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Pensamento Analítico e Pensamento Continental

CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS

2.3. Pensamento Analítico e Pensamento Continental

Nesses termos podemos compreender como se consolida em grande medida a crise de fundamento do pensamento contemporâneo, que não mais se encontra em condições de lançar-se às cegas para o ambiente “rarefeito” da fundamentação metafísica do conhecimento e da história, precisamente porque permanece ciente dos limites do intelecto em relação ao real, delimitados pelo projeto crítico da filosofia transcendetal. Contudo, ao mesmo tempo, a epistemologia contemporânea resta incapaz de retornar integralmente pela senda da subjetividade, na via da qual o criticismo orientou a revolução copernicana. Sobretudo porque após as críticas em múltiplas frentes, dentre as quais sobrelevam as profundas contestações de Hegel e Marx, se afigura quase como um truísmo para o tempo presente a síntese lembrada por Danilo Marcondes de que: “Não há salvação para o sujeito (‘das Ich ist unrettbar’)” (2001, p.252).

A linguagem surge então como grande alternativa da contemporaneidade para a explicação da relação entre a consciência e o real, que se desenha agora como relação de significação. Neste caso a análise do significado e do sentido de nossos processos de simbolização passa a se apresentar como nova via de fundamento, algo intermediária entre o subjetivismo radical da modernidade e o idealismo totalizante da primeira metade do século XIX. A articulação desse movimento de profunda expressão encontra sua referência hodierna no conceito do chamado giro-linguístico, que se difundiu no início do século XX, consolidando-se em particular como a orientação teórico-metodológica privilegiada de vasta parcela da reflexão filosófica de língua inglesa, a qual alcança hoje virtual hegemonia no interior da tradição anglo-saxônica.

Conquanto evidente, não seria demais destacar também que quando essa nova orientação metodológica considera o tratamento de questões filosóficas a partir da análise conceitual da linguagem, ela não se refere, por óbvio, a qualquer linguagem empírica como os múltiplos idiomas historicamente determinados. Sua preocupação fundamental de início parte,

em verdade, da consideração da linguagem como estrutura lógica subjacente a todas as formas de representação linguísticas e mentais (MARCONDES, 2001, p.261). A estrutura nuclear do juízo linguístico passa a ser interpretada, a partir de então, não mais como ato mental e sim como proposição dotada de uma forma lógica estruturante, passível de ser decomposta nos seus elementos fundamentais capazes de revelar a dinâmica do discurso nas suas relações constitutivas imanentes.

Por conseguinte, supondo um isomorfismo entre a configuração lógica dos sistemas linguísticos e a estrutura imanente do real, o embasamento teórico dessa alternativa ganha destaque pela compreensão inovadora de que a análise proposta poderia ser levada a efeito, nesse sentido, independentemente dos possíveis condicionantes da subjetividade e da consciência individual, ou seja, o horizonte de compreensão deixa de se limitar pelo sujeito ao contrário do que até então postulavam os grandes cultores do pensamento moderno. (MARCONDES, 2001, p.253)

Como anota Loparic (2003, p.158), em outra oportunidade148, muitos reconheceram no linguistic turn a tentativa clara e bastante significativa de buscar um substituto para o ponto de vista transcendental de Kant. Na esteira de Rorty149, o autor aduz que a ideia seria: “(...) delimitar um espaço para o conhecimento a priori no qual não podiam se intrometer nem a sociologia, nem a história nem a arte nem a ciência natural.” (LOPARIC, 2003, p.158). Todavia, esse novo apriorismo de cunho logiscista focado na linguagem, como veremos, acaba muito mais transferindo a oposição kantiana entre consciência e mundo para o plano da semântica, no qual esta dualidade se reproduz pela abertura incontornável do hiato existente entre o signo e sua referência.

