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Continuidade e Ruptura no Programa Teórico do Normativismo

CAPÍTULO 1 – CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA DO DIREITO

1.4. Continuidade e Ruptura no Programa Teórico do Normativismo

Por outro lado, ao dissenso teórico somam-se sérias dificuldades de ordem histórica e filológica, as quais derivam da posição da TGN como obra póstuma do autor, editada sob os auspícios do Instituto Hans Kelsen de Viena, em 1979, seis anos após a morte do teórico. Em artigo85 recente sobre o tema, a professora Daniela Mirante, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa concluiu que:

Também no plano das relações entre lógica e o Direito se registra um afastamento significativo em relação às posições sustentadas na segunda edição da Teoria Pura do Direito, as quais se podem sintetizar nos seguintes pontos: negação da aplicação dos princípios lógicos às normas jurídicas – o que conduz a um irracionalismo normativo – e admissão da existência de conflitos de normas, os quais apenas podem ser resolvidos com recurso a uma norma jurídico- positiva com função de derrogação. Este último ponto concernente à derrogação consubstancia uma acentuação do traço positivista. A Teoria Geral das Normas é verdadeiramente um momento de ruptura, afectando de forma irreversível o edifício conceptual proposto e defendido na fase clássica de Kelsen. (MIRANTE, 2014, itálicos no original).

No Brasil, outras dificuldades na apreciação da TGN, seja como obra de continuidade ou ruptura do pensamento kelseniano, foram levantadas pelo professor Andityas Soares de Moura ao longo de ao menos duas publicações (COSTA MATOS, 2006 e 2013), que encontram amparo nas teses da professora Elza Maria Miranda Afonso, sendo ambos da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG86. O argumento dos teóricos encontra seu

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fundamento em rara missiva datada de 1933, mas que veio a lume inicialmente apenas em 1987, sob a tradução francesa de Michel Troper (PAULSON, 1999, p.169), na qual Kelsen dirige ao jusfilósofo italiano Renato Treves, tradutor da TPD para o ambiente cultural daquele país, uma abordagem pontual sobre as linhas de força do seu sistema teórico.

Trata-se de um documento elucidativo ao extremo, ao longo do qual o pensador apresenta ao interlocutor suas objeções às críticas que equiparavam a TPD à teoria do direito público de Paul Laband, cuja “ideologia do princípio monárquico” falhara, aos olhos de Kelsen (PAULSON, 1999, p.170), na tentativa de separar o direito da política, ainda discorrendo o autor sobre o estatuto da norma fundamental à luz da epistemologia kantiana, ao mesmo tempo em que registra seus débitos para com a leitura de Hermann Cohen87 acerca da filosofia transcendental.

A influência da teoria das ficções de Vaihinger então merece destaque, juntamente com o princípio de economia do pensamento de Ernst Mach88, tendo então seu impacto reconhecido, no caso, apenas e tão somente para que sejam levantadas as incompreensões que o manejo desses referenciais impôs a Kelsen, o qual em decorrência registra sua intenção de finalmente abandoná-los. Nas palavras do próprio jurista, conforme a tradução89 do professor Andityas: / 2-@ * - - (- 3*5 A ) K6L + @ - - 6 > F + N 3D 1 , - + * + & / -( - ) P - + - 0 A 0 + & ) 0 * 0 &1 # ! # + 0 & Z* [ - * - - - - 6 5 9J GK> %>K G "# $ - #" + ) : ' 8 9 "7 ! : % ) ? * B / ? 6 * 6>SOG P !!! - # - * 6>SOG P G F O 0 B 2#0 7 # # " # $$ #0 3 ; N # $ " 6 ! 5 ! " 7 5 B 4 25 ! 3 6 #0 7 23 2 !! 8 / T N L f . !! - 7! 9 # 9 $ 7 ! : * * ( * & - * - - - - - B - - * * B ) 12 - 9- $0$ : > 0 0 7 - * - - 0 - - * * B 6>SOG P !!! - $ ! G ) - 0 * B N 3#2 : ; 5 < ; # / " = < ! : = ; : ) ; 5 > ; 1 > 8 ? 9J GK> %>K G "## - : D ) N @* 1 ! # ; 1 / ; 1 A # / ) 1

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Mesmo se, em um certo sentido, é exato afirmar que a teoria da norma fundamental encontra sua origem no princípio da economia do pensamento de Mach e na teoria da ficção de Vaihinger, prefiro desistir, em razão de numerosos mal-entendidos, de me inspirar nesses dois autores. O essencial é que a teoria da norma fundamental deriva inteiramente do método da hipótese desenvolvido por Cohen. (KELSEN apud COSTA MATOS, 2006, p.67, nota 56).

