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CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS

2.2. A Epistemologia no pensamento moderno

Na seara das discussões contemporâneas sobre a teoria do conhecimento, a ninguém é dado ignorar que a investigação sobre as múltiplas variações da relação entre o sujeito e o objeto – seja o objeto de conhecimento, de avaliação ou de dominação, como pretende Kelsen – passou a se desenvolver, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, sob todo um novo quadro de referência teórica, consubstanciado na revolução paradigmática que leva à filosofia analítica97, a partir do chamado giro-linguístico. No mais, tampouco cabe desconhecer que as turbulências dessa transição pouco tranquila refletem em grande medida, num segundo momento, o quadro histórico, social e político sempre instável que fez o século passado merecer a designação de o “século mais curto de toda a historia”98, dado à dinâmica de seus conflitos extremos.

Com efeito, a autocompreensão do pensamento ocidental jamais poderia passar incólume por eventos históricos de dimensões antes inconcebíveis, como duas guerras

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mundiais manejadas com o poderio bélico de destruição em escala planetária, entremeadas pela aguda depressão de 1929, que golpeou fortemente o sistema econômico capitalista no plano transnacional, a ponto de engendrar o programa intervencionista do New Deal a fim de salvaguardar o então combalido ambiente social e político norte-americano, nada obstante sua histórica inclinação liberal. Estas e outras tantas convulsões não menos aflitivas contribuíram decisivamente para levar ao paroxismo a crise do fundamento do pensamento moderno, já iniciada no século XIX.

Tudo porque se o projeto moderno se definia em suas linhas de força pela busca da fundamentação do conhecimento e das teorias científicas na análise da subjetividade, visando com isso compreender o sujeito como aquele ser dotado de consciência sobre a experiência do real e de si próprio, como anota Danilo Marcondes (2001, p.251), é fato que a certeza do “ser pensante” – o cogito cartesiano – já pouco resistia ao desafio imposto pelo idealismo totalizante de Hegel99, por exemplo, quando este apontou a necessidade de se levar em consideração também o processo histórico de formação desta consciência, ao invés de nos voltarmos exclusivamente para a análise lógica de suas leis de representação internas. Isso tão somente no espectro do idealismo alemão da primeira metade do século XIX, porquanto a ênfase nos condicionantes históricos de formação da subjetividade ganharia ainda maior dramaticidade com a investigação posterior de Marx100, que assume posição análoga, porém no sentido de investigar a seu tempo os processos de formação da representação consciente do real à luz da concretude das relações materiais de trabalho e produção.

Consequentemente, a preeminência do paradigma das ciências físico-matemáticas como modelo do conhecimento em geral, exaltada ao limite pelo pensamento crítico de Kant, perde força de início, dando lugar aos poucos a uma nova abordagem dos fenômenos culturais de nítido corte historicista. O privilégio da história, em detrimento do ideal de objetividade e

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exatidão dos antigos sistemas teóricos da ciência natural, ganha expressão na famosa passagem do prefácio da Filosofia do Direito101 de Hegel, segundo o qual:

A missão da filosofia está em conhecer o que é, porque o que é é a razão. No que se refere aos indivíduos, cada um é filho do seu tempo; assim também para a filosofia que, no pensamento, pensa o seu tempo. Tão grande loucura é imaginar que uma filosofia ultrapassará o mundo contemporâneo como acreditar que um indivíduo saltará para fora do seu tempo, transporá Rhodus. Se uma teoria ultrapassar esses limites, se construir um mundo tal como entende dever ser, este mundo existe decerto, mas apenas na opinião, que é um elemento inconsciente sempre pronto a adaptar-se a qualquer fórmula. (HEGEL, 1997 p.XXXVII).