Pode ser registrado ainda que a reordenação paradigmática em questão, hoje plenamente consolidada pela tradição específica da filosofia analítica, mereceu esta designação precisamente porque compreende e pratica a filosofia como análise rigorosa de conceitos, valendo-se da precisão e do rigor metodológico antiespeculativo das ciências naturais para contraditar certas pretensões da chamada filosofia continental. Ao passo que esta, por outro lado, congrega a tradição filosófica centrada na esfera do continente europeu, em cujo contexto atual viceja um pensamento inclinado mais especificamente para a retomada de problemas típicos da metafísica ou da ontologia tradicional, ainda que não menos focado

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no propósito particular de situar essa reflexão clássica à luz da nova ordem de fundamentos que emergem do giro-linguistico. (GIACOIA JR., 2010, p.83/84).

Portanto, se os dois grandes blocos de referência do pensamento ocidental contemporâneo compartilham ambos de uma nova orientação epistemológica, que encontra na linguagem o fundamento básico do sentido imanente do conhecimento, um traço distintivo do pensamento de matriz continental pode ser encontrado, por sua vez, na tendência de investigar as determinações linguísticas a fim de dimensiona-las propriamente no interior da práxis histórico-social. Seu programa será então levado a efeito, nessa chave, quase sempre buscando relacionar o problema das estruturas lógicas da linguagem com as citadas releituras de temas atinentes ao pensamento clássico, a exemplo dos problemas da essência e do ser oriundos da metafísica tradicional. Uma dupla de conceitos que nos remetem imediatamente a dois grandes nomes vinculados por tradição à vertente filosófica do pensamento continental, quais sejam, Edmund Husserl150 e Martin Heidegger151.

Neste último caso, alguns cultores reconhecidos da filosofia hermenêutica de Heidegger optam inclusive por descrever o estabelecimento do novo referencial do fundamento epistemológico contemporâneo como um giro ontológico-linguístico152, que visa explicitar as possibilidades da concepção não representacional de linguagem como “morada do ser”, segundo a ontologia fundamental de Heidegger. Nesse sentido, ao abordar a atualidade do pensador alemão, em seu livro Heidegger Urgente153, Oswaldo Giacoia Jr esclarece que:

Com Heidegger, a linguagem filosófica é explorada nos limites extremos de suas possibilidades e de seus recursos expressivos. Para ele, a linguagem é tanto ‘a morada do Ser’ quanto o âmbito em que o homem habita o mundo. Portanto, levar a linguagem aos seus limites

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últimos constitui exigência de um pensamento em busca de articulação, uma experiência radical de recuperação pensante das autênticas e originárias precondições do logos filosófico. (GIACOIA JR, 2013, p.45, itálico no original).

Em síntese, tendo em vista que o desvelamento do ser – a alétheia, segundo a original releitura que Heiddeger promove sobre termo grego que descreve o conceito da verdade (HEIDEGGER, 2012, p.591, §44) – depende das determinações da linguagem em suas estruturas basais, esta passa a ser constitutiva da própria ontologia do Dasein154, ou seja, da configuração temporal do ser-o-aí que é o homem. Logo, muito mais do que simples isomorfismo entre a linguagem e o real, temos aqui o estabelecimento de uma verdadeira equivalência entre pensar e ser, entre consciência e mundo. Afinal, o autor tem por objetivo desde o início a articulação das bases teóricas para uma nova ontologia fundamental, na qual a simples afirmação de que algo é pressupõe já que tenhamos dele uma compreensão incerta e mediana, ao menos enquanto algo existente no mundo.

Heidegger basicamente assimila a noção de intencionalidade do pensamento de Husserl, que considera esta uma dimensação estrutural da consciência, a qual não poderia ser pensada de maneira insular, como mônada fechada sobre si própria e contraposta ao mundo dos objetos que ela mesma representa (GIACOIA JR., 2013, p.34). Nesse sentido, a consciência só existe propriamente como tal na duplicidade e na abertura para um objeto pensado, que se mostra como fenômeno tanto de acordo com condições empíricas e sensíveis, quanto segundo elementos estruturantes formais. Portanto para Husserl, e mais intensamente para Heidegger, a fenomenologia implica necessariamente uma ontologia fundamental, na medida em que esta deve ser compreendida como uma descrição dos modos de estruturação dos fenômenos no horizonte dos diferentes contextos da efetiva realidade do sujeito.

