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A virada teórica nos fundamentos do projeto juspositivista.

CAPÍTULO 1 – CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA DO DIREITO

1.2. A virada teórica nos fundamentos do projeto juspositivista.

Ante a relevância do viés epistemológico para a abordagem kelseniana do fenômeno jurídico, preocupada com a identificação das condições de possibilidade do conhecimento do direito como objeto dado, a virada teórica levada a efeito na última obra do autor ainda hoje levanta questões intrigantes, que despertam o debate sobre a real posição do teórico no plano da filosofia e da teoria geral do direito. Sobretudo, por se tratar a sua Teoria Geral das Normas34 de uma publicação póstuma, editada em 1979, sob os auspícios do Instituto Hans Kelsen de Viena, seis anos após a morte do teórico.

Contra todas as expectivas, a obra veio comprovar que Kelsen trabalhou até o final da vida na revisão do núcleo conceitual de seu projeto juspositivista, buscando, ao que parece, como que “retratar-se” de posições assumidas ao longo do tempo, tendo a atenção voltada especialmente para os fundamentos metodológicos consolidados na proposta clássica da TPD. Suas expressivas revisões35, em suma, se aplicam ao menos a três grandes referências estruturais do antigo sistema teórico, quais sejam, (1) à distinção entre normas primárias e secundárias; (2) ao problema das relações entre lógica e direito, no tratamento de possíveis conflitos de normas; e (3), por fim, à natureza da norma fundamental enquanto categoria epistemológica elementar, que possibilita a representação conceitual do direito como sistema de normas coercitivas da conduta humana.

A virada é marcante já no primeiro ponto quando, ao contrário da TPD36, Kelsen renuncia à classificação da norma que estatui a sanção como norma primária, concluindo que o elemento de destaque da proposição normativa se encontra propriamente no mandamento

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prescritivo que impõe determinada conduta (ex. “faça isto”), sendo a sanção cominada apenas em caráter secundário, o que torna sua relevância condicionada pela hipótese excepcional do descumprimento. Ainda assim, não há dúvida de que Kelsen procede, de fato, sem excluir totalmente a antiga possibilidade contrária:

Se se admite que a distinção de uma norma que prescreve uma conduta determinada e de uma norma que prescreve uma sanção para o fato de violação da primeira seja essencial para o Direito, então precisa-se qualificar a primeira como norma primária e a segunda como secundária – e não o contrário, como o foi por mim anteriormente formulado. A norma primária pode, pois, aparecer inteiramente independente da norma secundária. Mas é também possível que uma norma expressamente formulada i.e., a norma que impõe uma conduta determinada geralmente não apareceça, e apenas apareça a norma secundária, i.e., a norma que estabelece a sanção. Desta forma formulam-se reiteradamente normas jurídicas nas modernas leis. (KELSEN, 1986, p.181, itálico no original).

O segundo problema, por sua vez, compõe um dos eixos centrais da obra, que tem na investigação das relações entre direito e lógica sua grande área de pesquisa. Kelsen dedica os dois mais extensos capítulos do livro a uma dupla linha de análise situada neste campo de interesse, sendo que o autor discorre primeiro sobre a aplicabilidade do princípio da não contradição às normas, no capítulo 57, para depois perquirir a compatibilidade do silogismo clássico com o raciocínio jurídico, conforme o capítulo 58. (KELSEN, 1986, p.263/321). A síntese desta longa revisão mais uma vez será abertamente contrária à posição tradicional, pela qual o autor ganhou fama e reconhecimento na TPD37, quando então rechaçava a possibilidade de um real conflito de normas devido à unidade lógico-sistemática de representação conceitual do sistema jurídico. Porém, voltando ao tema anos mais tarde, Kelsen agora corrige a si própro de maneira expressa, conforme uma nova análise do tema, que se resumem na conclusão seguinte:

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Tanto quanto interessem conflitos entre normas gerais, um conflito de normas, que não pode ser resolvido conforme o princípio da lex posterior derogat priori, não é – como afirmei na minha Reine Rechtslehre – absurdo e, por conseguinte, ambas as normas sem validade. Cada uma de ambas as normas gerais é razoável e ambas valem. (KELSEN, 1986, p.268, itálico no original).

