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A Antropologia Estrutural-Dinâmica é um projecto analítico-integrativo

Cap.I Teorias estruturantes e Conceitos operativos

I.3 A Antropologia Estrutural-Dinâmica é um projecto analítico-integrativo

O centro do nosso trabalho é a própria casa – o espaço doméstico – e aí, quem abriu a porta da casa à Antropologia portuguesa foi Susana P. Bastos (SPB) aplicando «uma focalização que, em lugar de filtrar os dados observados mediante categorias ocidentais modernas, tenta reconstruir “por dentro” as conceptualizações e os princípios simbólicos estruturantes da organização socio-espacial doméstica» da comunidade hindu, na Quinta da Holandesa (1990: 17). Foi feito um verdadeiro trabalho antropológico, com observação participante inclusive. A Antropologia portuguesa sempre tinha dado relevo à casa, mas à casa tradicional no sentido de instrumento de trabalho integrando uma realidade cultural concreta – não exclusiva, mas essencialmente ligada ao mundo rural. Foi a vez dos antropólogos portugueses regressarem às cidades de onde tinham partido. Por outro lado, abandonam-se as noções estáticas ligadas à “casa” e introduz-se a dimensão relacional de processo: «o modo de apropriação do espaço não é apenas concebido como um espelho reflector da estrutura social», mas «como um interveniente activo nos processos de conservação e de transformação das próprias práticas socioculturais.» (ibidem) Essa

investigação avançou para o espaço de construção das identidades, onde esta problemática ganha um pleno sentido.

Esta perspectiva que iremos aplicar no estudo da nossa população-habitat assumirá um carácter simbólico-afectivo, considerando que estas populações são possuidoras de “consciente” que as faz gerir as práticas quotidianas, tanto quanto de “inconsciente” expresso em desejos, projectos, sonhos e utopias (manifestos ou latentes), no sentido em que como Leach (1985: 149) sustentamos que:

«”Nós” podemos diferenciar-nos em relação aos “outros” de todas as maneiras reais e imaginárias, mas o tipo de etnocentrismo que realmente conta (…) extrai sempre os seus símbolos das experiências privadas directas do “eu”: nutrição/defecação, limpeza/sujidade, erotismo/ascetismo, procriação/esterilidade.» (LEACH, 1985: 149)

Este “eu” é, em larga medida, um “nós” e vice-versa, num jogo de espelhos sempre em mutação em que o afectivo e o simbólico são dominantes. Neste estudo antropológico de um eu-nós, em confronto com um espaço envolvente, José Gabriel P. Bastos introduziu nas estruturas cristalizadas as noções dinâmicas dos processos sociais, no nosso caso, o estudo do espaço residencial. É um projecto interdisciplinar, como o próprio processo de “habitar” é: um processo dinâmico que envolve diversos espaços da vida social (estatuto social e conflitos) e dimensões e/ou evolução do Ego (género e faixas etárias). Assim, a Antropologia Estrutural-Dinâmica tem as condições requeridas para colocar o habitat no centro da problemática científica dos processos

identitários e propiciar o relançamento do estudo da articulação estrutural-dinâmica entre a (variabilidade [simbólico-afectiva] da) organização psicossocial hierarquizada da mente e a (variabilidade espacio-temporal da) organização sociopsicológica hierarquizada do mundo (“Lição”, s/d: 2-27). Esta perspectiva inscreve-se nos

percursos iniciados por Georges Devereux (1971: 379):

«Históricamente, la cultura y la mente humana son coemergentes y se presuponen reciprocamente. (…) La adquisición de la Cultura en sí (…) por el niño y la transformación que de un especimen inmaduro de genus homo (…) realiza un ser humano intervienen simultáneamente. Este doble proceso, funcionalmente indivisible, constituye lo que yo designo con el nombre de humanización, y que es preciso distinguir del proceso de adquisición de una cultura específica, que he denominado etnizacción. (…) La humanización realizada a través de la adquisición de la Cultura actualiza las potencialidades del hombre; la etnización se limita a proporcionar una serie de medios específicos para su actualización.»

É a perspectiva que convém à análise de um objecto-processo complexo e a que poderá fornecer explicações científicas sobre o modo de usar o habitat pelos actores sociais, cidadãos do Século XXI. Por outras palavras, no estudo do Bairro da Malagueira ultrapassaremos a fragmentação do estudo de uma sociedade ela mesma estilhaçada, segmentada em níveis (ou estádios, camadas), para uma análise e explicação integrada da sociedade contemporânea psicologicamente orientada pelas mentes socialmente estruturadas dos actores sociais – este ponto de vista que designamos como simbólico-afectivo (impedindo-nos qualquer veleidade psicologista ou psicanalítica) será aplicado numa área essencial do comportamento humano e social: o uso do seu habitat.

Este tipo de investigação e perspectiva já foram experimentados. José G.P. Bastos ([JGPB] 1997) trabalhou com uma comunidade envelhecida translocada do Bairro da Liberdade para o Bairro Padre Cruz. Com a fragmentação do real e, em consequência, das Ciências Sociais, nomeadamente a Antropologia, estilhaçada em tendências, e a inevitabilidade de introduzir a posição do investigador no investigado, leva JGPB a ultrapassar o ecletismo interdisciplinar e propor uma “sutura epistemológica das disciplinas antropológicas”: «exigindo a passagem das epistemologias da clivagem, categoriais ou atomísticas, simplificadoras e/ou reducionistas, às epistemologias da complexidade e da transdisciplinaridade» propõe em alternativa à fragmentação das Ciências Sociais uma «epistemologia estrutural- dinâmica centrada (…) na análise das tensionalidades, das contradições e dos conflitos, bem como dos processos cognitivo-emocionais, psico-sociológicos e político- económicos que ensaiam resolvê-los, deslocá-los e/ou integrá-los». (1997: 5, os bold são do autor)

Bastos confirma assim, a subjectividade inerente aos processos de apropriação de um habitat e da consequente construção identitária através da personalização desse habitat. E atinge a questão central: – a construção das identidades: «decorrente [do] entrosamento da biografia identitária com o espaço, com as redes e grupos sociais de pertença e com a história, numa perspectiva psicossociológica» (ibidem: 30, o bold é nosso). Considerando como um elemento definitivo, aquilo que outros denominavam com factores “autónomos”, o espaço (que nós definimos como

doméstico e/ou urbano), no entrosamento com a sua “biografia” e os seus projectos de vida sempre presentes se delineará a sua identidade. Esta perspectiva, consolidada através das histórias de vida dos nossos entrevistados proporcionará uma visão integrada da nossa problemática.