De maneira que nenhuma compreensão daquilo que é seria possível sem pressupor o conhecimento da facticidade do ser do homem, que só existe lançado na temporalidade da história como Dasein. Essa estrutura circular do ser que compreende as determinações de sua

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condição ontológico-existencial a partir dos pressupostos de compreensão do mundo foi descrita posteriormente como o famoso Círculo Hermenêutico155 da compreensão, inspirado na filosofia heideggeriana. Em resumo, Heidegger sustenta que a pergunta sobre as formas da consciência no mundo não poderia nunca ser articulada num plano puramente ideal, pois esta indagação em si já pressupõe a certeza ainda que irrefletida do ser-no-mundo:

Crer na realidade do ‘mundo exterior’, com razão ou sem razão; demonstrar essa realidade de modo satisfatório ou insatisfatório; pressupô-la expressamente ou não, semelhantes tentativas, impotentes para dominar em plena transparência o próprio solo sobre o qual se movem, pressupõem de imediato um sujeito sem mundo ou, o que dá no mesmo, um sujeito que não está seguro de seu mundo e que, no fundo, deve primeiramente assegurar-se de um mundo. O ser-no- mundo depende, então, desde o começo de um aprender, de um pressupor, de um ter certeza ou crer, isto é, de um comportamento que já é sempre ele mesmo um modus fundado do ser-no-mundo. (HEIDEGGER, 2012, p.573, §43, itálicos no original).

Assim, se compreendemos o ser desde sempre, a cisão entre a consciência e o mundo seria meramente ilusória. Como dirão alguns, a fim de destacar a prevalência da facticidade, sob esse prisma: “Não há uma ponte entre consciência e mundo porque desde sempre já estamos no mundo compreendendo o ser. Ou seja, há um vínculo entre ser-ai-ser e uma co- originalidade entre consciência e mundo.” (STRECK, 2011, p.242, itálico no original). Para Heidegger o “problema da realidade”, enquanto questão sobre uma possível demonstração da existência do mundo para a consciência, simplesmente mostra-se como um problema impossível ou como um falso problema, na medida em que a necessária condição prévia do ser-no-mundo do homem afasta de imediato essa interrogação.

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Esta pré-condição fundamental, portanto, reflete de imediato uma intuição ontológica que só tem sentido para aquele único ente no mundo a quem de fato essa interrogação se apresenta, ou seja, para o homem enquanto Dasein que se interroga sobre todos os seus diversos modos possíveis de ser-o-aí do mundo. Fundamentalmente, a compreensão ontológica do Dasein se dirige não apenas aos demais entes do mundo, mas também, e principalmente, à condição existencial própria daquele ente que entende o seu ser-no-mundo junto aos demais. Aquele que compreende as pré-condições ontológicas do mundo a partir dos seus próprios limites e possibilidades de ser no mundo e com o mundo.

Por conseguinte, o entendimento ou o compreender do ser dos demais entes em geral se torna possível apenas por meio da prévia determinação ontológica da condição humana no Dasein, conforme a referência retroativa e projetiva da pergunta sobre a existência, que se coloca exclusivamente sob o pressuposto do existir ele mesmo. Heidegger definirá nesse sentido que: “O entendimento que conduz então a si mesmo, nós o denominamos entendimento existencial.” (HEIDEGGER, 2012, p.61, §4°, itálicos no original). Ao passo que a investigação analítica que o autor empreende no sentido de desvelar a estrutura ontológica do homem como ser que coloca o problema da existência pelo seu próprio existir – o Dasein -, será finalmente descrita como uma analítica não de ordem existencial, mas existenciária. Uma investigação na qual: “A pergunta pela estrutura da existência visa à exposição do que constitui a existência. Damos o nome de existenciariedade à conexão dessas estruturas.” (HEIDEGGER, 2012, p.61, §4°, itálicos no original).

