• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA DO DIREITO

1.3. A norma fundamental e os pressupostos do conhecimento do direito.

1.3.4. Conflito de normas

Por sua vez, o grande reflexo pragmático desse compromisso teórico assumido pelo autor ganha destaque na exigência de que, enquanto criação subjetiva, o material dado à ciência do direito deve ser organizado como um sistema homogêneo e isento de contradições, incapaz assim de assimilar como existentes duas ou mais prescrições normativas contrárias. Nas palavras de Gabriel Nogueira Dias:

Nisso pode-se vislumbrar uma consequência imediata e inevitável da utilização feita por Kelsen da teoria do conhecimento de Kant. Como ciência que cria seus objetos, a ciência do direito se obriga à ‘criação’, ou seja, ao conhecimento de um todo provido de sentido, de modo que o ordenamento jurídico não pode tolerar a existência concomitante, i.e. a validade de normas jurídicas que estejam em contradição. (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.265, itálico no original).

No limite, como visto, Kelsen equipara a validade de uma norma à sua existência enquanto tal, no interior de um sistema uniforme, sendo que este conceito por si só impõe um desafio colossal à TPD na lida com a concepção corrente de nulidade, uma vez que a equiparação da validade de uma norma à sua existência, na qualidade de dever-ser não contraditório, torna qualquer consideração de uma “norma inválida” uma contradição em termos. A perda da validade, sob esta ótica, acarretaria a perda da existência, pelo que a

6 * B + 0 0 + ' - B J

-, ) ];] * , # ' # ! % #

( 1 # , # # " ! ;# ! D+ ' # #

!#

“norma nula” i.e. contrária ao sistema simplesmente não existiria enquanto norma e, por conseguinte, tampouco poderia ser objeto de um eventual processo de anulação.

Com efeito, a anulação de algo pela via do direito pressupõe ao menos que este objeto já “ingressou” no mundo jurídico, ou seja, que já existe enquanto dever-ser, de tal forma que o pleno reconhecimento da existência de uma norma (ainda que “inválida”) já reside implícito na mera tentativa de sua anulação, a qual não objetiva senão expurgar do mundo jurídico algo que precisamente já reside nessa esfera. Até mesmo porque anular uma norma não pode significar anular o ato de que a norma é sentido (o que implicaria a capacidade de um dever-ser anular algo que é), mas, quando muito, designa a criação de uma nova norma com o intuito de retirar da “norma inválida” o seu sentido objetivo, sob a justificativa de que este diverge do sentido previsto pela norma anterior, que permitia/prescrevia/autorizava a criação da norma inválida (KELSEN, 2006, p.298).

A difundida visão piramidal do sistema jurídico de Kelsen, cujo ápice é a norma fundamental, implica assim uma dificuldade conceitual substantiva, com frequência ignorada, no trato com o vício mais corriqueiro de todos os grandes ordenamentos jurídicos da atualidade, qual seja, a possibilidade real do conflito entre as normas de distintos níveis hierárquicos. À eventual divergência entre normas de um mesmo escalão, a toda evidência aplica-se quase que intuitivamente certos princípios como aquele de que a lex posterior derogat priori, porém, diante do conflito entabulado entre duas disposições de hierarquia diversa, o intérprete não pode olvidar a problemática que advém da compreensão da validade como existência específica da norma. Origina-se assim o complexo dilema que a orientação epistemológica crítico-transcendental impõe à TPD, na medida em que lhe “obriga” a operar metodologicamente com aquilo que poderíamos descrever como o princípio da “validade- existência”.

Nesse sentido, se uma determinada norma X é criada em desacordo tanto com aspecto material, quanto com o aspecto formal que a norma superior Y prescreve, a fim de lhe garantir um sentido objetivo, esta norma X ou é (1) juridicamente inexistente em razão da invalidade que vem macular o ato de sua criação, tornando-se incapaz de gerar qualquer efeito ou mesmo de ser objeto do procedimento recursal pertinente ou outro expediente tendente a anulá-la; ou (2) é juridicamente existente e passível enquanto tal de ser anulada, hipótese que, no entanto, aparentemente contradiz a noção de que a validade se equipara em um primeiro aspecto à existência da norma enquanto dever-ser válido e vigente, desde que criado sem

!

qualquer contradição com o sistema composto pelas normas que lhe são anteriores e superiores.

