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CAPÍTULO 1 – CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA DO DIREITO

1.3. A norma fundamental e os pressupostos do conhecimento do direito.

1.3.3. Direito e Lógica

O tema naturalmente dá ensejo ao apontamento de algumas dificuldades decorrentes da problemática relação entre direito e lógica na TPD, sobretudo em face do dito “logicismo” ao qual com frequência se alude na descrição do pensamento de Kelsen, sem se considerar o uso nem sempre preciso que termos como “lógica” ou “lógico-formal” adquirem nos trabalhos do autor. De fato, somente em uma fase bastante avançada de seu pensamento, no final dos anos 50 (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.267), Kelsen se empenha realmente em delimitar o alcance semântico desses termos, recorrendo para tanto à separação antes referida entre as proposições descritivas da ciência do direito (Sollsätze) e as normas jurídicas (Sollnormen) prescritivas por natureza75.

Em se tratando das relações entre direito e lógica, a distinção é de suma importância, em primeiro lugar, porque desmistifica a ideia de que Kelsen buscaria de alguma forma a

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dedução lógica de certas normas jurídicas a partir de outras, quando a bem da verdade o autor jamais aplicou ou pretendeu aplicar diretamente qualquer espécie de silogismo às normas jurídicas (NOGUEIRA DIAS, 2010, p. 269). Mesmo no auge de sua dita fase clássica, com a publicação da segunda edição da TPD, o teórico se permite no máximo uma possível aplicação indireta das regras da dedução lógica ao direito, na medida em que defende serem estas regras aplicáveis apenas aos enunciados com que a ciência jurídica descreve as normas (Sollsätze), porém não às prescrições normativas em si (Sollnormen).

Sua posição tradicional, portanto, é a de que as normas jurídicas não se submetem às determinações lógicas simplesmente porque não podem ser verdadeiras ou falsas, mas sim válidas ou inválidas. A norma ou “existe” e é vigente (válida) como representação conceitual independente dos fatos, regulamentando objetivamente aquilo que deve-ser, ou do contrário ela simplesmente “inexiste” no plano jurídico, devendo ser descartada como uma prescrição invalida que não pode ser conhecida como direito, inobstante qualquer eventual conteúdo político, moral ou sociológico.

Neste primeiro momento, o conceito de validade em Kelsen remete sempre à existência específica da norma como objeto ideal, ou seja, como um conceito independente dos fatos, que garante a autonomia da perspectiva jurídica contra toda sorte de abordagens causais, todas ligadas em última instância à orientação metodológica das ciências da natureza. Nesse sentido:

Com a palavra ‘vigência’ designamos a existência específica de uma norma. Quando descrevemos o sentido ou o significado de um ato normativo dizemos que, com o ato em questão, uma qualquer conduta humana é preceituada, ordenada, prescrita, exigida, proibida; ou então consentida, permitida ou facultada. Se, como acima propusemos, empregarmos a palavra ‘dever-ser’ num sentido que abranja todas essas significações, podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou não deve ser, deve ou não deve ser feita. Se designarmos a existência específica da norma como sua ‘vigência’, damos desta forma expressão à maneira particular pela qual a norma – diferentemente do ser dos fatos naturais – nos é dada ou se nos apresenta. A ‘existência’ da norma postiva, a sua vigência, é diferente do ato de vontade de que ela é o sentido objetivo. A norma pode valer (ser vigente) quando o ato de vontade do qual ela constitui o sentido já não existe. (KELSEN, 2006, p.11).

Por conseguinte, os condicionantes lógicos da dedução podem ser aplicados não às normas, porém às proposições que descrevem estas normas. De rigor, a lógica no campo do direito, do ponto de vista da TPD, se aplica então unicamente à Sollsätze e nunca à

Sollnormen. Sendo que a alternativa de Kelsen, para viabilizar o silogismo jurídico, consiste em asseverar que eventuais operações lógicas ao nível das primeiras (proposições jurídicas), poderiam de certa forma gerar consequências reflexas no plano das segundas (normas jurídicas), chegando-se por isso, quando muito, à ideia de uma aplicação indireta da lógica ao direito, como fora anteriormente destacado. A “duplicação” do material jurídico, promovida pela construção teórica das proposições descritivas da ciência jurídica, tampouco poderia ser descartada como atividade supérflua, porquanto a construção deste sistema “artificial” de enunciados se faz necessária justamente na medida em que este funciona como um meio de conexão capaz de intermediar a aplicação dos referidos princípios lógicos ao direito.