Dentre os existenciários fundamentais que determinam o ser do “aí” no Dasein, encontram-se não apenas a estrutura do autocompreender do homem, enquanto ser que projeta o seu ser-no-mundo em possibilidades no tempo156, mas também e especialmente a linguagem e o discurso, pois somente em razão das pré-condições da enunciação podem ser viabilizadas as demais estruturas existenciárias, que tornam o Dasein capaz de encontrar-se, de entender e de interpretar o seu ser-no-mundo. Portanto, a linguagem assume assim a condição

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privilegiada de um existenciário ontológico original, a verdadeira “morada do ser” que circunscreve o horizonte dos modos possíveis de ser-no-mundo. Nesse sentido:

O fato de que linguagem seja tematizada somente agora deve servir de indicação de que esse fenômeno tem suas raízes na constituição existenciária da abertura do Dasein. O fundamento ontológico- existenciário da linguagem é o discurso. Na interpretação dada até agora do encontrar-se, da interpretação e da enunciação já fizemos constante uso desse fenômeno, mas como que o descartando de uma análise temática. O discurso é existenciariamente de igual originariedade que o entender. A entendibilidade já está sempre articulada, inclusive já antes da interpretação apropriadora. O discurso é a articulação da entendibilidade. Por isso, o discurso fundamenta a interpretação e a enunciação. Ao que pode ser articulado na interpretação e mesmo mais originariamente, já no discurso, demos o nome de sentido. O articulado na articulação discursiva como tal denominamos de o-todo-da-significação e este pode ser decomposto em significações. As significações, como o articulado do articulável, são sempre providas-de-sentido. Se o discurso, como articulação da entendibilidade do ‘aí’, é um existenciário originário da abertura, e esta, por sua vez, é primariamente constituída pelo ser-no-mundo, o discurso deve ter essencialmente ele também um modo-de-ser específico de-mundo. A entendibilidade do encontrar-se do ser-no- mundo exprime-se como discurso. O todo-de-significação da entendibilidade acede à palavra. Das significações nascem palavras, e não são as palavras que, entendidas como coisas, se proveem de significações. (HEIDEGGER, 2012, p.453/455, §34, itálicos no original).

Em resumo, como constituição existenciária do Dasein o discurso transforma-se em estrutura constitutiva da existência deste. Para além da finalidade comunicativa tradicional, que orienta de forma explícita a função enunciativa, no sentido da linguagem que informa sobre algo, o discurso traz também em si a função implícita do expressar-se do ser. Por meio do discurso o modo do ser-no-mundo se torna expressamente “partilhado”, demonstrando desde o início o quanto a autocompreensão do homem não pode partir da individualidade isolada, porquanto o Dasein existe sempre e necessariamente como exterioridade, como aquilo que está “fora” e que permanece “aí”. Assim, Heidegger conclui que: “Porque o discurso é constitutivo do ser do ‘aí’, isto é, do encontra-se e do entender, é que Dasein significa ser-no-mundo; o Dasein como ser-em que discorre já se expressou. O Dasein tem linguagem.” (HEIDEGGER, 2012, p.465, §34, itálicos no original).

Não surpreende, portanto, que o primeiro Heidegger em especial guarde relações incontornáveis com Kant, a quem o pensador do Dasein alude como uma das referências

centrais para fundamentar inicialmente sua teoria da verdade, que apesar de tudo não deixa de repousar em alguma medida sobre a distinção entre enunciados a priori e enunciados factuais. Particularmente, Heidegger opõem os enunciados “categoriais-fenomenológicos”, que expressam a “verdade transcendental”, aos enunciados ditos “mundanos”, que expressam as “verdades empíricas” descritas pela tradição. Loparic reconhece esta leitura e lembra que: “Ainda em 1927, Heidegger chamará a ‘ciência do ser’ de ‘ciência transcendental’.” (LOPARIC, 2003, p.75).

Nesse sentido, a maior evidência de que o pensamento de Heidegger alberga mesmo uma dualidade, cuja inspiração kantiana nos parece explícita, reside no conceito da diferença ontológica que traduz a pergunta pelo Ser dos entes. A dualidade se articula em face da percepção de que toda a ciência de fato se ocupa com determinado domínio de entidades (entes) que compõem seu objeto de investigação, pressupondo consequentemente certo entendimento irrefletido do ser. Muito embora esse entendimento se questione no caso apenas sobre o ser dos entes em geral, sem jamais formular propriamente a questão sobre o sentido do ser enquanto tal, cuja origem não se encontra na categoria da essência que mobilizou a metafísica tradicional e sim na categoria da existência que, como Heidegger pretende demonstrar, implica na diferença entre os atributos ônticos dos entes em geral e as determinações ontológicas do ser.