Kelsen deve enfrentar essa dificuldade especialmente em dois casos limites (KELSEN, 2006, p.295/308), a saber, o da sentença ilegal, que deve ser reapreciada por um tribunal em sede de recurso, e o da lei inconstitucional, objeto maior do controle concentrado de constitucionalidade criado pelo teórico78. Sendo que, em ambos os casos, a coerência do autor relativamente à herança da filosofia transcendental a princípio se mantém, porquanto o mesmo não abdica prontamente de equiparar a validade de uma norma à sua existência, insistindo em defender que o dever-ser que “nasce” em desacordo com o sistema nem mesmo se constitui como norma. Em uma primeira interpretação, portanto, a sentença ilegal e a lei inconstitucional de início serão igualmente válidas, o que significa dizer, juridicamente existentes:

Mas uma ‘norma contrária às normas’ é uma contradição em termos; e uma norma jurídica da qual se pudesse afirmar que ela não corresponde à norma que preside a sua criação não poderia ser considerada como norma jurídica válida – seria nula, o que quer dizer que nem sequer seria uma norma jurídica. O que é nulo não pode ser anulado (destruído) pela via do Direito. Anular uma norma não pode significar anular o ato de que a norma é sentido. Algo que de fato aconteceu não pode ser transformado em algo não acontecido. Anular uma norma significa, portanto, retirar de um ato que tem por sentido subjetivo uma norma, o sentido objetivo de uma norma. E isso significa por termo à validade desta norma através de outra norma. Se a ordem jurídica, por qualquer motivo, anula uma norma, tem de – como o mostrará a análise subseqüente – considerar esta norma primeiramente como norma jurídica objetivamente válida, isto é, como norma jurídica conforme o Direito. (KELSEN, 2006, p.296).

D & J > !"# / * &

* *

J J ) ( ) ) -

- @ / + - ? -

) * N 3L - 2 0 * !

& 0 B * & - / < & D ) 0

- 0 ( = ) C ( & - - - J * = ) C 9 : % & B - (- * - 0 - 0 - 0 ? - - - + ) * - 0 J , ? J ) 0 9 : > J ; - * * 0 W - - & ( > & & 0 - B - 0 ) - 0 * ) - 5 9/DOGDP "# - !M #: > )

& / ( J G & * /DOGD .

^ 0 Q J X - "$ M"! ; /DOGDP . ( , # "R G

!"

A solução que harmoniza esta afirmação com a assertiva anterior de que uma norma existe e é válida somente se criada em conformidade com um mandamento anterior, que lhe outorga um sentido objetivo, no entanto, reside em considerar que órgãos de criação do direito como os parlamentos e os tribunais: “(...) recebem da ordem jurídica poder para criar, ou uma norma jurídica individual, cujo conteúdo se encontra prefixado na norma jurídica geral, ou uma norma jurídica individual cujo conteúdo não se encontra predeterminado, mas é estabelecido por estes mesmos órgãos (...)” (KELSEN, 2006, p.298).

Em suma, Kelsen reconhece por meio de uma manobra engenhosa que todo dever-ser que prescreve a forma com que outra norma deve ser criada, também reconhece implicitamente (e até mesmo autoriza) que esta norma seja criada em desacordo com o procedimento proposto, limitando-se o ordenamento jurídico à possibilidade de prescrever que, nestes casos, a validade do dever-ser seja provisória e condicionada à eventual instauração do procedimento competente (um recurso ou a declaração de inconstitucionalidade), ao cabo do qual a validade deve cessar por força da nova norma criada com o objetivo de anular o dispositivo anteirior. No extremo, mesmo um tribunal que decide em última instância tem resguardado pela norma constitucional a possibilidade de que sua decisão se dê em desacordo com as prescrições da lei maior, tendo como único diferencial o fato de que, nesta hipótese, o sistema não prevê o procedimento de anulação seja qual for o resultado do julgamento – a validade da norma individual consubstanciada na decisão do tribunal passa a ser definitiva e não provisória (KELSEN, 2006, p.298).