Como não bastassem, ainda, ambas as rearticulações colhem seu fundamento da terceira e mais radical virada teórica da obra póstuma de Kelsen, a saber, a reformulação do estatuto teórico da norma fundamental. Trata-se do postulado epistemológico que corresponde ao núcleo duro do sistema teórico da TPD38, o qual de rigor descreve a categoria elementar que funciona como condição de possibilidade para todas as representações do direito, ou seja, para a experiência do direito em geral, tal como esta se apresenta segundo as determinações internas de suas condições formais e objetivas. O impacto do novo fundamento teórico inaugura um momento absolutamente complexo do já multifacetado pensamento kelseniano, na medida em que este aparentemente subverte décadas de um intenso trabalho intelectual, pautado em premissas metodológicas definidas, para dar início ao dito período39 “cético” ou “crítico” das reflexões do teórico. Logo, a transcrição integral da passagem se afigura não apenas como justificada, mas também necessária, nos termos do texto que se encontra no capítulo 59 da TGN, dedicado aos problemas lógicos do fundamento de validade do direito:

A norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral positivas – como evidente do que precedeu – não é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, não o sentido de um real ato de vontade, mas sim de um ato meramente pensado. Como tal, ela é uma pura ou ‘verdadeira’ ficção no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se, que é caracterizada pelo fato de que ela não somente contradiz a realidade, como também é contraditória em si mesma. Pois a suposição de uma norma fundamental – como porventura a norma fundamental de uma ordem moral religiosa: ‘Deve-se obedecer aos mandamentos de Deus, como determina historicamente a primeira Constituição’ – não contradiz apenas a realidade, porque não existe tal norma como sentido de um real ato de

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vontade; ela também é contraditória em si mesma, porque descreve a conferição de poder de uma suprema autoridade da Moral ou do Direito e com isto parte de uma autoridade – com certeza apenas fictícia – que está acima dessa autoridade. Segundo Vaihinger, Die Philosophie des Als-Ob, 7. und 8. Aufl., Leipzig 1922, uma ficção é um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento como material existente (ob.cit., p.19). O fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto significa, porém, como normas válidas, e dos respetivos atos como atos ponentes de normas. Este fim é atingível apenas pela via da ficção. Por conseguinte, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se não é a hipótese – como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei -, e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou, então, deve ser acompanhada, porque a ela não corresponde a realidade (ob. Cit., p.143 e ss.). (KELSEN, 1986, p.328/329, itálicos no original).

Kelsen parece enfim curvar-se aos críticos, pois a toda evidência se trata de uma mudança estrutural de relevância ímpar, que atinge a base de sustentação de todo o projeto epistemológico da TPD, com a qual o autor trabalhou ao menos desde 1920, quando então efetivamente “armado” com a teoria da hierarquia das normas de Merkl40 (Stufenbaulehre), segundo a oportuna expressão de Gabriel Nogueira Dias (2010, p.234), e de fato convencido da necessidade epistemológica da norma fundamental como condição de possibilidade do conhecimento analítico da ciêcia jurídica, Kelsen enfim deu início ao delineamento de seu sistema conceitual, que encontra uma primeira diagramação na edição inaugural da TPD41, datada de 1934.

Desde então os fundamentos do normativismo kelseniano foram amplamente conhecidos, a partir de seu posicionamento intermediário entre os extremos de um direito natural metafísico, pautado na regulação das normas jurídicas por valores transcendentes, oposto ao juspositivismo cientificista do século XIX, na esteira do qual os grandes nomes do direito, como Georg Jellinek (2000, p.326), defendiam ser dever do jurista a descrição das

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conexões de causa e efeito dos fatos sociais à maneira da ciência natural, devido à “força normativa” inerente às relações fáticas de dominação.

Por outro lado, logo de início a perspectiva clássica da TPD (KELSEN, 1992, p.10) concebe a norma jurídica como um esquema de interpretação das condutas humanas que, em termos lógicos, outorga um sentido objetivo a determinados atos de vontade realizados por certos indivíduos. De modo que o elemento primordial, que transforma um evento particular em fato jurídico, não é mais sua facticidade propriamente dita, o seu “ser natural”, mas sim um ato da razão, a saber, o procedimento intelectual que confronta o fato com um sistema normativo de referência, positivado, por exemplo, na forma de um código ou da constituição. Nas palavras de Kelsen: “Para que um fato material não seja qualificado como assassinato, mas como execução de uma sentença criminal, dependemos da qualidade, imperceptível aos sentidos, que emerge do raciocínio consistente no confronto deste ato com o Código Penal e com o processo penal.” (KELSEN, 1992, p.10, tradução nossa42).