Por conseguinte, o projeto da analítica existencial sobre as determinações constitutivas dos entes ditos intramundanos, no léxico heideggeriano, deve ser desenvolvido em pelo menos dois planos de objetivação, transitando do domínio dos entes em geral para o plano das determinações ontológicas do Dasein, ou seja, do ser-o-aí que se caracteriza como o único ente para o qual a pergunta sobre o ser se apresenta e faz sentido. Tratando-se nesse caso da pergunta ontológica incontornável sobre o modo de ser da existência que somos, a qual se apresenta fundamentalmente como contingência ou facticidade originária, que na finitude de suas predeterminações estabelece o horizonte de compreensão do mundo e dos entes.

Temos assim o fundamento da sobredita diferença ontológica, alicerçada sobre a distinção nuclear entre o duplo nível do ôntico e do ontológico, que também poderíamos descrever como um nível de objetividade que é constituído (ôntico) e outro que se apresenta como constitutivo (ontológico). Em síntese, nos interessa perceber que mesmo em um espectro de reflexões completamente distinto, a questão kantiana sobre as condições de possibilidade do conhecimento, a qual nos remete primeiro às condições formais

constitutivas, para depois considerar as impressões constituídas, necessariamente permanece, porém agora no duplo nível da ontologia fundamental. Como resume Oswaldo Giacoia Jr.:

A essa diferença entre os entes e o ser dos entes em sua totalidade, Heidegger acrescenta outra, cuja função é axial no contexto de Ser e tempo: a distinção entre ôntico e ontológico, na qual o termo ontológico remete à pergunta pelo sentido do Ser enquanto Ser, e não ao ser dos entes em geral. A essa diferença ontológica corresponde, no léxico de Ser e tempo, a diferenciação conceitual entre Existenziel (existencial ôntico) e Existenzial (existencial-ontológico). Existencial- ôntico é um predicado dos entes como tais. O gênero mais elevado desse tipo de atribuição são os conceitos gerais, que podem ser predicados de todos os entes que figuram em um discurso e para os quais Aristóteles cunhou o nome de categorias. A substância e os atributos essenciais podem ser considerados, com outros conceitos do mesmo grau de generalidade, gêneros supremos do Ser. Diferentemente do existencial ôntico, limitado ao plano dos entes, o existencial-ontológico remete ao plano de Ser, em sua diferença para com os entes. O termo ontológico não diz respeito às características particulares dos entes existentes ou possíveis, mas designa o fundamento originário que os torna o que eles essencialmente são, ou seja, que os constitui em seu ser próprio. (GIACOIA JR., 2013, p.57- 58).

Mesmo no coração da tradição continental podemos concluir então que o pensamento heideggeriano, apesar da originalidade inquestionável da matriz ontológica de sua analítica existencial, ainda assim recepciona e conserva de certo modo uma representação angular do kantismo quando “submerge” o transcendental na temporalidade histórica do Dasein, uma vez guardadas as devidas proporções entre a dualidade do fenômeno e da coisa-em-si relativamente àquela do par ôntico-ontológico. Sem desconsiderar que quando estabeleceu o método de investigação da analítica existencial em Ser e Tempo, o próprio Heidegger apontou, ademais, que não se deveria aplicar ao Dasein “dogmática ou construtivamente” nenhuma ideia de ser e de realidade efetiva compreensível “por si mesma”, de vez que não poderiam lhe ser: “(...) impostas coercitivamente, de modo ontologicamente inconsiderado, ‘categorias’ previamente delineadas a partir de uma tal ideia.” (HEIDEGGER, 2012, § 5°, p.73)

Por sua vez, o componente constitutivo do a priori que se desdobrava por meio da análise crítica da razão, em Kant, e que corresponderia às predeterminações ontológicas à luz das quais o Dasein interpreta a constituição ôntica dos entes, em Heidegger, neste último caso somente se descortina a partir do tempo, sendo este o horizonte de toda interpretação e

compreensão da diferença ontológica. De modo que: “Para entende-lo faz-se necessária uma explicitação originária do tempo como horizonte do entendimento-do-ser, a partir da