Na década de 60, o problema se apresenta com clareza para Kelsen (2006, p.83), perguntando o autor como seria possível que princípios lógicos, como o postulado da não contradição e as regras do silogismo, tradicionalmente aplicáveis apenas na verificação da veracidade de enunciados e proposições, pudessem autorizar o mesmo raciocínio lógico a partir de prescrições jurídicas com evidente natureza deontológica (dever-ser). No entendimento do teórico, portanto, somente com a “conversão” das prescrições normativas do direito, nos enuncados descritivos da ciência jurídica, se poderia admitir por via reflexa uma análise lógica do direito. Eis a resposta:

(...) os princípios lógicos podem ser, senão direta, indiretamente, aplicados às normas jurídicas, na medida em que podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem estas normas e que, por sua vez, podem ser verdadeiras ou falsas. Duas normas jurídicas contradizem-se e não podem, por isso, ser afirmadas simultaneamente como válidas quando as proposições jurídicas que as descrevem se contradizem; e uma norma jurídica pode ser deduzida de uma outra quando as proposições jurídicas que as descrevem podem entrar num silogismo lógico. (KELSEN, 2006, p.84).

Essa afirmação, contra todas as expectativas, corrobora a tese de que Kelsen não pode ser visto como adepto de uma lógica jurídica, a não ser que sua posição a esse respeito seja apreciada no contexto de tantas outras considerações, merecendo, por conseguinte, ser bastante relativizadas76. A própria referência de termos como “lógica” ou “lógico-formal”,

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não remetem automaticamente a um aprofundamento do autor na questão da aplicabilidade de categorias lógicas ao direito. Pois talvez, mais até do que a tentativa de fundamentação da possibilidade do silogismo jurídico, a preocupação lógica de Kelsen parece se expressar, em primeiro lugar, na investigação da aplicabilidade do princípio da não contradição ao conhecimento do direito.

Afinal, no momento em que a atividade do cientista do direito adquire caráter constitutivo no plano epistemológico e o ordenamento jurídico, como tal, ganha sentido e passa a se definir somente a partir da representação teórica do sistema de conhecimentos elaborados pelo jurista, se afigura evidente que este sistema conceitual não pode conter em si elementos contraditórios. Em linhas gerais: “Kelsen classifica expressões como ‘lógica’, ‘lógico’, ‘lógico-formal’, ‘logicidade’ e etc., como unidade ou ausência de contradição i.e. como sinônimo de um todo dotado de sentido não contraditório” (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.268). Sendo que o teórico se apoia no conceito estrito e pragmático da contradição teleológica de normas, ou seja, o jurista, no processo de construção teórica do ordenamento, não pode admitir como válidas proposições que descrevam, ao mesmo tempo, normas como “X deve ser” e “X deve não ser”.

No plano material, como toda norma pressupõe um ato de vontade que a positiva, conforme a correlação de sentido que se estabelece entre forma e conteúdo, nada há de inconcebível na hipótese de que até um mesmo indivíduo investido de autoridade possa eventualmente declarar prescrições contraditórias. No entanto, esta contradição não pode ser transposta ao plano teórico das proposições científicas do direito, devendo ser o conflito eleminado no curso da sistematização das representações de que cuida o jurista, a quem cabe apresentar conceitualmente um ordenamento jurídico isento de contradições. Mais do que qualquer dedução lógica de normas, o jurista deve promover um trabalho construtivo,

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eliminando materiais i.e. prescrições excedentes, que não possam ser interpretadas objetivamente .