A base dessa distinção, que permanece indelével até a segunda e definitiva43 edição da TPD em 1960 (KELSEN, 2006, p.4), se encontra na rígida cisão metodológica entre as esferas do ser (Sein) e do dever-ser (Sollen), princípio que funda o dualismo epistemológico entre fato e valor, entendidos aqui enquanto opostos irredutíveis entre si, delimitados de maneira estanque. Trata-se de um instrumental teórico que, por si só, reverbera toda a herança kantiana de Kelsen e esclarece muito do repúdio do autor pelo juspositivismo de seu tempo, pródigo em sustentar, à maneira do já citado Jellinek, a preponderância da “força normativa do fático”. Kelsen, porém, em parágrafos que formulam posição análoga aos postulados da Crítica da Razão Pura44 (KANT, 2012), abre a apresentação da TPD com cristalina exposição de princípios:

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A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dado imediato da nossa consciência. Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja. (KELSEN, 2006, p.4).

A semelhança do excerto em destaque com as conclusões de Kant (2012, p.432, B566-B586), quando da resolução da terceira antinomia da razão pura, que opunha os conceitos da causalidade por liberdade à lei universal da necessidade natural, não é mera coincidência. Ademais, mesmo ante o já citado problema da exposição nem sempre clara das premissas especulativas45 de Kelsen, a proximidade do autor com a filosofia kantiana apenas reforça sua orientação epistemológica, sendo que isso nos demonstra novamente o quanto o jurista Hans Kelsen se encontra na dependência do Kelsen teórico do conhecimento, na medida em que este último jamais deixou de operar, ao longo de toda a sua extensa produção intelectual, com referências filosófico-conceituais indicativas de compromissos teóricos específicos, cujos desdobramentos na analise crítica do jurista ficam evidentes a todo tempo.

A cisão metodológica entre as funções cognitivas do fato e do valor corresponde, talvez, ao mais incisivo traço de influência da filosofia crítico-transcendental, a qual Kelsen (2011, p.25) reconheceu que fora eleita desde o início como sua “estrela-guia”, segundo a eloquente declaração constante de sua autobiografia. De maneira que a lição de Kant na CRP, ao formular sua proposta de abordagem da terceira antinomia da razão, nos expõe de rigor o alicerce que sustenta a metodologia diretiva da TPD:

O dever exprime um tipo de necessidade e conexão com os fundamentos que não aparece de outro modo em toda a natureza. O entendimento só conhece aí aquilo que é, foi ou será. É impossível que algo deva ser aí de outro modo, a não ser como de fato já o é, em todas as suas relações temporais; o dever, no entanto, caso só se tenha em vista o curso da natureza, não tem absolutamente nenhum significado. Nós não podemos, de forma alguma, perguntar o que deve acontecer na natureza; menos ainda as propriedades que um círculo deve ter; devemos perguntar apenas o que aí acontece, ou quais as propriedades que o último tem. (KANT, 2012, p.437, B 575, itálicos no original).

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Doravante, torna-se compreensível a conclusão que Kelsen sustentou à exaustão, sempre rejeitando de plano toda possibilidade de fundamentação do Direito – concebido enquanto sistema de normas situado no plano deôntico do dever-ser – em qualquer espécie de contexto fático, para assim buscar, ao contrário, desvinculá-lo das relações de poder que se manifestam no plano natural do Sein, onde até então o positivismo jurídico do século XIX pretendia circunscreve-lo. Consequentemente, se a norma não encontra fundamento no fato, assim como o dever-ser não pode jamais ser derivado do ser, resta claro que: “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma” (KELSEN, 2006, p.215).

A extensão desse princípio de validade, plenamente coerente com a sobredita epistemologia dualista de cunho kantiano, possibilita em um segundo momento a incorporação da teoria da hierarquia das normas (Stufenbaulehre) de Merkl à TPD, apenas para engendrar aquela que configura certamente a mais antológica imagem associada ao nome de Kelsen até o momento presente: a pirâmide normativa. Um sistema fechado, no interior do qual as normas inferiores encontram seu fundamento nas prescrições superiores, procedendo- se sucessivamente até o ápice do direito interno46, cujo ponto limite pode ser situado na constituição dos estados nacionais, as quais por sua vez encontram a base de validação na norma fundamental pressuposta, ou seja, na categoria epistemológica fundante de todas as possíveis representações de nossa experiência enquanto realidade juridicamente regulada.

