemológica de normas gerais que tem sede na razão96.

Contudo, duas substanciais objeções ao relativismo epistemológico de matriz kantiana não eram desconhecidas do autor, que as considerou detidamente e buscou esclarecer sua posição a respeito:

O caráter específico da teoria relativista do conhecimento envolve dois perigos. O primeiro deles é um solipsismo paradoxal, a saber, o pressuposto de que, enquanto sujeito do conhecimento, o ego é a única realidade existente, a impossibilidade de reconhecer a existência simultânea de outros egos, a negação egotista do tu. Esse pressuposto envolveria a epistemologia relativista em uma autocontradição. Pois, se o ego é a única realidade existente deve constituir uma realidade absoluta. O solipsismo irrefutável é também um absolutismo filosófico. O outro perigo é um pluralismo não menos paradoxal. Uma vez que o mundo somente existe no conhecimento do sujeito, de acordo com essa concepção, o ego é, por assim dizer, o centro de seu próprio mundo. Se, no entanto, a existência de muitos egos deve ser admitida, parece inevitável a consequência de que tantos mundos existem quantos são os sujeitos cognoscitivos. O relativismo filosófico evita deliberadamente o solipsismo e o pluralismo. Levando em consideração – como verdadeiro relativismo – as relações mútuas entre os diversos sujeitos do conhecimento, essa teoria compensa sua incapacidade em assegurar a existência objetiva de um mesmo mundo para todos os sujeitos através do pressuposto de que os indivíduos, enquanto sujeitos do conhecimento, são iguais. (KELSEN, 2000, p.166).

A partir dos argumentos expostos se podem inferir as determinações cardinais do projeto epistemológico de Kelsen, a saber, a idealização de uma teoria do conhecimento pautada (1) na perspectiva do relativismo filosófico, no qual os objetos devem ser

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considerados necessariamente em relação às categorias gerais da racionalidade, constitutivas do processo cognitivo do sujeito; que se soma à rejeição em duas frentes do (2) solipsismo autocentrado, que nega o outro como sujeito de conhecimento, flertanto com o absolutismo do ego; juntamente com o afastamento do (3) pluralismo paradoxal, que impede asserções objetivas sobre o mundo, se não pressupõe um mínimo de igualdade entre os sujeitos no tocante a certas determinações gerais da cognição.

Uma vez assumida a prevalência da perspectiva epistemológica em Kelsen, resta claro que toda e qualquer discussão acerca do conteúdo da TGN, no contexto do pensamento do autor, deve antes ser pensada à luz dos postulados que compõem este projeto juspositivista do teórico, no plano da teoria do conhecimento. De rigor, discorrer sobre a contituidade ou ruptura na obra de Hans Kelsen significa, antes de tudo, discutir a continuidade ou não do citado projeto epistemológico.

Esse programa teórico também pode, alternativamente, ser descrito na forma das quatro teses metodológicas elencadas por Gabriel Nogueira Dias (2010, p.141/159), com o intuito de esboçar as linhas mestras da “cartilha jurídico-científica” Kelsen. O projeto epistemológico do normativismo juspositivista, basicamente, deveria se amparar sob os seguintes princípios: (1) Todo direito é direito positivo, secundum non datur; (2) O primado do relativismo; (3) Ser e dever-ser como modos de conhecimento; e, por fim, (4) a tese da pureza metodológica como garantia da objetividade de uma ciência do direito independente e autônoma.

Não que este projeto metodológico se identifique propriamente com o produto dele resultante, pois não há necessária equivalência no pensamento de Kelsen entre projeto e produto, alter ego e ego, ideia e realização (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.141). O projeto se presta apenas a lançar as bases metodológicas de uma teoria geral do direito, que será desenvolvida posteriormente à luz deste “plano de trabalho”, com a consequente avaliação e rearticulação dos resultados apresentados em face do programa original. De tal maneira que, diante do projeto juspositivista de Kelsen como um todo, por mais que se identifique uma revisão constante na forma e no conteúdo de sua teoria geral do direito, desde 1911 até 1979, existe ao mesmo tempo o traço constante de que: “(...) o seu projeto – ou, por assim dizer, a sua ambientação metodológica – ficou inalterado” (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.321).

Como foi apontado no capítulo precedente, o problema da contradição normativa coloca Kelsen em conflito com os postulados de seu programa metodológico, sobretudo em vista da adesão do autor aos princípios constitutivos da unidade e da coerência das

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representações cognitivas, que denunciam seus evidentes compromissos epistemológicos com a filosofia crítico-trancendental. Cabe então perguntar até que ponto o recurso final à teoria das ficções se adequa ou não ao programa metodológico de Kelsen, sem que, por ventura, esta nova articulação também conduza a um novo conflito entre as teses de seu modelo epistemológico.

Nesse sentido, uma investigação sobre os fundamentos epistemológicos do pensamento crítico, no contexto da filosofia contemporânea, pode demonstrar que o projeto epistemológico-relativista de Kelsen talvez se realize de fato apenas na TGN, sobretudo caso o caráter ficcional da representação do ordenamento jurídico possa ser pensado como um processo de relativização do a priori, descrito por algumas das análises mais atuais que se têm consolidado no campo da teoria do conhecimento.