Seria difícil negar a influência manifesta do pensamento kantiano neste ponto, uma vez que a questão se relaciona ao tema do uso lógico do entendimento em geral, de que trata a CRP (KANT, 2012, p.105/107, B91/B95). Na análise da filosofia transcendental, temos que além da relação direta com qualquer objeto, por meio das formas puras da intuição imediata dos sentidos, nenhum outro conhecimento seria possível que não o conhecimento por conceitos, também referido como conhecimento discursivo. Estas representações ou conceitos do entendimento, por sua vez, baseiam-se no que Kant chama de funções, esclarecendo o teórico que: “Eu entendo por função, todavia, a unidade da ação de ordenar diferentes representações sob uma representação comum” (KANT, 2010, p.106, B93).

Desse ponto de vista, nenhuma representação conceitual se aplica diretamente aos objetos, dado que a universalidade de todo conceito se define na unidade de diversas representações possíveis, que remetem a um mesmo ou diversos objetos. Portanto, o conhecimento discursivo da faculdade do entendimento se constitui a partir da faculdade de julgar, uma vez que a operação lógica do juízo se caracteriza fundamentalmente como aquela por meio da qual o entendimento busca unificar múltiplas representações sob a unidade comum de um conceito mais geral, reunindo com isso diversos conhecimentos possíveis num só. Nas palavras de Kant:

Todos os juízos são, assim, funções da unidade de nossas representações, de tal modo que, em vez de empregar uma representação imediata para o conhecimento do objeto, empregamos uma mais elevada, que abarca sob si tanto aquela como as outras, e assim reunimos muitos conhecimentos possíveis sob um único. Nós podemos, contudo, reduzir todas as ações do entendimento a juízos e, assim, representar o entendimento em geral como uma faculdade de julgar. Pois ele é, segundo o exposto acima, uma faculdade de pensar. Pensar é o conhecimento por meio de conceitos. (KANT, 2012, p.107, B94, itálicos no original).

Por certo não é coincidência que a famosa tábua das categorias ou dos conceitos puros do entendimento (KANT, 2012, p.114, B106) seja derivada, antes, de uma tábua das funções lógicas do entendimento nos juízos (KANT, 2012, p.108, B95), haja vista que: “As funções do entendimento podem ser todas elas encontradas, pois, caso se possa representar, de maneira completa, as funções da unidade nos juízos” (KANT, 2012, p.107, B94). Esta funcionalidade lógica do entendimento, ao final, confere unidade também à diversidade das

sensações na intuição objetiva, sintetizando a unidade lógica que condiciona o conhecimento a priori dos objetos, isto é, a unidade da representação conceitual que já existe “antes” da experiência. A unidade sintética da experiência em geral, ao se apresentar como totalidade ordenada de elementos objetivos definidos e não como fluxo caótico de sensações, denuncia com isso a atuação de certos conceitos do entendimento, que devem funcionar como condição prévia dessa sistematização das percepções.

Pode-se dizer de tal forma que apenas pela representação da unidade das funções lógicas dos juízos a experiência ou a diversidade da intuição dos sentidos pode ser interpretada também como unidade, ou seja, como totalidade provida de “sentido”. Assim se compreende o papel constitutivo da cognição, que a filosofia não mais pôde negar depois de Kant:

A mesma função que dá unidade às diferentes representações em um juízo dá unidade também à mera síntese de diferentes representações em uma intuição e, expressa em termos gerais, denomina-se conceito puro do entendimento. O mesmo entendimento, portanto, e por meio das mesmas ações pelas quais colocava em conceitos - por meio da unidade analítica – a forma lógica de um juízo, introduz também, por meio da unidade sintética do diverso na intuição em geral, um conteúdo transcendental em suas representações, em virtude da qual elas são denominadas conceitos puros do entendimento e se referem a priori a objetos, algo que a lógica geral não podia realizar. (KANT, 2012, p.113, B104/105, itálicos no original).