Porém, o subterfúgio de Kelsen marca um nítido ponto de inflexão na base teórica da TPD, como bem percebeu a aguda crítica que Luiz Fernando Barzotto (2007, p.59) retoma de Carlos Santiago Nino, ao destacar o artificialismo do estratagema. Afinal, como os teóricos apontam79, a lógica dessa representação teórica inviabiliza o elemento coercitivo do direito – a sanção – em sua essência, já que se as normas superiores contêm uma autorização “aberta” à instância normativa inferior, de modo que o destinatário da norma pode ou não seguí-la de livre e espontânea vontade, então as normas em questão jamais podem ser de fato desobedecidas, o que as descaracteriza enquanto normas, cujo fundamento deveria também

! D 2 ) T ) P ) N 3G - 2 - - ) - ( ) - 0B - + 2 - (- ( ) L ) + 2 + 2- N ZP - 2 - + + - 0 + + - + + - + + [ 5 9T><I KK "## - !:

!$

derivar do componente sancionatório-punitivo atrelado ao eventual descumprimento das condutas normativamente reguladas.

O conflito com as premissas metodológicas fixadas de início pela TPD, ademais, não poderia ser maior, notadamente no que se refere à redução conceitual que circunscreve todo o direito exclusivamente ao direito positivo80, secundum non datur (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.142). Em sentido diverso, a orientação epistemológica de cunho kantiano, no seu processo de construção conceitual do ordenamento por parte da ciência jurídica, se coloca como um verdadeiro “filtro epistemológico”, em razão do qual o jurista não pode reconhecer como simultaneamente válidas e existentes duas normas contraditórias, ainda que de fato positivadas pela autoridade constituída, de onde emerge a problemática constatação de que, apesar de tudo, nem todo direito positivo pode mais ser direito. Logo, isso significa que a predileção metodológica pelo direito positivo somente se manifesta no plano científico com restrições consideráveis.

Ao menos até 1960, com o advento da segunda edição da TPD, Kelsen não se permite transigir neste ponto e substitui até mesmo o tradicional conceito de nulidade da teoria jurídica por aquele da anulabilidade, certo de que a TPD não poderia operar com o conceito de uma “norma nula” sem abandonar – ou, no mínimo, reformular radicalmente – as linhas de força do método crítico-transcendental. Isso porque a natureza constitutiva do conhecimento jurídico-científico, decorrente da universalidade que o próprio Kant atribuíra às formas da percepção e às categorias do entendimento que constituem o fenômeno objetivo, no fundo se legitima, como visto, pelo ideal de um ordenamento “corrigido” ou isento de contradições, uma vez que se trata de um objeto estruturado pela própria cognição do jurista que com ele opera.

Por conseguinte, o direito positivo deve ser sempre direito válido, pois, caso contrário, simplesmente deixaria de ser direito. Por essa mesma razão se poderia considerar inclusive a natureza necessariamente constitutiva da declaração judicial de nulidade, vedada, por exemplo, a possibilidade do efeito ex tunc. O raciocínio de Kelsen é categórico:

Do que acima fica dito também resulta que, dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode

#P & 0 0 - ? N 3>- )

? - - ) * - ) L + + N

? , ? 0 ? 5 9/DOGDP

!

ser anulável. (...) Porém, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início. Não é, portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como ‘declaração de nulidade’, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como ‘nula desde o início’ (ex tunc). A sua decisão não tem caráter simplesmente declarativo, mas constitutivo. (...) Sob este aspecto, o Direito é como o rei Midas: da mesma forma que tudo o que este tocava se transformava em ouro, assim também tudo aquilo a que o direito se refere assume o caráter jurídico. Dentro da ordem jurídica, a nulidade é apenas o grau mais alto da anulabilidade. (KELSEN, 2006, p.306-308)

Consequências desta ordem permitem antever que a transição de Kelsen para a TGN, supostamente abandonando suas bases kantianas de outrora, nada tem de mero capricho especulativo, mas pode ser vista como um empreendimento substantivo de readequação das bases teóricas da TPD, na tentativa de equacionar problemas concretos, cuja resolução proposta até então ainda parecia limitar o pensamento do teórico. Precisamente nesse contexto se enquadra a assunção da norma fundamental não mais como pressuposto lógico transcendental (KELSEN, 2006, p.225) e sim como ficção “contraditória em si mesma” e “contraditória em relação à realidade” (KELSEN, 1986, p.328). Porque se duas normas conflitantes não podem ser reconhecidas como pertencentes, simultaneamente, ao mesmo ordenamento jurídico, então fica patente a conclusão já referida de que nem todo direito positivo pode ser direito (NOGUEIRA DIAS, 2010, p.328), e diante disso a possibilidade da TPD enquanto teoria do direito positivo em geral (KELSEN, 2006, p.1) restaria fadada ao fracasso.