A reconstrução do processo de formação da consciência crítica, por meio de sua autoreflexão, pretende por sua vez superar a grande restrição que a inclinação subjetivista da modernidade impôs a si própria, a saber, o problema do solipsismo. Uma vez que ao mesmo tempo em que a consciência de si forneceu o critério de certeza indubitável, sob o qual se sustentavam as grandes sistematizações do pensamento iluminista, ela também colocou a questão absolutamente complexa de explicar como a subjetividade, voltada para os princípios lógicos e psicológicos das representações internas, poderia a partir disso se relacionar com o mundo. Foi buscando uma resposta para esse questionamento angustiante que se colheu a certeza de um novo problema, qual seja, a percepção de que a consciência do “eu” não assegura a certeza do mundo e, tampouco, a certeza da adequação das leis do pensamento ao mundo.

Aqueles sistemas de pensamento que, como é usual, costuma-se dispor sob a classificação geral das chamadas “filosofias da representação” foram todos invariavelmente conclamados a enfrentar, cada qual a seu modo, essa árdua objeção, nem sempre com algum sucesso. Não por acaso, foi desse ambiente dominado pelos desafios epistemológicos de toda ordem102 que emergiu a filosofia crítica de Kant, ponto culminante do racionalismo iluminista, que tomou para si o objetivo explícito de por em termos os poderes da razão visando enfim alcançar, senão o princípio absoluto da relação entre o sujeito e os objetos, ao

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menos as regras possíveis de regulação e limitação da interação entre as estruturas lógicas da cognição individual e a base material de seus objetos de conhecimento.

De fato Kant jamais nega e sim, pelo contrário, assume o dualismo fundamental entre o sujeito e o objeto em duas grandes frentes, situando-o primeiro no campo teórico do contato com mundo (natureza) e depois no campo prático da liberdade (moral). De modo que, aos questionamentos fundamentais sobre “Que podemos conhecer?” e “Que devemos fazer?”, Kant responde respectivamente com o dualismo entre a sensibilidade e o entendimento, que culmina na cisão entre o fenômeno e a coisa em si103, no plano teórico, aliado ao dualismo entre a vontade e o imperativo do ponto de vista prático. Portanto, não seria legítimo deixar de reconhecer que: “A filosofia kantiana é uma filosofia da representação que consagra a diferença entre a razão e seu objeto.” (LOPARIC, 1990, p.90, itálicos no original). Ao final, temos uma verdadeira filosofia da finitude positiva, conforme a referência de Loparic; uma filosofia que busca precisamente a síntese possível, posto que não absoluta, entre o sujeito e seu objeto.

2.2.1. Kant

Kant orientou todo o projeto crítico a partir da indagação acerca da possibilidade dos juízos sintéticos a priori104, proposições que se caracterizam pelas qualidades da universalidade e da necessidade. Contudo, como a experiência sensorial mais imediata não nos pode fornecer senão a transitoriedade das percepções contigentes e particulares sobre cada qual dos objetos que se apresentam aos sentidos, resta claro que quando um juízo é pensado

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como estritamente universal e necessário, no caso, ambas as qualidades simplesmente não podem ser extraídas da experiência. No entanto, estas mesmas proposições necessárias e universais, que tão manifestamente extrapolam os limites do conhecimento sensível, constituem a base do raciocínio empregado com sucesso pelas modernas ciências físico- matemáticas, as quais ainda hoje prosseguem resolutas na marcha incessante de ampliação do conhecimento humano.

Conforme o exemplo do próprio Kant (2012, p.54, B15), a proposição aritmética “5 + 7 = 12” necessariamente acrescenta algo novo ao conhecimento, já que do conceito da soma de 7 e 5 não se pode pensar analiticamente, de imediato, a unificação de ambos em um único número. Deve-se de fato recorrer ao auxílio de uma intuição, como 5 ou 7 pontos, para assim se chegar ao número 12. Muito embora a intuição em si, problematicamente, não seja capaz de fornecer alguma base para justificar a validade universal e necessária desta proposição, ou seja, nenhuma intuição ou conjunto de intuições nos indica como podemos assumir que a generalidade da proposição “5 + 7 = 12” permanece necessariamente válida para todas as intuições da experiência possível.