No entanto, a questão metafísica sobre até que ponto os objetos podem ser de fato constituídos de modo correspondente às condições epistemológicas de unidade das representações nos conceitos, não escapou ao crivo analítico da Kant, conforme a advertência que consta do prefácio à primeira edição da CRP. De início, o filósofo adverte (2012, p.21, AXVI/AXVII) que a dedução dos conceitos puros do entendimento, o coração da analítica transcendental, compreende um estudo em dois sentidos. Um deles diz respeito aos objetos do entendimento puro e pretende estabelecer precisamente a validade objetiva dos conceitos a priori deste entendimento. O outro, como dirá o filósofo, parte de uma consideração sobre as possibilidades e os poderes cognitivos em que o próprio entendimento se encontra assentado, ou seja, trata-se de uma consideração de ordem subjetiva.

Porém, o autor anuncia também que esta última linha de investigação, conquanto relacionada com a finalidade de sua obra magna, a bem da verdade não lhe seria intrínseca, pois: “(...) a questão principal persiste: independentemente de toda experiência, o que e como

podem o entendimento e a razão conhecer? E não esta: como é possível a própria faculdade de pensar?” (KANT, 2012, p.21, AXVII, itálico no original). Em suma, se o conhecimento por meio da unidade lógica dos conceitos já se encontra dado na experiência, até mesmo pela efetividade das representações com que operam das ciências físico-matemáticas, seria desnecessário para Kant a problematização daquilo que se trata da causa de um efeito posto. Sob esse argumento, o filósofo se volta então integralmente para a dedução objetiva das categorias, limitando-se a observar que:

Quanto a isso tenho de lembrar ao leitor, antecipadamente, que, caso a minha dedução subjetiva não produza nele a plena convicção que espero, a objetiva, que é aqui a mais importante, tem de receber toda a sua força; para o que, de qualquer modo, pode ser inteiramente suficiente aquilo que é dito às páginas 92 e 93 [B 123-123]. (KANT, 2012, p.22. AXVII).

Na citada passagem a que alude o prefácio, um excerto relativamente pequeno na extensão da CRP, mas de profunda significação, Kant preocupa-se antes de tudo em afirmar a possibilidade de que a constituição imanente dos fenômenos não necessariamente seja correspondente às condições determinadas pelas formas puras da intuição e pelos conceitos puros do entendimento. Contudo, na eventual ausência da unidade sintética do diverso na intuição, posta sob os conceitos puros do entendimento, o filósofo postula apenas que os fenômenos se tornariam “vazios e sem sentido”, ainda que os objetos continuassem a se apresentar à intuição:

Que os objetos da intuição sensível tenham de ser conformes às condições formais existentes a priori na mente é algo claro, de fato, na medida em que de outro modo eles não seriam objetos para nós; que além disso, contudo, eles também tenham de ser conformes às condições de que o entendimento necessita para a unidade sintética do pensamento, neste caso a conclusão não e tão fácil de discernir. Pois s fenômenos poderiam perfeitamente ser constituídos de tal modo que o entendimento não os encontrasse em conformidade com as condições de sua unidade, e tudo ficasse de tal modo confuso que, por exemplo, não se oferecesse na sequência dos fenômenos nada que nos desse uma regra de síntese e, assim, correspondesse ao conceito de causa e efeito, tornando-se este conceito inteiramente vazio, inútil e sem significado. E os fenomenos não deixariam por isso de oferecer objetos à nossa intuição, pois a intuição não necessita de modo algum das funções do pensamento. (KANT, 2012, p.124, B123, itálico no original).

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Diante do exposto, compreende-se em que sentido Kelsen avança além do o construtivismo tradicional da Jurisprudência dos Conceitos77, uma vez que, no processo de assimilação da epistemologia crítico-transcendental, o teórico se vê compelido a aceitar não apenas que o conhecimento descritivo da ciênca do direito constitui o sistema jurídico, mas ainda que, em alguma medida, perfaz também uma descrição corretora deste objeto. Pois desde Kant, a ciência não se limita à simples descrição da experiência e sim “impõe” ao conhecimento um objeto que, para ser apreendido como tal, deve “ter sentido”, isto é, deve se apresentar na forma de uma representação isenta de contradições, mesmo que o conceito deste objeto não corresponda diretamente às eventuais condições contraditórias da experiência, sobretudo no caso da experiência jurídica, essencialmente conflituosa.