Este escrito dos anos trinta torna claro, segundo a tese que o professor Andityas retoma da professora Elza Maria, algo implícito em certos artigos90 científicos de Kelsen do mesmo período, a saber, que o autor conhecia a obra de Vaihinger, tendo, contudo, dela discordado já na década de 30 e optado por fundar-se na via neokantiana de Cohen, visando buscar a estruturação da norma fundamental enquanto hipótese lógico-transcendental. De maneira que o caminho da evolução conceitual da Grundnorm não seria da hipótese lógico- transcendental à ficção, como a edição póstuma da TGN parece mostrar, mas, ao contrário, da ficção à hipótese, conforme a carta endereçada à Treves. Afinal, somente o caráter apriorístico da norma fundamental poderia de fato funcionar como: “(...) o elemento que serve para opô-la à metafísica jusnaturalista, tarefa central da teoria jurídica kelseniana.” (COSTA MATOS, 2013, p.102). De rigor, somente a norma fundamental como pressuposto lógico- transcendental responderia satisfatoriamente à antinomia jurisprudencial.

Porém, como compreender, então, o manuscrito editado em 1979? Estaríamos diante de uma única obra, cuja temática fora abandonada anos antes por seu autor, ou de um compêndio de textos esparsos, que não necessariamente dispõe de uma unidade material, capaz de lhes conferir identidade? O professor Andityas toma partido em favor dessa última possibilidade, sustentando (COSTA MATOS, 2006, p.66, nota 56) que a TGN reúne não um, mas vários textos de Kelsen, por certo não destinados à publicação e com datação incerta, o que impediria qualquer determinação precisa a respeito de quando efetivamente o autor pensou a norma fundamental na qualidade de ficção jurídica. Logo, a mera posição cronológica da TGN enquanto última obra de Kelsen não poderia fornecer base legítima para

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a interpretação corrente de que o teórico reformulara sua posição, relativamente à segunda edição da TPD. Em sentido diverso, a carta a Renato Treves poderia sugerir que esse último trabalho da década de 1960, e não a TGN, de fato condensa o posicionamento definitivo do autor.

Os próprios organizadores da TGN reconheceram, em prefácio91, que o manuscrito original da obra não apresentava uma estrutura contínua, a qual os editores se viram obrigados a efetivar, ainda que com apoio no manuscrito de Kelsen. De modo que a condição dos escritos originais, somada à inevitável interferência dos organizadores, acabaria fatalmente reforçando o conteúdo da carta de 1933, como assevera o professor Andityas:

Apesar da formulação da Grundnorm enquanto ficção estar presente na Teoria Geral das Normas – em tese, a última obra de Kelsen -, considera-la como definitiva ou como signo da pretensa mudança de posição de Kelsen – da hipótese lógico-transcendental à ficção – parece-nos errôneo. A Teoria Geral das Normas foi editada pelo Instituto Hans Kelsen em 1979 e reúne vários textos de Kelsen, alguns deles não destinados à publicação, conforme se pode ler na introdução de Ringhofer e Walter. Muitos dos textos que compõem a obra têm datação incerta e não se sabe exatamente quando Kelsen pensou a Grundnorm enquanto ficção jurídica. Devido ao fato de a Teoria

Geral das Normas ser a derradeira obra de Kelsen, passou-se a

acreditar acriticamente que ele havia mudado a opinião exposta na última edição da Teoria Pura do Direito, na qual a norma fundamental é tratada enquanto hipótese lógico-transcendental. (COSTA MATOS, 2013, p.100/101, negrito e itálico no original). Em si as antigas publicações de Kelsen comprovam sua familiaridade com a teoria das ficções de Vaihinger, sobre a qual o jurista se debruçou ainda no período de transição para os anos vinte. De resto, porém, a influência desta filosofia fora supostamente sepultada no decurso dos anos 30, consoante o diálogo de Kelsen com Renato Treves. Assim conclui o pesquisador da UFMG no sentido de negar qualquer recepção da filosofia de Vaihinger pelo último Kelsen, cuja obra definitiva seria necessariamente a segunda edição da TPD:

Entretanto, em 1987 – um ano após a edição brasileira da Teoria

Geral das Normas – essa ideia [da TGN como derradeira obra de

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Kelsen] perdeu força graças à publicação de uma carta até então inédita de Kelsen, datada de 03.08.1933 – bem antes, portanto, da formulação definitiva da Teoria Pura do Direito – e destinada a Renato Treves. Nesse texto Kelsen afirma expressamente que no início de seus trabalhos pensara em construir a norma fundamental inspirando-se nas ficções de Vaihinger, mas como tal fora muito problemático, optou pela via kantiana e, com base em Cohen, arquitetou a norma fundamental enquanto hipótese lógico- transcendental. Já em 1919, no artigo Zur Theorie der juristichen Fiktionen, Kelsen apontava diversos problemas na qualificação fictícia de construtos normativos, eis que eles nunca poderia ser contraditórios em relação à realidade, como exigia Vaihinger, dado que esses dois planos – o ser da realidade e o dever-ser das normas – não se confundem e existem concomitantemente enquanto esferas ônticas diversas. (COSTA MATOS, 2013, p.101/102, negrito e itálico no original).

Por fim, a interpretação em referência se coaduna com a conhecida disposição de Kelsen, manifesta em prefácio à segunda edição da TPD (2006, p.XVIII), no qual o teórico reconheceu o caráter inacabado da obra de 1960, porém não sem asseverar o fim da contribuição pessoal de seu autor, o qual então já atingia “o limite de seus dias”. Um gesto de grande humildade, que no mais engrandece sobremaneira um intelectual da magnitude de Kelsen, tal como a carta de 20 de Setembro de 1968, que o mesmo dirigiu à redação da revista Rechtstheorie, no mesmo diapasão, segundo a referência de Gabriel Nogueira Dias: “Minha memória enfraqueceu-se muito devido à minha idade avançada e temo que outras capacidades intelectuais também tenham sido afetadas. Por isso creio não dever publicar mais nada92.” (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.292).

De tudo se conclui que a abordagem exposta encontra sólidas bases históricas e filológicas, respondendo aos anseios de adeptos do positivismo kelseniano que até então recusavam ou, quando muito, aceitavam com grandes dificuldades uma suposta decisão repentina de Kelsen, tendente a abandonar seu passado neokantiano já no final da vida, em benefício de uma “nova” orientação epistemológica, tal como constante da TGN.

Todavia, se a posição anacrônica que a última obra de Kelsen passa a ostentar no contexto de sua produção anula a perspectiva de ruptura antes fixada em relação aos trabalhos anteriores do teórico, não se pode negar que a TGN ainda demonstra impressionante unidade e coesão, tampouco sendo fácil supor, por sua vez, que um jurista do vigor intelectual de

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Kelsen abandonaria de todo a pesquisa disciplinada e a revisão ainda que pontual de materiais inéditos, mesmo que não destinados à publicação. Para além dos problemas já apontados na base metodológica da TPD, a constante calibragem que Kelsen sempre imprimiu em suas teorias, tornando-as um trabalho em permanente construção, não impede e sim estimula inclusive a indagação sobre o possível sentido que o autor não mais publicado, se pudesse, pretenderia impor à obra que o mesmo declarou “inacabada” em 1960.

Ademais, contra a tese desenvolvida pelos pesquisadores brasileiros, parece ainda pesar o conteúdo de outra rara correspondência mantida entre Kelsen e Ulrich Klug, que foi traduzida no cenário nacional pelo professor Paulo Bonavides e publicada sob o título de Normas Jurídicas e Análise Lógica93. A designação não esconde o tema central das discussões, as quais apenas comprovam o vivo interesse de Kelsen no tocante à possibilidade da analise das normas jurídicas a partir de princípios lógicos. O próprio Klug atesta a preocupação de Kelsen com a questão, lembrando que em conversas orais a preocupação do jurista: “Culminou na observação que fez durante nosso último encontro pessoal: ‘Se eu hoje houvesse mais uma vez de começar, estudaria em primeiro lugar a lógica matemática’.” (KELSEN e KLUG, 1984, p.106).

E significativamente, a última das correspondências subscritas por Kelsen, na data de 28 de Julho de 1965, faz referência expressa à TGN, declinando ser este um trabalho com o qual o autor já se ocupava há “bastante tempo”. Nesse sentido:

Seu artigo [de KLUG] Notas sobre análise lógica de algumas afirmações e conceitos teórico-jurídicos eu o conheço muito bem e dele me ocupei pormenorizadamente num amplo estudo denominado Teoria Geral das Normas, no qual trabalho há bastante tempo. (KELSEN e KLUG, 1984, p.91, itálico no original).