Dentre os filósofos, Kant reconhece em David Hume aquele que primeiro intuiu este problema nos seus contornos mais extremos (KANT, 2012, p.57, B20), ao ponto de despertar o próprio Kant de seu “sono dogmático” (KANT, 2014, p.28, IV:260). Tudo, no caso, partindo de um único, mas importantíssimo conceito da metafísica tradicional correspondente ao princípio da conexão entre causa e efeito. Como alertou o teórico, este princípio não se equipara meramente à relação de antecedente e consequente, pois carrega consigo a ideia de necessidade, expressa na noção de algo que, quando existente (causa), deve conduzir forçosamente à existência de outro elemento (efeito). Neste caso, a simples associação entre antecedente e consequente que a experiência nos apresenta, por meio do hábito, nunca poderia induzir a conexão necessária e universal da causalidade, o que implicaria, quando muito, na confusão entre um princípio subjetivo de conexão das representações e a necessidade objetiva da natureza (KANT, 2012, p.47, B5).

O empreendimento filosófico de Kant se propõe assim a investigar como seria possível o aparente paradoxo de que a partir das estritas exigências da necessidade e da universalidade, ambas de todo independentes da experiência, seja facultado ao raciocínio científico ampliar comprovadamente o conhecimento sobre esta mesma experiência. O problema basicamente diz respeito a como justificar um conhecimento ampliativo, que Kant denomina de sintético, mas que ao mesmo tempo se desenvolve unicamente a partir de

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conceitos, sem a mínima relação com a experiência, ou seja, que procede de um modo dito puro ou a priori, segundo a terminologia do autor. Em resumo, o que se encontra no âmago do projeto crítico não é nada mais do que a radical indagação epistemológica sobre a possibilidade da ciência, uma vez que: “O verdadeiro problema da razão pura está, pois, contido na questão: como são possíveis juízos sintéticos a priori?” (KANT, 2012, p.56, B19, itálicos no original).

O desafio se intensifica diante da constatação de que a pergunta, tal como formulada, remete intencionalmente à causa de um efeito dado, visto que Kant pretende investigar apenas e tão somente o modo como são possíveis as ciências, pois o fato de que estas são possíveis lograra ser consolidado há tempos pela realidade de sua efetivação. Nesse sentido, se a matemática e a física contêm em ambos os casos proposições universalmente aceitas, derivadas de conceitos puros, plenamente de acordo com a experiência, mas independentes desta, a existência dos juízos sintéticos a priori só pode então ser reconhecida como real e incontestada105.

Por conseguinte, Kant se pergunta pelas condições deste fato estabelecido e oferece uma solução possível postulando que os juízos sintéticos a priori explicam-se pela compreensão do conhecimento como resultado de um processo complexo, no qual não atuam única e exclusivamente os componentes objetivos da experiência, dado que os estímulos da percepção sensível somente ganham sentido quando organizados sistematicamente por uma complexa gama de conceitos puros que tem sede a priori no entendimento do próprio sujeito. Logo, a experiência em geral passa então a se regular pelas condições determinantes do entendimento e não o contrário, já que de qualquer outro modo permaneceria inexplicável a síntese a priori do conhecimento científico, a qual, muito mais do que mera descrição, envolve verdadeira construção de conceitos.

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O quadro é pincelado com tintas fortes, asseverando o autor que a razão só compreende aquilo que ela mesma produz segundo seus projetos, de maneira que o entendimento humano, munido de conceitos e princípios puros, deve sim aprender com a natureza, mas: “(...) não na qualidade de um aluno que recita tudo que o professor quer, e sim na de um juiz constituído que força as testemunhas a responder às perguntas que lhes faz.” (KANT, 2012, p.28, BXIII). O prévio atestado de sucesso deste empreendimento Kant encontrava na revolução científica de seu tempo, sendo sua famosa revolução copernicana impulsionada pela esperança de resultados análogos no âmbito da filosofia:

Quero crer que os exemplos da matemática e da ciência da natureza, que se tornaram o que são hoje por meio de uma revolução subitamente desencadeada, sejam interessantes o suficiente tanto para fazer-nos meditar sobre o elemento essencial na transformação do modo de pensar, que lhes foi tão proveitosa, quanto para toma-las como exemplo, pelo menos a título de tentativa, na medida em que o permita a sua analogia, enquanto conhecimentos racionais, com a metafísica. Até hoje se assumiu que todo o nosso conhecimento teria de regular-se pelos objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a priori, por meio de conceitos, para assim alargar nosso conhecimento, fracassaram sob essa presunção. É preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos sairemos melhor, nas tarefas da metafísica, assumindo que os objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o que já se coaduna melhor com a possibilidade, aí visada, de um conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre os objetos antes que nos sejam dados. Isso guarda uma semelhança com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, não conseguindo avançar muito na explicação dos movimentos celestes sob a suposição de que toda a multidão de estrelas giraria em torno do espectador, verificou se não daria mais certo fazer girar o espectador e, do outro lado, deixar as estrelas em repouso. Pode-se agora, na metafísica, tentar algo similar no que diz respeito à intuição dos objetos. Se a intuição tivesse de regular-se pela constituição dos objetos, eu não vejo como se poderia saber lago sobre ela a priori; se, no entanto, o objeto (Gegenstand) (como objeto (Object) dos sentidos) regular-se pela constituição de nossa faculdade intuitiva, então eu posso perfeitamente me representar essa possibilidade. (KANT, 2012, p.29/30, BXVI/BXVII, itálico e tradução106 no original).

Sob esse pressuposto do papel ativo da subjetividade no processo de conhecimento, impõe-se, por conseguinte, uma separação plena e definitiva entre o sujeito e o objeto,

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considerando que a experiência sensível deixa de se apresentar como fonte exclusiva de toda a cognição. Nesse sentido, segundo a restrição extrema imposta pelo projeto crítico de Kant, o sujeito não pode nunca se relacionar diretamente com o objeto do conhecimento (o objeto “em si”), haja vista que o ato de conhecer algo envolve na verdade a construção de uma representação do objeto, a qual resulta propriamente da interação entre duas distintas faculdades da cognição. De maneira que, após a provocação da faculdade passiva da sensibilidade, que nos oferece uma intuição imediata dos objetos que afetam a mente de certo modo, o conhecimento ainda pressupõe em seguida a ação da faculdade ativa do entendimento, por meio da qual as representações sensíveis são sistematizadas à luz de conceitos puros.

As funções de ambas as faculdades tampouco são intercambiáveis, de modo que o entendimento não pode intuir nenhuma representação sensível e os sentidos nada podem pensar. Somente da união entre a sensibilidade o entendimento resulta efetivamente algum conhecimento, pois em síntese: “Sem a sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem o entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdos são vazios, intuições sem conceitos são cegas.” (KANT, 2012, p.96/97, B75). Com isso se consagra definitavamente uma filosofia da representação, segundo a qual o entendimento humano jamais acessa diretamente o objeto, uma vez que a faculdade do pensamento se restringe no máximo a orientar a experiência através da sistematização organizada das representações sensíveis, por meio de conceitos que lhes conferem sentido a priori.

O objeto tal como é em si mesmo, na particularidade de seus condicionantes internos, deve permanecer como um “X” desconhecido (KANT, 2012, p.53, B13), na medida em que o conhecimento de sua representação particular ganha sentido apenas e tão somente como resultado da aludida interação entre a sensibilidade o entendimento. De fato, na dinâmica desta articulação, o conhecimento do objeto em momento algum se dá realmente de modo independente ou particular, sendo sempre o conhecimento de uma representação obrigatoriamente situada, por meio de conceitos, em relação a todo um conjunto diverso de outras representações que a sensibilidade também apresenta.