É inequívoco que a natureza da norma fundamental representa o grande ponto de dissenso entre defensores e detratores do normativismo jurídico, uma vez que dela depende todo o arcabouço conceitual da TPD. A pirâmide normativa, que pretende legitimar um sistema de validação concebido por inteiro à luz da perspectiva deôntica do dever-ser, visando manter a cisão epistemológica entre este e o modo de conhecimento das ciências naturais (ser), simplesmente não pode subsistir sem a possibilidade de um fundamento normativo último e ainda assim não factual. Em outros termos um “puro” dever-ser, na busca do qual

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Kelsen uma vez mais recorreu às bases kantianas de sua formação, com o intento de sedimentar a visão posteriormente cristalizada na segunda edição da TPD:

Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicar per analogiam um conceito da teoria do conhecimento de Kant -, ser designada como condição lógico-transcendental desta interpretação. Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teorético-gnosiológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição. (KELSEN, 2006, p.225).

No mais, a citação exposta vale, inicialmente, como demonstração de que nada obstante a evidente influencia kantiana de Kelsen, também a relação teórica entre ambos deve sempre ser vista cum grano salis, porquanto nos parece igualmente explícito que o autor da TPD, na originalidade inequívoca de suas considerações epistemológico-jurídicas, não se limitou à reprodução acrítica do pensamento de seu antecessor, mas sim assimilou os fundamentos de Kant à luz do entendimento próprio, para somente então aplica-los à teoria jurídica particularmente dita47. Algo que resta evidenciado na citação referida, pela forma

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com que Kelsen enfatiza sua intenção de apenas aplicar per analogiam os conceitos da teoria do conhecimento de Kant.

De outra banda, o próprio Kelsen também asseverou (KELSEN, 2011, p.25-26) que em um primeiro momento aproximou-se do kantismo pelos filósofos da “corrente do sudoeste alemão”, a conhecida Escola neokantiana de Baden, ativa entre os anos de 1890 e 1930, em lugares como Friburgo, Breisgau, Estrasburgo e Heidelberg. Somente em momento posterior – e segundo o autor unicamente por meio de uma resenha48 de sua obra publicada nos Kantstudien – é que Kelsen reconhece ter tomado conhecimento: “(...) dos numerosos paralelos entre meu trabalho do problema da vontade no direito, sobretudo da vontade do Estado, e a filosofia da vontade pura de Cohen.” (KELSEN, 2011, p.26), assimilando então a influência do mestre dos neokantianos de Marburgo.

Em se tratando das referências teóricas do autor, ainda se faz digna de menção, pela relevância substancial, a já famosa proximidade do jurista com os teóricos do positivismo lógico que compunham o Círculo de Viena, liderados por Moritz Schlick. Merecendo, porém, ser afastadas de plano as afirmações ainda correntes de que Kelsen teria “pertencido” ao Círculo de Viena, como bem destaca pelo professor Andityas Soares de Moura (COSTA MATOS, 2006, p.49). Nesse sentido, o teórico brasileiro alude a um artigo de Clemens Jabloner, da Universidade de Viena, e traduz uma significativa carta de Kelsen, já há tempos divulgada pelo pesquisador austríaco (JABLONER, 1998, p.7), com data de 5.5.1963 e dirigida a Henk L. Mulder:

Em atenção à sua carta de 31 de março, desejo informa-lo de que não pertenci ao chamado ‘Círculo de Viena’ no sentido mais estrito da palavra. Tive contatos pessoais com esse círculo em virtude das minhas relações com o Prof.Schlick, o Dr.Otto Neurath, o Prof.Philipp Frank e o Prof.Victor Kraft. O que me ligou à filosofia desse círculo – sem ser por ele influenciado – foi a sua ênfase antimetafísica. Desde o primeiro momento rejeitei a filosofia moral desse círculo – pela maneira como está formulada nas ‘Questões de Ética’ de Schlick. Entretanto, os escritos de Philipp Frank e Hans Reichenbach sobre causalidade influenciaram minha visão dessa questão. A revista ‘Erkenntnis’ publicou meu ensaio ‘Die Entstehung des kausalgesetzes aus dem Vergeltungsprinzip’, em seu volume 8, e um ensaio intitulado ‘Causalidade e Retribuição’, no volume 9. (KELSEN apud COSTA MATOS, 2006, p.49-51).

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Diante de tudo, para além das incontestáveis contribuições da TPD no plano do direito, as referências em destaque são indicativas do quanto o trabalho de Kelsen foi capaz de dialogar com algumas das tradições mais marcantes do pensamento do século XX, na seara das ciências humanas e naturais. Sobretudo no campo da filosofia da ciência, não se questiona que Kelsen tenha contribuído para a discussão de problemas que se colocavam na ordem do dia, como demonstra, por exemplo, o aludido interesse do autor a respeito da discussão sobre