Após esta carta, no entanto, na qual Kelsen aborda dentre outras questões a proposta de Klug sobre uma possível conversão do cálculo proposicional clássico num cálculo isomorfo de normas, seu interlocutor reconhece que o debate epistolar finda (KELSEN e KLUG, 1984, p.94), resultando da parte de Kelsen na publicação do artigo Direito e Lógica, que veio a lume na revista FORUM de Viena, nos cadernos de n° 142/143, ligeiramente complementados no fascículo subsequente. Contudo, o conteúdo dos debates e a referência da missiva final, na medida em que Kelsen reconhece sua dedicação para com a nova obra, na

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qualidade de um projeto independente de suas publicações anteriores, parece contradizer a tese de que a TGN poderia constituir-se como compêndio de escritos esparsos, não destinados à publicação (COSTA MATOS, 2006, p.66).

Em complementação, Klug reconhece, ademais, que se após a carta de 1965 a correspondência entre ambos de fato chega ao fim, o mesmo não ocorre com a preocupação de Kelsen sobre a temática discutida, como teria se corroborado de maneira expressiva: “(...) com a publicação pelo Instituto Hans Kelsen de Viena, em 1979, de sua obra póstuma intitulada Teoria Geral das Normas, a cuja elaboração ele já se refere em sua carta de 28.7.1965” (KELSEN e KLUG, 1984, p.104). No mais, comentando o artigo de Kelsen, posteriormente publicado na citada revista FORUM - mas que na essência já constava do manuscrito que acompanha outra carta, esta de 9 de Junho de 1965 - Klug aponta passagens claramente indicativas da deliberada rearticulação que Kelsen pretendia imprimir sobre o problema estrutural da normatividade, capaz de infirmar a proposta da TPD.

Nesse sentido, dentre as observações redigidas por Klug, os comentários à nota de número sete, bem como o conteúdo desta, são talvez os mais ilustrativos:

No período seguinte do Manuscrito (igualmente às páginas 64 e 65), encontra-se o pensamento de que um conflito de normas não pode ser de modo algum uma contradição lógica e também nada que se assemelhe a uma contradição lógica e que, por consequência, este conflito também não se pode resolver segundo o princípio lógico da não contradição ou de acordo com um princípio analógico. Completando isso aí, diz-se na nova anotação de n°7 que: ‘Compare- se, a seguir, meu artigo ‘Derrogação’, in Essays in Jurisprudence in Honor of Roscoe Pound, Editor: Ralph A. Newman, Indianapolis, New York, 1962, p.339 e seguintes. Em relação à aplicabilidade de princípios lógicos em geral a normas jurídicas: Paul Amselek, Méthode Phénoménologique et Théorie du Droit, Bibliothèque de Philosophie de Droit, vol. II, Paris, 1964. Amselek combate o ‘logicismo’ de minha Teoria Pura do Direito, mas desconhece meu artigo acima citado e que se intitula ‘Derrogação’, no qual – modificando um ponto de vista ainda sustentado em minha Teoria Pura do Direito (1960) – se demonstra que um conflito de normas não é uma contradição lógica e que também a ele não se aplica por analogia o princípio lógico da não contradição. (KELSEN apud KLUG, 1984, p.97, itálicos no original).

A referência ao artigo publicado, no qual Kelsen reconhece a reelaboração do conteúdo da TPD, ao contrário do sobredito entendimento dos pesquisadores brasileiros (COSTA MATOS, 2006 e 2013), parece demonstrar que o autor manteve sim a intenção

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deliberada de revisar sua obra magna por meio de publicações posteriores. Ao menos durante algum tempo após 1960 – a carta definitiva, declarando a cessação das publicações à revista Rechtstheorie data apenas de 1968 – se afigura razoável assumir que autor ainda trabalhava na rearticulação dos problemas estruturais da normatividade, denunciando com isso, ao invés de uma eventual ruptura, um possível desenvolvimento do projeto juspostivista da TPD. Uma continuação que, ante a inclinação eminentemente epistemológica do normativismo kelseniano, pode encontrar guarida, como se buscará demonstrar, em abordagens contemporâneas da teoria do conhecimento acerca da natureza do apriori kantiano.