Portanto, se todo o conhecimento começa com a experiência, isso não significa que todo ele provém apenas da experiência (KANT, 2012, p.45, B1), dado que aquele primeiro conhecimento perfaz em verdade um composto daquilo que ensina a sensibilidade, em conjunto com aquilo que o entendimento produz por si mesmo. Nesse sentido, a síntese da lição que abre a lógica transcendental é incontornável:

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Nosso conhecimento surge de duas fontes fundamentais da mente, a primeira das quais é a de receber representações (a receptividade das impressões), e a segunda, a faculdade de conhecer um objeto por meio dessas representações (espontaneidade dos conceitos); por meio da primeira nos é dado um objeto, por meio da segunda ele é pensado em relação àquela representação (como mera determinação da mente). A intuição e os conceitos, portanto, constituem os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem os conceitos sem uma intuição correspondente a eles, nem uma intuição sem conceitos, podem fornecer um conhecimento. Os dois podem ser puros ou empíricos. São empíricos quando uma sensação (que pressupõe a presença real do objeto) está neles contida; são puros, pelo contrário, quando nenhuma sensação se mistura à representação. Esta última pode ser denominada a matéria do conhecimento sensível. Por isso a intuição pura contém tão somente a forma sob a qual algo é intuído, e o conceito puro, apenas a forma do pensamento de um objeto em geral. Somente as intuições ou os conceitos puros são possíveis a priori, e os empíricos o são apenas a posteriori. Se denominarmos sensibilidade à receptividade de nossa mente para receber representações, na medida em que ela é afetada de algum modo, então o entendimento, por outro lado, é a faculdade de produzir representações por si mesma, ou a espontaneidade do conhecimento. É próprio de nossa natureza que a intuição só possa ser sensível, i.e., que só contenha o modo como somos afetados pelos objetos. Por outro lado, a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível é o entendimento. Nenhuma dessas propriedades pode ser preferida à outra. (KANT, 2012, p.96, B74/75, itálicos no original).

A transcrição se justifica também pela alusão a todos os elementos cruciais, que dão ensejo a uma breve reconstrução das linhas gerais do percurso absolutamente sinuoso da CRP. A dificuldade da obra em sua vasta extensão e profundidade é notória. No entanto, dentro dos objetivos presentes e sem qualquer pretensão exaustiva, um panorama geral da arquitetônica da crítica não pode ser desprezado, em complementação aos princípios norteadores do projeto kantiano, tal como expostos até o momento.

Guyer e Wood107 (2000, p.3) anotam, por exemplo, que nada obstante o conteúdo singular da obra, Kant extrai a estrutura lógica do tratado a partir de modelos bastante conhecidos, principalmente no que diz respeito aos seus dois grandes segmentos centrais: a Doutrina Transcendental dos Elementos (KANT, 2012, p.69, B31) e a Doutrina Transcendental do Método (KANT, 2012, p.527, B733). Segundo ambos os tradutores, essa distinção se apresenta como análoga àquela dos livros-texto de lógica, na tradição germânica

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da época, que operavam comumente com a divisão entre uma lógica “geral” e “especial”, também chamada de lógica “aplicada”.

Na chave do pensamento kantiano, a distinção passa a corresponder à separação entre a exposição de uma teoria do conhecimento a priori (Doutrina Trancendental dos Elementos), dentro de seus limites e possibilidades, com o conseguente conjunto de reflexões do filósofo sobre as implicações metodológicas dessa teoria (Doutrina Transcendental do Método), buscando contrastar os modos de demonstração do pensamento matemático e filosófico, bem como as relações entre o uso puro e prático da razão, juntamente com a posição do método crítico em face dos procedimentos dogmáticos, empíricos e céticos do pensamento filosófico (GUYER E WOOD, 2000, p.3/4).

Por sua vez, a Doutrina Transcendental dos Elementos, que ocupa a maior parte da obra, foi subdividada em duas partes cuja desproporção é extrema. Em primeiro lugar, Kant inicia com a Estética Transcendental (KANT, 2012, p.71, B33), na qual se ocupa de uma teoria das formas puras da sensibilidade108. Sendo que posteriormente o segundo e muito mais longo segmento da Lógica Transcendental (KANT, 2012, p.96, B74) comporta ainda uma nova subdivisão entre a Analítica Transcedental (KANT, 2012, p.104, B89) e a Dialética Transcendental (KANT, 2012, p.275, B349), uma distinção que no contexto do sistema lógico da CRP remonta à milenar dualidade aristotélica entre uma lógica da verdade e uma lógica da probalidade (GUYER e WOOD, 2000, p.4).

Kant investiga separadamente as determinações do pensamento analítico e dialético,